Nos capítulos anteriores, mostramos como a posição geográfica e a facilidade de cruzar a linha internacional tornou a fronteira do Brasil com o Paraguai um prato cheio para a logística do tráfico de drogas internacional, e que o controle de atividades ilícitas vem de décadas atrás com a influência de famílias que iniciaram seus negócios contrabandeando café e soja até as drogas.
Tudo isso aumenta a violência na região e resultou em 109 mortes violentas no ano passado, a maioria com característica de execução, como mostramos no Domingo Espetacular do último domingo (14).
No capítulo de hoje, respondemos duas últimas perguntas: qual o impacto dessa guerra para quem vive naquela região? E o que as autoridades tem feito para combater o crime por ali? Assista abaixo a chamada para o especial do PlayPlus.
Era o meio da tarde de 20 de novembro de 2020 e a pequena Brenda, 6 anos, brincava com uma prima em frente à loja em que sua mãe trabalha, em uma rua comercial em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, a pouco mais de 2 km da fronteira com Ponta Porã.
A 100 metros dali, Fredy Enchagüe Bordon, de 22 anos, passava com seu carro, uma SUV blindada em uma esquina, quando foi surpreendido por um outro veículo com três homens dentro que começaram a realizar diversos disparos com armas de grosso calibre: fuzis e pistolas automáticas.
O alvo foi morto e os homens fugiram, mas na outra esquina, Brenda caiu no chão com o rosto ensanguentado, mas forte, ainda tem forças para pedir ajuda. Na troca de tiros, uma bala de fuzil bateu em uma das paredes, ricocheteou e arrancou parte de seu nariz. Outros estilhaços atingiram seu pescoço e uma de suas mãos.
Após várias cirurgias, Brenda sobreviveu. As marcas da violência ficaram em seu rosto e na sua memória. A pequena jovem de 6 anos não consegue mais se olhar no espelho.
A garota foi uma das vítimas da violência que a disputa pelo crime organizado gera na região. Uma inocente em meio aos interesses de grupos criminosos pelo controle da logística do tráfico de drogas na região.
Já em fevereiro do ano passado, outra inocente não teve tanta sorte. Quando homens que seriam soldados da facção carioca Comando Vermelho invadiram uma casa na cidade de Capitan Bado e atiraram contra pessoas que participavam de um churrasco.
O alvo dos disparos realizados com fuzis AK-47 e calibre .556 foi o empresário e traficante Celso Maldonado Duarte, o Maracanã, de 46 anos. Ele seria um dos aliados de Jarvis Ximenes Pavão, uma importante liderança do narcotráfico da região e que circulava tanto ao lado do PCC, quanto junto ao Comando Vermelho.
Na execução de Maracanã, as várias rajadas das armas também mataram a brasileira Géssica Nunes Arévalo, de 25 anos. Ela tinha acabado de passar em um concurso público para trabalhar na prefeitura de Coronel Sapucaia.
A família de Géssica, assim como as de dezenas de outras vítimas temem em falar sobre o crime. "É que aqui a impunidade é muito grande. Povo tem medo de se envolver", afirmou o padrasto de Géssica, falando de longe ao atender a reportagem em sua casa na cidade.
Esta cena se repetiu dezenas de vezes. Em uma delas, a mãe nos atendeu, não quis gravar a entrevista, mas lamentou a morte do filho, assassinado com diversos tiros de armas de grosso calibre a poucos metros de casa, juntamente com outros dois rapazes. Apenas um deles era o alvo dos assassinos.
Na fronteira qualquer desentendimento pode ter consequências cruéis. Algumas dessas consequências causam mortes brutais. Em 2017, uma briga dentro do banheiro de uma escola em Pedro Juan Caballero por motivo banal entre adolescentes teve um desfecho trágico e cruel.
Um dos envolvidos na briga era um adolescente que era cunhado de Genaro Lopes Martins, apontado como um integrante do PCC na região na época.
O desdobramento desta briga, até certo ponto corriqueira em escolas, foi a morte de Alex Ziller Areco, de 14 anos. Segundo investigações policiais, ele foi sequestrado, torturado, obrigado a cavar a própria cova, morto com um tiro na cabeça e teve seu crânio esmagado.
Não bastasse o festival de crueldades, como o caso ganhou repercussão, seu corpo foi desenterrado, esquartejado, colocado em um tonel e largado na beira de uma estrada.
Há também aqueles que por dever do ofício, viram inimigos dos grupos criminosos — ou suas lideranças.
Ramon Cataluppi era chefe do departamento de trânsito de Pedro Juan Caballero, quando em 2009 foi alvo de um atentado na porta de casa. O motivo? Queria a investigação de um acidente de trânsito que resultou em morte na cidade.
"Eu fui à delegacia, e falei com o chefe de polícia da época. E perguntei: Cadê o homem que acidentou o rapaz, e quem era? Aí ele me falou: É o Peter Quevedo, quem fez o acidente. Quem era o Peter Quevedo? Era um rapaz de 28 anos, e na época era um dos chefões da máfia", afirma Cataluppi.
Um dos envolvidos era um líder do PCC (Primeiro Comando da Capital) na região que colou seu nome na lista de inimigos. Ramon foi pego chegando em casa, ainda em seu carro, foi alvo de 17 tiros.
Ele sobreviveu, e pouco tempo depois recebeu um recado de que sua dívida com a facção estava quitada. O preço foi alto: custou uma perna, um dedo e várias marcas de tiros pelo corpo.
Meses depois, o senador paraguaio Robert Acevedo sofreu um atentado, por criticar e articular ações contra o tráfico de drogas e a facção criminosa PCC no estado de Amambay, pelo qual foi eleito e integra uma família com uma história política tradicional.
Teve seu carro cercado por atiradores próximo de uma praça em que o atual Rei da Fronteira demarca território, e afirma dizer que escapou da morte por sorte. Foi ferido e saiu do carro, mas ficou parado próximo como se fosse uma pessoa passando pela rua e passou desapercebido pelos seus algozes. Dois seguranças que cuidavam de sua escolta acabaram morrendo.
A imprensa também entra na mira dos narcotraficantes na região. Na estatística das 109 mortes violentas de 2020, um deles era jornalista.
Lourenço Veras, de 52 anos, conhecido como "Léo Veras", era dono de um site noticioso especializado da região de fronteira, e cobria com dedicação a presença do tráfico e a violência na região.
Era noite de 13 de fevereiro e o jornalista estava jantando ao lado da esposa e seus dois filhos em sua casa, em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, quando foi surpreendido por dois homens que invadiram a casa.
"Chegaram em casa, estávamos jantando com meu filho, foi quando chegaram os cinco. Não sei dizer quem são. Não dava para ver e executaram ele na nossa frente", conta Cintia Gonzalez, relembrando aquele dia doloroso e que deixou marcas em sua vida.
Veras tentou fugir, mas foi alvo de dezenas de tiros e morreu. Em uma entrevista exclusiva, a mulher dele, Cinthia Gonzáles, falou pela primeira vez sobre a morte do marido e resume que ele foi morto para silenciá-lo.
A investigação oficial da morte está parada. Um homem foi preso, mas há suspeitas que ele não tenha tido envolvimento direto com a morte, e apurações realizadas na cidade apontam que a prisão apenas serviu de fachada para uma pronta resposta das autoridades paraguaias ao assassinato do jornalista.
"Nenhuma autoridade chegou a me dizer como está essa situação. Não sei nada. Nada, nada. Totalmente perdida. Também não insisto em saber. Porque não tenho acompanhamento, não tenho advogado, uma pessoa para me acompanhar. Não tenho apoio. Estou sozinha", lamenta a viúva de Léo Veras, que ainda enfrenta dificuldades financeiras após a morte do marido.
O jornalista Cândido Figueredo, que também atuava para um grande veículo de imprensa do Paraguai, decidiu ir embora do país depois das ameaças contra ele se intensificarem. Para Figueredo, a fronteira vive uma guerra sem esperança de fim.
A violência na região não se limita aos envolvidos nos negócios ilícitos e o clima de insegurança é constante, até mesmo nos familiares de vítimas, que se calam por medo.
Muitos dos responsáveis pelas mortes estão soltos, e a investigação policial raramente avança, não importando o lado da fronteira. A família de Brenda, de Léo Veras, e de dezenas de vítimas desta guerra, tem poucas respostas e quase nada de suporte do estado.
Enquanto isto, as organizações criminosas continuam se estabelecendo e recrutando soldados e influências para dominar a região, deixando o clima de medo ainda mais acentuado.
Falar sobre quem exerce o poder e comanda a região é assunto proibido ou tratado com cautela na região, seja no lado paraguaio ou brasileiro.
Mas o secretário de segurança do Mato Grosso do Sul, Antônio Videira, não hesitou em cravar: O PCC comanda a fronteira.
Nos últimos anos o ciclo de líderes integrantes da facção criminosa tem durado pouco tempo. Acabam presos em ações de colaboração das policias dos dois países, ou mortos por rivais.
Mas quando um morre ou é preso, já há outra liderança pronta para assumir os negócios milionários da logística do tráfico de drogas na região. O último que estava nesta lista era Giovanni Barbosa da Silva, o “Bonitão do PCC".
Foi preso no Paraguai por uma denúncia de grupos de inteligência da Polícia Federal brasileira. Há relatos que tentou comprar sua liberdade quando foi preso por policiais paraguaios, mas o negócio deu errado.
Aliados da facção criminosa tentaram resgatá-lo, mas a ação também falhou. Bonitão foi transferido para a capital do Paraguai e expulso do país. Foi entregue para as autoridades brasileiras e hoje está preso em uma Penitenciária Federal no Brasil.
Os homens que teriam participado da tentativa de resgate foram mortos dias depois em uma troca de tiros com policiais brasileiros em Ponta Porã.
Esta ação digna de roteiro de filme de Hollywood é reflexo de uma das tentativas do Estado em sufocar os grupos criminosos que atuam na região, cada vez com mais força e poder.
O secretário de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, enaltece que a Polícia Civil sob seu comando tem uma das melhores taxas de investigação de homicídios do país, e que o DOF (Departamento de Operações de Fronteiras) tem atuado de forma dura e com históricos de recordes de apreensões de drogas na região.
Mas de longe vê a atuação como confortável, e vê nas ações de combate ao consumo de drogas e melhorias sociais como uma saída para evitar que jovens da região se envolvam com o crime organizado.
"Hoje o cenário ideal seria que nós tivéssemos nessas regiões, principalmente nas cidades gêmeas, uma zona de livre comercio, ou zonas francas. Você fomentar atividade licita é indispensável hoje para você combater o crime", afirma Videira.
Já o Ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, reconhece que há muito o que se fazer em relação a presença e o poder de organizações criminosas como o PCC na fronteira.
Mendonça afirma ainda que por mais de 20 anos, estas organizações cresceram operando dentro do Brasil, agora são transnacionais e o segredo do combate a elas é uma ação coordenada entre as polícias dentro do Brasil e também com as forças de segurança dos países vizinhos.
"Este ano vamos ter um novo tipo de ação, com um combate efetivo nos portos e aeroportos, para diminuir sua capacidade de produzir receita", explica o ministro sobre o foco em ações coordenadas que reduzam a capacidade financeira destas organizações criminosas.
"Quando diminuímos a capacidade financeira do crime organizado, isto reduz criminalidade em geral, homicídios, criminalidade violenta, e vai reduzir também a capacidade armamentista, assim a policia vai ganhar este jogo", afirmou Mendonça.
Há ainda o anúncio da compra de equipamentos de suporte ao trabalho das polícias, o financiamento de diárias pelo Governo Federal para policiais que atuam nas regiões de fronteira, e também a previsão de ações coordenadas com os países vizinhos.
Sobre a liderança do PCC, o ministro Mendonça ainda manda um recado. "Este ano nas ações que nós vamos fazer de força tarefas conjuntas, eu estarei presencialmente nas operações, em algumas delas, para demonstrar que quem manda ali tem que ser a polícia e não o crime".
Por outro lado, o Paraguai não retornou aos pedidos de entrevista solicitados sobre as ações de combate ao tráfico de drogas e a violência na fronteira.
Apesar disto, o ministro da Justiça brasileiro, André Mendonça, destacou que tem trabalhado para estreitar laços para um trabalho conjunto de atuação na fronteira, e que dentro do respeito à soberania do país vizinho, também cobrar ações efetivas do Paraguai, em ações para tentar por fim ao controle do tráfico de drogas na região e pacificar a região de fronteira.
Especial Guerra na Fronteira
Arte/R7Diretores de Jornalismo: Aline Sordili, Clovis Rabelo, Domingos Fraga, Rogério Gallo e Thiago Contreira
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Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo
Reportagem (textos e vídeos): Márcio Neves, Marcos Guedes e André Azeredo
Imagens: Elton Resende e Márcio Neves
Arte: Matheus Vigliar e Omar Sabbag
Edição de Texto (vídeo): Jayr Dutra
Edição Imagens: Acrisio Mota e Michel Ponte
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