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Catarina Hong, da Record TV

Quem passa pelo Minhocão de carro pode ter sentimentos conflitantes. Por um lado, um certo prazer em deslizar por cima das ruas, sem semáforos para atravancar o caminho entre as zonas leste e oeste da capital paulista. Por outro lado, uma fagulha de pena de quem mora nos prédios colados ao Elevado. O motorista empático imagina o barulho, a falta de privacidade, o pó…

O Elevado João Goulart, que já se chamou Costa e Silva, e todo paulistano conhece como Minhocão, sempre foi motivo de controvérsia. Construído em apenas 11 meses quando Paulo Maluf esteve à frente da Prefeitura de São Paulo, foi concluído no fim dos anos 60 e, de imediato, atropelou o valor dos imóveis do entorno. Poucos desejam morar ali tendo um vizinho como esse: barulhento em cima, feio embaixo.

André Amaral está entre esses poucos. “Eu me apaixonei por essa janela”, diz ele com brilho nos olhos ao contar que, há pouco mais de dois anos, passou pela frente do prédio em obras e recebeu um folheto que anunciava a venda de apartamentos ali. Entrou e nunca mais saiu. Foi amor à primeira vista. "Quando vi, achei que ia ficar lindo. Além do espaço ser muito bom, grande, tinha o público do Minhocão, passando na frente e vendo o que eu faço como trabalho. Como eu gosto muito do que eu faço, eu acho legal as pessoas conhecerem".

A história é ainda mais pitoresca quando se conhece o ofício de André. Ele é luthier de instrumentos de corda. Constrói violinos, violas e violoncelos. O verbo é este mesmo: construir. André faz os instrumentos do zero, a partir de um toco de madeira. Claro que não madeira qualquer. É abeto, de zonas temperadas, usada na Europa para a construção civil e para a fabricação de instrumentos.

Nas paredes do atelier de André, ferramentas, peças, materiais de lutheria e instrumentos ainda em processo de construção ficam expostos de forma meticulosa e organizada. Além da madeira europeia, ele utiliza crina de cavalo importada da Mongólia para fazer o arco, que até hoje tem no nosso pau-brasil a melhor matéria-prima.

André começou na música como violinista. Aos 14 anos, quis aprender a tocar o instrumento por influência do pai. Na época, a família vivia em Piquete, cidade do Vale do Paraíba, onde não havia professor qualificado. Tomava aulas então em Lorena, cidade vizinha, e, depois, em Taubaté. O menino levava jeito. Só tinha um problema. Ele virava os violinos do avesso.

Eu gostava de fuçar o violino pra tentar melhorá-lo, puxar o cavalete, mexer nas cordas, afinar de um jeito diferente

Foi um professor de André, o húngaro George Kiszely, que lhe mostrou um outro caminho. "Ele olhou pra mim e falou: você tem que ter uma outra profissão". André foi então estudar lutheria no Conservatório Dramático Musical Carlos de Campos, em Tatuí, no interior de São Paulo.

Depois de 5 anos, já luthier formado, ele veio para a capital trabalhar no Projeto Guri. Foram três anos consertando e restaurando os instrumentos do projeto. Mas André queria beber da fonte. Juntou o que tinha e foi para Cremona, no norte da Itália, cidade do maior luthier de todos os tempos, Antonio Stradivari, que viveu entre os séculos 17 e 18. André conseguiu uma vaga num curso de lutheria na capital do violino.

"É uma cidade que respira lutheria, tem quase 700 pessoas que trabalham com isso lá e é um mercado muito forte", explica. Mas ele gastou tudo que tinha em um mês, com material e ferramentas. "Quando estava muito difícil a situação, ganhei uma bolsa da Funarte e, graças a ela, consegui terminar meus estudos lá".

Hoje, para fazer os violinos, ele usa os moldes de instrumentos fabricados pelo próprio Stradivari, além dos de Giuseppe Guarneri, luthier também original de Cremona, contemporâneo de Stradivari, e que rivaliza com ele em prestígio e valor dos instrumentos.

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Reprodução/Vídeo

O artesão voltou da Itália afinadíssimo e passou a receber muitos pedidos. Já construiu instrumentos para alguns dos melhores músicos das principais orquestras do Brasil e também de outros países.

Uma delas é Adriana Holtz, violoncelista da Osesp, a Orquestra Sinfônica de São Paulo. Ela tem um violoncelo de fábrica antiga, um instrumento com mais de 60 anos. Mas queria um violoncelo com um "lá mais brilhante", como ela diz, uma nota mais aberta, mais alegre. Soube de André Amaral e não teve dúvida.

"O instrumento de fábrica é feito por máquinas, não tem a mão de uma pessoa, a energia, o olhar, o corte, é artesanal, essa é a diferença. Tem uma pessoa dedicada ao instrumento". Hoje, o violoncelo feito por André é o que viaja com Adriana Holtz, participa de ensaios e apresentações.Aruã Arellano, violinista do Instituto Baccarelli, também é fã declarado dos instrumentos de André Amaral. Desde 2011, ele tem um violino feito pelo luthier. "A questão é a projeção sonora dele. Instrumentos de luthier projetam muito bem, têm um som quente, caloroso, gordo, um som que envolve".

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Reprodução/Vídeo

O som gordo ou brilhante é feito sob medida para cada músico. Eles fazem pedidos especiais e André utiliza técnicas de marcenaria de alto nível, além de química e física acústica para atender às demandas dos músicos. "É uma arte completa. Tem muita ciência envolvida", afirma.

Adriana Holtz explica que um instrumento feito por luthier nunca vai ser igual a outro. "A madeira é diferente, a temperatura do dia é diferente, o corte da mão dele". Mas todos têm o DNA do luthier.

"É muito bonito, muito poético ver esses instrumentos à beira do elevado", diz Adriana. "Eu até sugeri fazer um concerto, abrir as janelas e, quando o elevado é fechado, tocar para as pessoas assistirem a um pouco de música pela janela, acho que vai ficar bem bonito".

O apartamento fica no primeiro andar de um prédio de meados do século passado, que passou por uma remodelagem, o chamado retrofit. O hall de entrada e os corredores têm uma decoração moderninha com ares vintage: um banho de loja no prédio para o qual muitos torciam o nariz. E onde André encontrou espaço para moradia, atelier e vitrine.

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Reprodução/Vídeo

E o barulho? "Não atrapalha e para mim acaba sendo bom, porque eu faço barulho". André não tem hora para terminar o trabalho. Às vezes, fica até de madrugada num instrumento.

Um violino leva, em média, um mês para ficar pronto. E tem fila de encomendas - uma delas é de um violino para o spalla, o primeiro-violino, da Osesp, Emmanuele Baldini. "No meu prédio anterior, eu tive que resolver esses barulhos. Eu precisava muito do aspirador ligado então construí uma caixa que não deixa o aspirador de pó fazer barulho. Aqui não preciso me preocupar".

O ruído constante do tráfego de carros se torna um zumbido que pouco se nota depois de certo tempo. "Se me canso, coloco uma música clássica", diz ele. Daqui, o luthier não sai mais. E quando a pandemia acabar, o projeto é transformar o que é vitrine em palco.

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Reprodução/Vídeo

 


Reportagem: Catarina Hong
Pauta: Gabriela Coelho
Imagens e fotos: Luis Felipe Silveira
Edição de texto (vídeo): Pedro Veloso
Pós-produção (vídeo): Yu Teh Huang
Coordenação de conteúdo: Camila Moraes e Luciana Bergamo
Diretor de Conteúdo de Jornalismo: Thiago Contreira