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Cesar Sacheto, do R7, enviado especial ao Rio

A maior tragédia ocorrida nos 125 anos de história, que atravessam três séculos, do Clube de Regatas do Flamengo, o mais popular do país, chocou rubro-negros, brasileiros e gente de todo o mundo no dia 8 de fevereiro de 2019.

Ao final daquela madrugada, precisamente às 5h17, um incêndio no centro de treinamento (CT) do clube, o Ninho do Urubu, instalado no número 25.997 da Estrada dos Bandeirantes, em Vargem Grande, bairro da zona oeste carioca marcado por sítios e condomínios residenciais, deixou como rastro principal dez adolescentes da divisão de base mortos, reduzindo a cinzas os sonhos das famílias espalhadas pelo país, além de três feridos.

Para as famílias era o auge, o fundo do poço do sofrimento. Mas, nem de longe, o final das doses de dor - elas continuaram a surgir no desdobramento do episódio. A maioria gerada pela insensibilidade espantosa, em vários momentos grotesca, de parte dos cartolas, advogados e representantes do clube no relacionamento com mães, pais e parentes dos jovens enquanto as soluções para todos são negociadas. 

Esta reportagem do R7 Estúdio encontra o leitor horas antes do fechamento do primeiro aniversário da tragédia do Ninho, que será às 5h17 deste sábado (8). E reencontra parentes dos envolvidos tomados de fortes decepção, angústia, carência e mágoa pelo que consideram descaso, abandono e falta de habilidade, empenho, transparência e carinho do comando rubro-negro na condução nesses primeiros 12 meses sem a presença de seus príncipes.

Como nem as maiores fortunas do planeta somadas seriam capazes de compensar a perda violenta e precoce de um filho, o buraco no peito aumenta drasticamente quando se enfrenta, além da indiferença, coisas como o questionamento do valor e possibilidades profissionais futuras de filhos que tinham a vida pela frente a pretexto da busca fria de uma "precificação" conveniente por advogados, cartolas e mesmo parte dos torcedores do clube.

O Flamengo declara ter se entendido fora dos tribunais com "três famílias e meia". Três delas fecharam acordo e, na quarta, de pais separados, apenas ele aceitou a sua parte. A mãe recusou a proposta e entrou com um processo judicial, a rigor a única ação particular movida até agora contra o clube por parentes das vítimas.

Estima-se que a indenização oferecida pela diretoria rubro-negra nesses acordos, fechados com cláusula de confidencialidade, seja de R$ 1,2 milhão por família dos dez mortos, ou R$ 600 mil a cada um dos pais quando separados, além de pensão mensal por uma quantidade de anos acertada entre as partes.

As chamas castigaram contêineres adaptados para servir de alojamento a parte da categoria de base do clube. Vinte e seis jovens dormiam neles no momento do incêndio, iniciado com um curto-circuito na fiação do sistema de ar-condicionado instalado para amenizar o calor impiedoso típico do verão carioca.

Christian Esmério, 15 anos, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, 14, Pablo Henrique da Silva Matos, 14, Bernardo Pisetta, 15, Vitor Isaias, 15, Samuel Thomas Rosa, 15, Athila Souza Paixão, 14, Jorge Eduardo Santos, 15, Gedson Santos, 14, e Rykelmo de Souza Viana, 16, não sobreviveram. Os outros 16, entre eles os três feridos, escaparam com vida.

Incêndio no Ninho do Urubu matou dez jovens há um ano (Fabio Mota/Estadão Conteúdo)

Incêndio no Ninho do Urubu matou dez jovens há um ano

Fabio Mota/Estadão Conteúdo

No último dia 16 de janeiro, cinco dos sobreviventes foram dispensados pelo clube: Felipe Cardoso, 16 anos, Wendel Alves, 15, João Victor Gasparin, 15, Naydjel Calleb, 15, e Caike Duarte Pereira da Silva, 14.

O coordenador das divisões de base rubro-negras, Eduardo Freeland, justificou assim o desligamento estúpido: "decisão puramente técnica". Alegou que os cinco e outros 22 foram dispensados após a avaliação de desempenho feita ao final de todas as temporadas.

Como se meninos entre 14 e 16 anos tivessem a mais remota condição de se recuperar emocional e psicologicamente, em tão pouco tempo, a ponto de mostrar alto desempenho em meio às cobranças intensas comuns em um clube do porte do Flamengo.

E também como se a extensão do prazo de paciência e, sobretudo, o apoio estrutural e psicológico profissional a esses meninos não fossem, a partir do ocorrido, obrigações éticas e humanas a serem cumpridas exatamente pelos comandantes do clube da Gávea.

Os dispensados foram chamados pelo rival Vasco para fazer testes, mas recusaram o convite. Um deles, Felipe, assinou contrato para integrar as categorias de base do Red Bull Brasil, de São Paulo. Os três que sofreram ferimentos - Francisco Dyogo Bento Alves, 15 anos, Cauan Emanuel, 14, e Jhonata Ventura, 15 - permanecem no clube.

Rosana de Souza é mãe de Ryquelmo, vítima da tragédia no Ninho do Urubu (Arte/ R7)

Rosana de Souza é mãe de Ryquelmo, vítima da tragédia no Ninho do Urubu

Arte/ R7

As dez vítimas fatais que dormiam o sono dos inocentes no momento do incêndio foram possivelmente asfixiadas pela fumaça vinda das labaredas enquanto sonhavam com o futuro profissional. Funcionários do clube e vizinhos do centro de treinamento tentaram retirar os atletas do contêiner — que tinha apenas uma porta de saída.

"Mandei mensagem no dia anterior. Ele não conseguiu acordar porque ficou até tarde conversando com a namorada. Deve ter permanecido acordado até às 4h. Penso em por que não ficou acordado mais um pouco. Só mais um pouco. Nada disso teria acontecido e ele iria voltar para casa. Sexta-feira era o dia em que ele voltava para casa e foi também o dia do incêndio. Agora preciso de ajuda para superar as sextas-feiras", conta Andreia Pinto Cândido de Oliveira, de 37 anos, mãe do goleiro Christian Esmério.

O autônomo Cristiano Esmério de Oliveira, de 40 anos, relembra com lágrimas nos olhos a última vez em que esteve com o filho, quatro dias antes do acidente. A família havia feito uma festa para comemorar o aniversário do irmão mais novo de Christian, fruto do atual relacionamento do pai. Todos estavam reunidos.

"Foi a despedida. Era um domingo, dia em que me apresentou a namorada. A mãe muito ciumenta, coruja. Um momento feliz, um dia magnífico. Tudo foi muito bonito. Meu filho pulando nas minhas costas, bincando com todo mundo, tirando fotos. Me apresentou a namorada, o sogro, a sogra. Enfim, às 22h, ele foi embora - para nunca mais voltar", conta.

Andreia de Oliveira é mãe de Christian Esmério, um dos jogadores mortos no incêndio no Ninho do Urubu (Arte/ R7)

Andreia de Oliveira é mãe de Christian Esmério, um dos jogadores mortos no incêndio no Ninho do Urubu

Arte/ R7

A expectativa de ouvir a massa rubro-negra gritando o nome do filho no Maracanã não existe mais. O amor pelo clube também não é mais o mesmo. Cristiano e a família, assim como os demais parentes dos meninos mortos, não veem mais o Fla com os mesmos olhos de antes.

"Passa muita coisa na cabeça. Meu filho tinha o sonho de jogar no Maracanã, ouvir a torcida gritar o nome dele. Estava caminhando para isso. Fico imaginando, mas agora existe aquele vazio. Não vai acontecer. Torço, mas sem aquela imaginação, aquela torcida toda gritando o nome dele. O sonho virou cinzas. É um vazio eterno", lastima.

A tragédia devastou a família. Cristiano passou a tomar remédios para a pressão. Andreia faz tratamento psiquiátrico. Depende de medicamentos para superar a depressão e, junto com os dois outros filhos, luta para vencer as dores da perda. 

“Hoje, tenho no meu mais velho um suporte. Sinto que posso deitar no colo dele, posso chorar e ele também, porque estamos vivendo a mesma perda. De nada adianta, para não trazer mais dor a eles, chorar num canto e eles em outro canto para não demonstrar a dor deles para mim e fazer de conta que nada está acontecendo”, desabafa.

Cristiano Júnior, de 19 anos, o mais velho, sente o peso de lidar com a perda do irmão com quem acreditava viver a melhor fase do relacionamento e a tentativa de dar apoio à mãe. Tímido, o jovem revelou que busca manter o foco em projetos profissionais como uma maneira de reunir forças.

“Sou muito de proteger. Fico preocupado com a minha mãe e meus irmãos. Tinha muita preocupação com o meu irmão. Depois que a minha mãe se separou, ele era o que tinha um lance mais forte com ela. Mas, até por ele ser uma pessoa muito boa, não via maldade em nada. Por isso, a gente brigava muito. Nos últimos meses antes da morte dele, a gente ficou mais junto. Parecíamos irmãos de verdade. Fiquei feliz por ter conseguido, pelo menos nesses últimos tempos, ter ficado mais próximo dele", diz.

Um dos campos do centro de treinamento do Flamengo onde os adolescentes jogavam (Márcio Neves/R7)

Um dos campos do centro de treinamento do Flamengo onde os adolescentes jogavam

Márcio Neves/R7
Meninos de futuro

O carisma e a educação eram também características notadas em outros meninos vitimados pela tragédia, como comenta o caseiro José Elias Alexandre, que vive há 35 anos em um sítio ao lado do Ninho do Urubu. A morte dos garotos, diz ele, chocou a comunidade local.

"Eu os conhecia de vista. Eles cumprimentavam a gente. Uma educação fora de série. Parece que foram bem-educados pelas famílias. No horário de folga deles, estavam com a gente... Triste pra caramba. Eram jogadores talentosos... Fatalidade. Mas os garotos tinham futuro”, lamenta.

Torcedor fanático do Flamengo, Alexandre diz esperar do clube uma ação rápida para quitar as pendências financeiras com os familiares dos atletas. "A gente gosta do clube, mas queremos que resolva. As vidas não vão voltar, mas tem que ter uma ajuda financeira. O clube tem que dar exemplo. O Flamengo deve acertar e acalmar um pouco o coração deles. Porque felicidade não vão ter nunca mais", completa.

José Elias Alexandre, torcedor fanático do Flamengo, espera ação rápida do clube para quitar as pendências financeiras com os familiares dos atletas (Lucas Martinez/Arte R7)

José Elias Alexandre, torcedor fanático do Flamengo, espera ação rápida do clube para quitar as pendências financeiras com os familiares dos atletas

Lucas Martinez/Arte R7

Alexandre conta que os jogadores da base não ficam mais alojados dentro do Ninho do Urubu. Após o incêndio, o local onde estavam instalados os contêineres que serviam de dormitório para os garotos da base, bem próximo à entrada do CT, foi transformado em estacionamento.

Agora, o Flamengo aluga uma casa localizada em um terreno aos fundos do centro de treinamento. Moradores confirmaram à reportagem do R7 que a residência é utilizada pelo clube e, atualmente, três jovens moram ali. 

Luto, carência e mágoa

O luto das famílias é acompanhado de profunda mágoa. Os parentes entendem que foram desprezados pelo Flamengo. Mais do que o dinheiro da indenização, cobram reconhecimento pelo talento e importância dos meninos.

"O Flamengo se esconde, nega detalhes. O clube precisa aprender a conviver com o que aconteceu. Pagando indenização ou não, a tragédia aconteceu. As famílias são carentes de uma lembrança. Há uma separação entre Flamengo e família, promovida pelo clube", lamenta Milton Rodrigues de Souza, 52 anos, tio do lateral Samuel e coordenador da ONG Bom de Bola, onde o garoto deu os primeiros passos no futebol.

Cristiana Rosa, 48 anos, mãe de Samuel, luta pelo equilíbrio necessário para seguir adiante ao lado do marido, que, abalado, prefere não falar do assunto. O mais velho, Gabriel, 22, acompanha em silêncio a movimentação no projeto social liderado pelo tio e escolhido como local de encontro inicial para a entrevista ao R7, em São João do Meriti, na Grande Rio.

Cristina Rosa, mãe de Samuel, uma vítima da tragédia do Ninho do Urubu (Lucas Martinez/Arte R7)

Cristina Rosa, mãe de Samuel, uma vítima da tragédia do Ninho do Urubu

Lucas Martinez/Arte R7

Cristiana reconhece o esforço dos funcionários do Flamengo com questões importantes como deslocamento de parentes, pagamento de médicos e remédios. Mas reclama do que entende ser uma tentativa da diretoria de reduzir o talento do filho na manobra para induzi-la a aceitar a indenização proposta.

“Isso é muito mais doloroso do que tudo. A conversa é só dinheiro - e ele está longe de ser tudo. Lutamos pelos meninos. Se eles estivessem entre nós, o Flamengo não estaria se beneficiando? O Christian (Esmério, amigo de Samuel) foi para a seleção. Pensam que podem jogar qualquer coisa só porque somos de famílias humildes?", questiona. 

Outro ponto em comum entre os familiares é a sensação de que a tragédia ocorreu por negligência dos responsáveis pelo Ninho. Antes do incêndio, o clube colecionou 31 multas emitidas pela Prefeitura do Rio de Janeiro por irregularidades no CT. Em 2015, o Ministério Público fluminense impetrou uma ação civil pública para cobrar a adoção de medidas de segurança no espaço.

"Foi negligência", resume Cristina. "O ar-condicionado estava escangalhado há muito tempo. O Flamengo tem muito dinheiro. Poderiam trocar. Nunca soube que meu filho dormia em um contêiner. Aquilo não era lugar para isso. Parecia um presídio, com grade e tudo, sem qualquer segurança nas madrugadas. Mesmo se tentassem sair, não havia como. Tudo trancado. Ficaram presos", enfatiza.

"Precificação" de um filho

O processo público geral sobre as indenizações tramita na 1ª Vara Cível da Barra da Tijuca, também na zona oeste do Rio. Uma decisão provisória determina que o Flamengo pague R$ 10 mil às seis famílias com as quais ainda não firmou acordo.  O clube tem efetuado os depósitos.

O valor por morte, R$ 1,2 milhão, estaria bem abaixo do sugerido pelo Ministério e a Defensoria do Rio de Janeiro, que participam da tentativa de conciliação entre as partes sobre as indenizações, pensões mensais e tempo de pagamento.

Não bastasse, as famílias sofrem com o que dizem ser atitudes preconceituosas de dirigentes e torcedores sobre as negociações. Nas redes sociais, há um grande número de críticas e ataques aos familiares em comentários sobre o andamento dos acordos.

"Falta de humanidade. Perder um filho que tinha sonho, projeto de vida, e ainda ouvir de terceiros que visamos apenas dinheiro é doloroso demais. Esperamos do Flamengo uma explicação sobre os motivos de nos ter abandonado nesse tempo. Antes de tudo, os familiares precisavam, e ainda necessitam, de carinho, atenção, compreensão do momento em que vivemos, mas, em vez disso, estão nos dando as costas", pondera Cristiano Esmério.

Certa vez, contrariado pelo discurso dos advogados do clube, Esmério abandonou uma das reuniões. "Se nosso objetivo único fosse dinheiro, teríamos entrado com processos individuais familiares contra o clube, coisa que não fizemos", podera.

A paciência da dona de casa Rosana de Souza, 50 anos, mãe do meia Rykelmo, esgotou-se mais cedo. Ferida pelo "desprezo e pressão na precificação" do filho, moveu uma ação judicial contra o rubro-negro. Não suportou a estratégia dos advogados do clube de lançar dúvidas sobre o valor, o talento e as possibilidades de sucesso futuro em campo de seu menino, e dos outros jovens promissores, para justificar o pagamento de valores mais baixos.

"Perguntavam: 'tem certeza de que ele seria um jogador profissional? Aos 20 anos, ele poderia casar e te deixar'. Era isso que jogavam lá. Mas não existe esse será. O que existe é que perdemos nossos filhos dentro do Flamengo. Para eles, os meninos eram lucro. Enquanto está lá, jogando bonito, é lucro. Depois, é desprezado. Se não me dá lucro, está de escanteio, morto, enterrado. Vão empurrando até que as famílias se cansem", desabafa Rosana.

Uma das entradas da sede social do Flamengo, na Gávea, zona sul do Rio (Márcio Neves/R7)

Uma das entradas da sede social do Flamengo, na Gávea, zona sul do Rio

Márcio Neves/R7

O cabeleireiro e corretor de imóveis José Lopes Viana, 60 anos, pai de Ryquelmo, separado de Rosana, teve percepção diferente. Dias depois da tragédia, ele procurou o departamento jurídico do Flamengo e assinou um acordo. A cisão familiar fez com que a indenização fosse dividida. A mãe aguarda um final, no tribunal ou fora dele, mas Viana passou a receber as prestações da sua parte nas bases aceitas por ele.

"É muito ruim ficar pensando num dinheiro que nunca quis, sobretudo da maneira que foi. Orientado pelos meus advogados, fechei sem dificuldade quando saiu um acordo que julguei bom. Tenho serviço, sempre trabalhei. Aceitar o entendimento foi uma forma de me afastar dessa confusão desgastante", justifica Viana.

Engana-se, porém, quem imagina que a decisão indique distanciamento ou oportunismo de Viana, Bolívia para os íntimos, com o menininho cujas fraldas trocava à beira do campo enquanto disputava torneios de futebol, em Limeira, no interior de São Paulo.

"O Rykelmo era tudo para mim. Quando a gente se separou ele tinha quatro ou cinco anos, mas nossa relação era muito próxima. O filho que todo pai deseja ter: bom, humilde, tranquilo. Queria era jogar bola; nasceu para isso", relembra Bolívia, emocionado, após um silêncio providencial para ajudar a segurar as lágrimas.

A parte recebida pelo pai de Rykelmo é contestada na Justiça pela advogada Gislaine Nunes, representante da mãe do atleta morto. A intenção é reverter os pagamentos efetuados pelo clube. "Peço que devolvam os valores para o guardião do menino, que era a mãe", diz Gislaine.

A advogada também acusa a diretoria rubro-negra de tratar os familiares das vítimas "com desprezo" e lamenta a recusa em aceitar as demandas dos requerentes, especialmente pelo grande sucesso esportivo e financeiro obtido na temporada passada. "Vejo o Flamengo comemorar grandes títulos em cima de dez túmulos e não tem nenhuma preocupação em sanar esses problemas", diz ela.

Os relatos de participantes de reuniões de conciliação denunciam pressão exercida por advogados do Flamengo para que as famílias aceitem os valores propostos pela diretoria rubro-negra. O clima desses encontros seria de tensão. A postura dos representantes jurídicos do clube gerou indignação nos pais dos meninos mortos.

O que diz o ex-presidente

Fora dos holofotes, o ex-presidente do clube, Eduardo Bandeira de Mello, que teve o mandato encerrado no fim de 2018, cerca de 40 dias antes da tragédia, e indiciado pela Polícia Civil no inquérito que apura as causas do acidente, diz "confiar nas autoridades". Ele lamenta profundamente as vidas perdidas no incêndio ocorrido nas instalações onde os meninos da base dormiam.

"Meu sentimento continua sendo de tristeza. Conhecia a maioria dos meninos. Foi a maior tragédia da história do Flamengo. Sempre fui extremamente dedicado ao futebol de base, tanto que construímos dois centros de treinamento", conta.

Impossibilitado de interferir na condução das negociações da atual diretoria, com quem tem relações rompidas, Bandeira de Mello ressalta que torce pela reparação e destaca a necessidade de se ter cuidado para que a reputação do clube não seja afetada pelo episódio.

"Fico numa situação delicada porque a atual diretoria não gosta de mim. É preciso respeitar a dor das famílias. Além da solidariedade, humanidade e respeito por quem perdeu crianças, há a responsabilidade social do clube. Custou muito ao Flamengo recuperar a credibilidade e um evento como esse pode colocar tudo a perder", avalia o ex-presidente.

Um dos campos de treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro (Márcio Neves/R7)

Um dos campos de treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro

Márcio Neves/R7
Os bastidores da jornada

Para retratar as famílias dos meninos do Ninho um ano após a tragédia, eu e o repórter Márcio Neves chegamos ao Rio no dia em que a cidade vivia o feriado municipal de 20 de janeiro. Fomos prontamente acolhidos pelo motorista Márcio Ricardo, nosso guia nas andanças pela Cidade Maravilhosa em busca das histórias.

Na Gávea, sede oficial do Flamengo, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul carioca, um dos endereços mais cobiçados do mundo, torcedores rubro-negros aproveitavam a data para visitar a sede do time mais popular do Brasil.

Flamenguistas saíam da loja do clube carregando sacolas com produtos, lembranças e presentes para amigos e parentes. O passeio tinha como obrigatória a parada para selfies, depois compartilhadas nas redes sociais.

Os pontos preferidos para poses dos torcedores orgulhosos eram a escadaria (que tem o hino do clube, composto por Lamartine Babo, escrito em seus degraus) da entrada principal e ao lado das estátuas de grandes ídolos rubro-negros, como Zico, Adílio, Leandro e Nunes, craques do passado que colocaram o nome do Flamengo no topo do mundo.

Cristiano Júnior Cândido, irmão de jogador morto na tragédia no Ninho do Urubu (Arte/ R7)

Cristiano Júnior Cândido, irmão de jogador morto na tragédia no Ninho do Urubu

Arte/ R7

O esquecimento machuca as famílias. É comum, nos depoimentos de pais, mães, irmãos e tios dos jovens colhidos pela reportagem do R7, perceber a tristeza pela forma como o Flamengo lidou com a memória dos meninos. As poucas homenagens foram insuficientes para amenizar a mágoa.

Curiosamente, a angústia inspira dona Cristina, mãe de Samuel, a seguir adiante. Ela e o irmão falam em união com as outras nove famílias para escrever a história dos garotos.

"Meu sonho maior é ver essa biografia pronta em um livro. Eu escrevendo a história do Samuel. Do nascimento até a chegada no clube. E as mães escrevendo também para que os meninos do Ninho não sejam esquecidos. Um sonho interrompido pelo Flamengo", projeta.

Fla fala... para a FLA TV

Como resposta aos questionamentos e pedidos de entrevista, inclusive do R7, o Flamengo optou por postar um vídeo no canal do clube, a Fla TV, nas redes sociais rebatendo críticas sobre a relação com os familiares desde a tragédia no Ninho. Há comentários também sobre causas do acidente, pagamento de indenizações e melhorias na estrutura do CT.

Foram ouvidos por uma jornalista da  Fla TV, o atual presidente, Rodolfo Landim, o vice-presidente geral e jurídico, Rodrigo Dunshee de Abranches, e o CEO do clube rubro-negro, Reinaldo Belotti. A entrevista incluiu perguntas enviadas por jornalistas de outros veículos, mas feitas sem réplicas pela jornalista da casa. Não foi divulgado se houve alquma questão recusada.  

Landim classificou o acidente como a maior tragédia da história do Flamengo e afirmou que todos os funcionários do clube — e os torcedores — terão de conviver com as lembranças do ocorrido por muito tempo. "Certamente, por mais que isso vá com o tempo sendo curado, vão ficar as cicatrizes", diz.

A diretoria garante caminhar para virar a "página triste". Alega ter amenizado os efeitos do acidente com melhorias na infraestrutura do centro de treinamento e na sede social. "Melhorou sim, e muito, a gestão do Ninho do Urubu", acredita Belotti.

"Usamos essa tragédia para reanalisar procedimentos e melhorar nossa atuação em casos desse tipo. Mudamos nossa estrutura de acompanhamento de assuntos relacionados a saúde, meio ambiente e segurança operacional. Reavaliamos os procedimentos e os melhoramos", complementou o CEO.

A cúpula também garante estar aberta a receber os familiares das vítimas para negociar as indenizações, mas reitera que o clube estabeleceu um teto nos valores dos pagamentos. E que a oferta é "altíssima", muito acima do visto em outras negociações no país. Por isso, não estabelece um prazo para quitar a dívida com as famílias dos jogadores.

"Muito difícil (estipular uma data). O que podemos dizer é que estamos abertos. Isso não depende só do Flamengo, mas das famílias e do tempo delas. É difícil estabelecer e dizer um prazo. A gente vai estar sempre aberto a fazer esse tipo de acordo", reforçou o presidente da agremiação.

Exigir que o Flamengo pague cem por cento do que familiares pedem ou relacionar o alto faturamento recente do clube à necessidade de se aumentar geometricamente as quantias são argumentos inocentes e carentes de lógica ou respaldo histórico.

Mas uma parte estabelecer um teto longe do resultado final de negociações, antes mesmo de se sentar à mesa para o sprint final, é mergulhar na mesmíssima inocência despropositada.

Se há teto imposto por alguém, para o bem ou para o mal, as partes conhecem de antemão o preço máximo. E, se todos conhecem o preço máximo antes do aperto de mãos inicial, isso pode ser chamado de tudo - menos de negociação. Elementar como isso.   

O sim de "três pais e meio"

Além dos "três acordos e meio" firmados com familiares dos adolescentes mortos, o Flamengo fechou outros 20 acertos com os sobreviventes e jogadores feridos no incêndio.

O clube iniciou o pagamento espontâneo de R$ 5 mil para cada uma das famílias para dar tranquilidade aos envolvidos e suprir necessidades emergenciais financeiras durante as negociações. "Os garotos recebiam R$ 800 por mês e o clube pagou seis vezes mais", destaca o vice-presidente geral e jurídico, Rodrigo Dunshee de Abranches.

O Ministério Público e a Defensoria do Rio de Janeiro entraram com ação judicial na qual pediram a penhora no valor de R$ 57 milhões do clube. De acordo com Dunshee, o juiz responsável entendeu que garantir o pagamento de R$ 10 mil aos parentes até a solução final dos casos seria melhor do que penhorar a quantia. "A decisão está valendo e o Flamengo deposita R$ 10 mil mensais para as famílias", acrescentou o dirigente.

Indenizações às famílias (Arte/ R7)

Indenizações às famílias

Arte/ R7

No vídeo, os dirigentes rebatem também acusações de desprezo aos familiares e de relativização da qualidade dos jovens para diminuir as indenizações.

Outra suspeita de algumas famílias, veementemente rechaçada pelos dirigentes, é a de ter permitido linchamentos virtuais, nas redes sociais, por grupos de torcedores que enxergam desejo de enriquecimento com a morte dos filhos.

"Controlar mídia social é difícil. Todas as pessoas têm direito de pleitear o que consideram justo, em última análise, até na Justiça. Mas não controlo a mídia", pondera o presidente Landim.

Nos planos, um memorial

O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, estuda a construção de um memorial para homenagear os dez garotos que perderam a vida no Ninho do Urubu. "Há o projeto de construir um espaço religioso, a exemplo do que existe na Gávea, com um local específico em homenagem aos meninos", confirma.

O que dizem bombeiros...

Em nota, o Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro informou que o Flamengo assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto à corporação para a execução das medidas contra incêndio e pânico previstas em lei. O processo está em andamento e o prazo de conclusão é dezembro de 2020.

... prefeitura...

De acordo com a Prefeitura do Rio de Janeiro, o Ninho do Urubu tem alvará de funcionamento válido para toda a área construída e não existe pendência ou autuações. Quanto ao habite-se definitivo, ainda não foi entregue porque existem dois prédios independentes em construção: um depósito e um vestiário. Ao final dessas obras, nova vistoria será marcada para que seja dado o habite-se definitivo.

... Polícia Civil e MP

O R7 enviou pedidos de entrevista e esclarecimentos sobre o inquérito policial aberto para apurar causas e responsáveis pelo incêndio no Ninho. Por meio da assessoria de imprensa, a Polícia Civil destacou que o inquérito voltou do Ministério Público à 42ª DP (Recreio dos Bandeirantes) para cumprimento de novas partes da investigação.

O Ministério Público informou que "os promotores não irão se pronunciar até o fim das investigações que voltaram a ser realizadas pela 42ª DP no dia 18 de dezembro de 2019".

Em 2019, o Flamengo foi campeão carioca, do Brasileirão e da Libertadores. Poucas vezes ouviu-se tanto o "Uma vez Flamengo, sempre Flamengo", os versos iniciais do hino do clube mais querido do Brasil. Mas, no seio dessas famílias desgastadas ao máximo pela tragédia, a máxima ainda presente, aparentemente ainda mais forte um ano depois, é:

- Uma vez lamento, sempre lamento.

Ninho do Urubu foi palco de uma tragédia envolvendo os jogadores de base, 10 adolescentes morreram num incêndio no local (Márcio Neves/R7)

Ninho do Urubu foi palco de uma tragédia envolvendo os jogadores de base, 10 adolescentes morreram num incêndio no local

Márcio Neves/R7

Coordenação: Tatiana Chiari
Reportagem: Cesar Sacheto
Pauta: André Avelar
Edição: Eduardo Marini
Apoio: Luciana Mastrorosa
Apoio e produção Rio: Bruna Oliveira, Lucas Ferreira, Paulo Rosa, Raíza Chaves
Arte: Lucas Martinez
Fotos: Márcio Neves 
Vídeo: Márcio Neves
Estagiária: Denise Marino 
Edição de vídeo: Edimar Sabatine e Danilo Barboza
Videografismo: Eriq Gabriel Di Stefani e Marisa Eiko Kinoshita
Sonoplastia: Luciano Gonçalves