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Maria Luiza Reis, do R7

O que fazer quando tudo aquilo que você conhece como lar é destruído? Para Mauro Marco da Silva, morador de Bento Rodrigues e descendente de pessoas escravizadas que chegaram à região no período colonial, a tragédia de Mariana deixou uma cicatriz profunda, não apenas no território, mas também em seu sentido de pertencimento.

Desde o dia 5 de novembro de 2015, quando a barragem de Fundão rompeu, despejando 45 milhões de m³ de rejeitos de minério, as pessoas da região vivem o impacto de um território que lutam para manter vivo em suas memórias e histórias. A lama destruiu rios, contaminou o solo e cobriu 32 mil km² entre Minas Gerais e o Espírito Santo, atingindo 49 cidades e deixando um rastro de dor e perda.

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Arte R7

No entanto, a luta de Mauro e dos moradores de Bento Rodrigues é também pela preservação da identidade que existe ali. “A gente luta para que esse território não seja visto como um lugar morto. O que foi destruído pelo homem, o homem pode reconstruir, mas a natureza e nossa história, essas continuam firmes”, diz.

Mauro tenta resgatar história da comunidade (Maria Luiza Reis / R7)

Mauro tenta resgatar história da comunidade

Maria Luiza Reis / R7

Uma das maneiras de Mauro tentar manter o vínculo com Bento Rodrigues foi ir atrás da história da própria família.

Eu sou descendente de pessoas escravizadas que chegaram com os bandeirantes e, após a abolição da escravidão, foram permanecendo no território. Eu precisava saber de onde eu vim para saber ao certo onde eu estou e para onde quero chegar

Mauro Marco da Silva, vítima

Para ele, o desastre interrompeu a continuidade entre passado, presente e futuro de sua vida e de sua comunidade. "Esse processo está deixando um vácuo, um elo que não se fecha entre o passado e o futuro”, fala.

Antigo Bento Rodrigues se tornou comunidade 'fantasma' coberta por mato (Maria Luiza Reis / R7)

Antigo Bento Rodrigues se tornou comunidade 'fantasma' coberta por mato

Maria Luiza Reis / R7

Mauro vê com cautela o acordo de repactuação, anunciado em 25 de outubro de 2024 e firmado entre o Governo Federal, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as empresas mineradoras Samarco, Vale e BHP. Embora o pacto prometa avanços significativos em reparação e investimentos locais, há uma percepção entre os atingidos de que as promessas anteriores não foram cumpridas de forma eficaz.

Além disso, Mauro aponta que as decisões até agora não consideraram plenamente as necessidades reais da comunidade. “Falaram por nós, decidiram por nós, mas em benefício mais deles do que de nós. Se pudéssemos começar do zero, seria melhor do que tentar consertar ao longo do caminho”, defende.

O pacto promete garantir R$ 170 bilhões em investimentos ao longo de 20 anos para a recuperação e compensação dos danos socioambientais e econômicos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. O acordo prevê ainda, entre outras coisas, assistência financeira contínua para pescadores e agricultores afetados, além de apoio específico para mulheres vítimas de discriminação no processo de reparação e iniciativas para povos indígenas e comunidades tradicionais. Do total, cerca de R$ 81 bilhões vão ficar em Minas Gerais.

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Arte / R7

No entanto, na visão de Mauro, o único caminho para um futuro digno dos atingidos pela barragem é por meio do julgamento que acontece em Londres. A ação pede cerca de R$ 230 bilhões para 640 mil atingidos, que esperam que suas histórias e perdas sejam reconhecidas. “A ação em Londres é nossa única esperança de um futuro digno”, diz Mauro, lamentando a demora da Justiça brasileira em dar uma resposta. “É vergonhoso que a gente precise confiar mais na justiça estrangeira do que na nossa própria”.

A ação em Londres, que iniciou em outubro de 2023, é um processo movido por 640 mil pessoas, instituições e municípios brasileiros contra a mineradora BHP Billiton, uma das empresas controladoras da Samarco ao lado da Vale. O julgamento busca a responsabilização da BHP pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana e aponta que a administração da mineradora teria conhecimento dos riscos à segurança da barragem e poderia ter evitado o desastre.

A escolha de um tribunal inglês se deu porque a BHP é sediada no Reino Unido, e o julgamento no Brasil ainda não resultou em uma decisão definitiva para os atingidos. O julgamento tem previsão para ser finalizado em 2025.

Até lá, os moradores que tiveram suas casas destruídas pela lama estão sendo realocados nos reassentamentos construídos pela Fundação Renova, uma entidade criada em 2016 pelas mineradoras para conduzir ações de reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento.

Veja no vídeo abaixo como é dentro de uma das casas construídas no Novo Bento:

Apesar das construções terem sido feitas com consulta aos moradores, muitos deles,  incluindo Mauro, expressam insatisfação com o reassentamento. Umas das principais reclamações é que o novo espaço não permite retomar o mesmo modo de vida que existia antes, como o cultivo de jabuticabeiras centenárias e o sistema de trocas entre vizinhos.

“Eu vejo o reassentamento como um ponto de estado e não como a minha conexão com a origem. Infelizmente, eu não vou poder retomar minha atividade econômica no reassentamento, porque a minha cultura predominante de renda eram os pés de jabuticaba centenários”, explica Mauro.

Em podcast, Mauro relata o desafio manter viva a memória da comunidade destruída:

Além de uma ser residências essencialmente diferentes daquelas de origem, os moradores reclamam também da qualidade das construções. É o caso do José do Nascimento de Jesus, ou como é conhecido por todos na região, “Zezinho do Bento”. Seu Zezinho conta que foi responsável pela construção de centenas de casas em Bento Rodrigues. Por esse motivos, ele foi escolhido para ser o representante dos atingidos na fiscalização das construções.

A casa do Seu Zezinho está pronta, mas apesar de recém construída, já apresenta problemas de infiltração.  “Quando não chovia, tava tudo beleza, mas veio a chuva, que nós não vivemos sem ela, e apareceu todos esses defeitos”, conta.

À esquerda, Seu Zezinho onde ficava sua casa em Bento Rodrigues. À direita, Seu Zezinho na casa construída pela Renova (Maria Luiza Reis / R7)

À esquerda, Seu Zezinho onde ficava sua casa em Bento Rodrigues. À direita, Seu Zezinho na casa construída pela Renova

Maria Luiza Reis / R7

A casa do Seu Zezinho no Novo Bento tem dois andares, três quartos, uma área gourmet, espaço para construção de uma piscina e também um quarto que dá para a rua e pode ser utilizado como comércio. Todo o projeto arquitetônico foi pensado e pedido por Seu Zezinho e sua esposa, Dona Irene. Apesar disso, para eles, a construção está longe de se tornar um lar. “Eu não quero vir morar aqui. Eu vou ficar morando aqui e pensando no que eu tinha lá”, desabafa.

Hoje, nove anos depois, tudo o que sobrou da antiga casa de Seu Zezinho, em Bento Rodrigues, são vigas de aço. Ao andar pelo vilarejo, a sensação é de uma cidade abandonada, as construções que sobraram estão ainda sujas de lama e alguns móveis. É possível ver colchões em casas e mesas de jogos onde funcionava um bar.

A praça onde o idoso, de 78 anos, encontrava os vizinhos, diariamente, para jogar cartas está coberta de grama. Esse é um dos muitos hábitos que a lama levou e de que ele sente falta. “Era uma praça animada. Hoje, é um monte de rejeito”.

Veja o que restrou da praça da comunidade:

Seu Zezinho diz que não gosta de ir a Bento Rodrigues. “Eu sinto tristeza, dor no peito. Eu não gosto de vir aqui, me dá vontade de chorar”, conta. Passada quase uma década desde a tragédia, os moradores de Bento Rodrigues se deparam com uma realidade marcada pela ausência e pela tentativa de reconstrução. Para Mauro, Seu Zezinho e muitos outros, as novas casas do reassentamento ainda não substituem o que perderam: laços antigos, a produção autossustentável e o cotidiano entre vizinhos.

As expectativas agora se voltam ao julgamento em Londres. Enquanto aguardam a conclusão do processo, o vilarejo segue como um símbolo de resistência e memória, na esperança de que os próximos anos tragam uma reparação que respeite a história e os direitos daqueles que ali construíram suas vidas.

Outro lado

A Renova informou que a manutenção nos imóveis pode ser relatada direto no centro de atendimento ao morador. A BHP brasil disse que está trabalhando para finalizar um processo de compensação e reparação justo e abrangente. A vale destacou que vai seguir apoiando a execução do acordo definitivo, anunciado no dia 25 de outubro entre órgãos de Justiça, Governo Federal, Governo de Minas Gerais e do Espírito Santo. Já a Samarco reforçou que o acordo de repactuação estabelece as bases definitivas para as ações de reparação e compensação.


Reportagem: Maria Luiza Reis
Edição de podcast: Diego Fialho
Produção: Bruno Menezes
Direção de jornalismo RECORD Minas: Marco Nascimento
Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia:
Bia Cioffi