Ver o conteúdo do artigo
Bruna Lima, do R7

Enquanto montadoras reforçam a aposta em veículos cada vez mais tecnológicos, equipados com sensores e câmeras para elevar o nível de automação, e até desenvolvem carros capazes de dirigir sem motoristas, apenas 34% de toda a malha rodoviária pavimentada federal e das principais rodovias estaduais do Brasil estão adequadas para viabilizar o uso, ainda restrito, dessas funcionalidades. São carros do futuro que não são projetados para rodar em estradas do passado, como no caso brasileiro.

O percentual da malha em que esses veículos seriam funcionais leva em conta a soma das classificações “ótimo” e “bom” do estado geral de mais de 110 mil quilômetros de rodovias contempladas no levantamento mais recente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), de 2022. “A avaliação considera os grupos de pavimento, sinalização e geometria da via, que são variáveis perceptíveis para o usuário das rodovias”, explica o diretor-executivo da CNT, Bruno Batista.

Recurso já presente em carros no Brasil, o reconhecimento de faixas, por exemplo, não consegue ser eficaz sem uma pintura adequada e nítida no asfalto. Quanto às condições das faixas laterais, a CNT avaliou que 40,2% delas encontravam-se desgastadas e 14,3% nem sequer existiam. Em relação às faixas centrais, pouco mais da metade (51,7%) foram avaliadas como visíveis.

“O ideal para aplicação das tecnologias voltadas à automação seria que a classificação estivesse entre ‘ótima’ e ‘boa’. A ‘regular’ significa que existem elementos dentro do determinado trecho que estão ausentes, mas a evolução da automação pressupõe regularidade na infraestrutura e sistema de leitura de informação. E o país, como um todo, ainda é bastante deficiente nisso”, diz Batista.

A análise leva em conta 51,7% da malha pavimentada brasileira, não incluindo vias municipais e parte das estaduais. Deixa de fora, sobretudo, a maior parte das rodovias nacionais: 1,4 milhão de quilômetros que nem sequer são pavimentados e representam 87,6% de toda a malha rodoviária brasileira, composta de 1,7 milhão de quilômetros, de acordo com dados do Sistema Nacional de Viação.

Ao somar toda essa dimensão rodoviária, Batista afirma que a implementação fica ainda mais crítica. “Não conseguimos nem fazer avaliação disso porque não tem um padrão. É, sem dúvida, um desafio ainda maior. Exige organização dos investimentos para resolver as atuais pendências em um ritmo mais rápido e, a partir daí, começar a construir rodovias mais modernas e preparadas para a incorporação dessas tecnologias.”

Avanços tecnológicos

O desafio está imposto enquanto a tecnologia dispara em alta velocidade, mirando a automação completa. O fato é que nenhum lugar do mundo está completamente preparado para carros que dirigem sem nenhuma intervenção humana. Tecnologias para isso são ofertadas por empresas como Tesla, BMW, Volvo, Toyota, Hyundai, Volkswagen , GWM e Waymo (parte da Alphabet, proprietária da Google).

Estados Unidos, China e parte dos países da Europa e da Ásia já permitem a circulação de carros por aplicativo sem motoristas. Moradora de Phoenix (EUA), a brasileira e influencer digital Livian Lima teve a oportunidade de usar o serviço.

“A experiência de andar num carro sem motorista é totalmente diferente de tudo aquilo que eu já tenha vivido. Você vê o carro chegando sozinho, parece até um robô, ele é um robô. Dentro também é muito doido, porque tem o volante, que faz os movimentos normais. Dá a sensação de que tem alguém ali invisível dirigindo”, conta.

Mesmo nos locais mais desenvolvidos, a aplicação dessa tecnologia é relativamente nova e passa pelo processo de testagem, afirma o engenheiro mecânico Evandro Teixeira, especialista em eletrônica veicular e engenharia de software automotivo. “O que se persegue é garantir que o sistema tenha a percepção do ambiente para retirar a responsabilidade do condutor e passar para o veículo. E isso ocorre de forma gradativa, até chegarmos a um nível de automação que dispense o volante”, explica.

O avanço depende de fatores como política e legislação, tecnologia e inovação, infraestrutura e aceitação do consumidor. Singapura desponta entre os locais aptos a implementar a tecnologia, de acordo com o último Índice de Prontidão de Veículos Autônomos (AVRI), feito por auditoria da KPMG.

O primeiro robotáxi circulou em Singapura ainda em 2016, e os testes evoluíram para os ônibus em 2019, quando a ST Engineering, em parceria com o governo, fez um experimento de três meses com modelos autônomos, chegando a transportar 6.000 passageiros sem um único acidente.

No Brasil, no entanto, isso caminha a passos lentos. Pelo ranking, que leva em conta 30 países, o Brasil aparece em último lugar.

Investimento

Considerando apenas as rodovias federais, o indicador de qualidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) demonstra que, até o fim de 2022, 52% da malha era considerada boa. A análise leva em conta a presença de buracos, remendos, truncamentos, sinalização, drenagem e altura da vegetação. Quanto menor a soma de pontos desses itens, melhor é o estado de conservação e, portanto, mais alto o índice de Condição da Manutenção (ICM) — indicador de qualidade das rodovias federais. Em 2016, 68% das rodovias foram consideradas boas, o que revela uma degradação das vias ao longo dos anos.

Em 2012, o Ministério dos Transportes chegou a ter R$ 45,4 bilhões (valor corrigido pela inflação) do orçamento para despesas de custeio e investimento. Ao longo dos anos, porém, o montante foi reduzido, chegando, em 2022, em meio à pandemia, ao patamar de R$ 7,7 bilhões. “O que impactou diretamente a qualidade da infraestrutura nacional: cai o investimento, pioram nossas rodovias”, disse o atual ministro dos Transportes, Renan Filho, ao detalhar os números, ainda no início da gestão, em janeiro deste ano.

Em 2023, o orçamento aumentou. Com valores destinados a investimentos e contratos deixados pela gestão anterior, a pasta conta com aproximadamente R$ 22,8 bilhões, voltando aos patamares de 2015. “Com a retomada de investimentos pela gestão atual, o ICM bom das rodovias federais voltou a crescer, chegando a 55% já em junho, contra 52% de dezembro de 2022”, afirmou o Ministério dos Transportes à reportagem.

Apesar do incremento, a análise da CNT indica que, para realizar intervenções de reconstrução, restauração e manutenção rodoviárias, seriam necessários aproximadamente R$ 95 bilhões. O valor é mais de quatro vezes maior do que todo o orçamento para investimento do Ministério dos Transportes.

A existência de uma infraestrutura de transporte moderna, integrada, de qualidade e adequada às demandas é imprescindível para o desenvolvimento de nosso país. Essa condição favorece ganhos de produtividade e competitividade para o setor transportador, para os demais setores produtivos e para a promoção do crescimento socioeconômico

Vander Costa, presidente da CNT

Parceria privada

O governo quer ampliar a capacidade de investimento com parcerias público-privadas. As concessionárias investem, em média, 2,5 vezes mais na malha viária do que o poder público, segundo análise da CNT. Os dados mostram que 69% dos 23.238 quilômetros pesquisados de rodovias sob gestão concedida são classificados como ótimo ou bom; 25,8%, regular; e apenas 5,2%, ruim ou péssimo.

“Muito da evolução da tecnologia, do que se tem hoje de rodovias inteligentes no Brasil, é reflexo das obrigações contratuais que as concessionárias têm”, justifica Daniel Daneluz, gerente de operações da CCR (veja vídeo abaixo). A empresa tem mais de 3.600 quilômetros de rodovias sob administração e 11 concessionárias em cinco estados.

No entanto, até mesmo os espaços viários concedidos têm demonstrado queda de qualidade. Assim como os trechos sob gestão pública, em 2022 as rodovias comandadas pela iniciativa privada apresentaram piora, como releva a CNT. Houve queda de 5,2 pontos percentuais na classificação de ótimo e bom em comparação a 2021, quando 74,2% das rodovias estavam nesse patamar.

O governo elaborou uma nova política de concessão de rodovias, divulgada em junho deste ano. A expectativa é gerar R$ 66 bilhões em novos investimentos privados e despesas operacionais, além de 460 mil empregos diretos ou indiretos.

Em contrapartida, os prestadores têm o compromisso de estabelecer tarifas justas de pedágio e aprimorar tecnologias, buscando sustentabilidade, segurança e comodidade. Um exemplo é a implantação obrigatória de free flow, o sistema de pagamento automático de pedágio sem passar por barreiras, até o quinto ano de concessão. A nova política também prevê uso de drones, telemedicina, 5G, câmeras com tecnologia OCR (que reconhece as placas de veículos) e pesagem automática em movimento.

Há a previsão de pontos de recarga para veículos elétricos em cada posto de Serviço de Atendimento ao Usuário e Ponto de Parada e Descanso. Editais que devem ser lançados a partir de agosto já incorporam a nova política.

Veículo autônomo brasileiro

No Brasil, apesar das dificuldades, tecnologias de automação também estão em desenvolvimento. Ainda em 2017, um projeto acadêmico nacional colocou nas ruas um veículo que foi dirigido de forma autônoma por 74 quilômetros, atravessando três municípios por vias urbanas e rodovias. O carro foi batizado como Iara (Intelligent Autonomous Robotic Automobile) e é desenvolvido no Laboratório de Computação de Alto Desempenho (LCAD) da Universidade Federal do Espírito Santo, a Ufes (veja a galeria de fotos abaixo).

Atualmente, os pesquisadores responsáveis pela Iara aplicam a tecnologia desenvolvida em outros projetos acadêmicos. É o caso do Hércules, um robô empilhadeira em desenvolvimento para conversar, além de executar e aprender novas tarefas (confira o vídeo abaixo).

A tecnologia é de software livre. A inteligência é usada por várias empresas que, em suas atividades, pagam tributos. “Todo o dinheiro investido pelo governo estadual e federal com bolsas e a compra do veículo para a Iara foi cerca de R$ 1,2 milhão. Só com impostos pagos no ano passado pelas empresas que fazem uso da tecnologia, mais de R$ 2 milhões já voltaram para a sociedade”, detalhou o coordenador do projeto, o professor de informática Alberto Ferreira de Souza.

A inteligência desenvolvida no laboratório da Ufes é base do software de autonomia que está sendo desenvolvido para o Veículo Elétrico de Decolagem e Aterrissagem Vertical (eVTOL). A Embraer anunciou, em julho, a primeira fábrica para a produção dos carros voadores no Brasil, junto com a Eve Air Mobility ("Eve"). A planta industrial ficará em São Paulo, dentro de uma unidade já existente da Embraer. A previsão de lançamento é em 2026. Ao longo dos dez anos seguintes, devem ser disponibilizados mais de 200 modelos para transportar 4,5 milhões de passageiros em mais de cem rotas anualmente.

Eve Embraer desenvolve o eVTOL
, um taxi aéreo elétrico (Embraer / Divulgação)

Eve Embraer desenvolve o eVTOL , um taxi aéreo elétrico

Embraer / Divulgação

A tecnologia aplicada na Iara já foi empregada em diversos outros projetos já em funcionamento, incluindo em um avião que, em 2019, fez o primeiro taxiamento em solo autônomo do mundo, uma parceria com a Embraer.

A implementação da tecnologia no avião contou com a parceria da startup Lume Robotic, empresa formada por pesquisadores que atuaram no desenvolvimento da Iara e começaram a desenvolver veículos com direção 100% autônoma a partir dessa inteligência.

Além do avião, o sistema foi testado em carro elétrico de pequeno porte, SUV híbrido, caminhões e carretas. “Hoje nós temos a previsão de ter, até o fim do ano, oito veículos rodando sem nenhuma supervisão ou monitoramento humano. A gente foca principalmente operações em ambientes privados, empresariais, porque no Brasil não existe legislação que permita o trânsito de veículos autônomos em vias públicas, mas os ambientes privados são autorregulados”, explicou o fundador e CEO da Lume, Ranik Guidolini (assista ao vídeo abaixo).

Discutindo regulamentação

Outro desafio para o avanço dos veículos autônomos no Brasil é a regulamentação. É papel da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), pasta vinculada ao Ministério dos Transportes, coordenar o Sistema Nacional de Trânsito para garantir o cumprimento da legislação, além de propor regulamentação ao Conselho Nacional de Trânsito (Conatran). “É necessário, inclusive, haver uma reforma no próprio Código de Trânsito para essa questão própria do veículo autônomo”, diz o gerente de projetos da Senatran, Daniel Mariz.

As discussões, segundo Mariz, ocorrem no mundo todo. Em 2022, o Brasil se tornou membro pleno do Fórum Global sobre Segurança Viária, órgão permanente no sistema das Nações Unidas que se concentra no debate global sobre instrumentos jurídicos internacionais voltadas ao trânsito.

“O conceito de estar no controle é algo que precisa ser discutido e aprofundado no Brasil e no mundo. Quem se responsabiliza é o motorista, o software, o desenvolvedor? Como será a formação do responsável pelo veículo? É necessário ter habilitação? Será um problema beber e dirigir? Então, são dilemas, dúvidas que vão aparecendo nesse processo de automação e são obviamente muito desafiantes”, analisa Mariz.

Internamente, o governo elabora um grupo de estudo permanente com entidades, pesquisadores e atores que se relacionam com o tema para se debruçar sobre a realidade brasileira. A ideia, segundo Mariz, é levantar o que está sendo desenvolvido no país e levar a experiência e desafios para os fóruns internacionais. “A gente quer ser proativo nessa discussão, e não reativo. Essa tecnologia vai chegar, já existe aqui, e não queremos ficar sentados aguardando.”

Em setembro de 2020, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) também fez mudanças que influenciam na aplicação da tecnologia. A agência liberou a faixa de frequência para o uso de ferramentas como radares automotivos e o sistema de transmissão e recepção que faz a comunicação entre os veículos e a infraestrutura, mecanismo necessário para auxiliar na condução. Radares automotivos que permitem o funcionamento do sistema anticolisão e possibilitam mudanças de faixa na via também foram contemplados na atualização.

Sustentabilidade e pactos internacionais

As mudanças tecnológicas no transporte estão acompanhadas de discussões sobre sustentabilidade. Os desafios estão na pauta de grandes encontros mundiais com planos para o setor. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), plano que estabelece 169 metas até 2030, também leva em consideração a necessidade de “proporcionar o acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos”. A ONU também destaca a importância do desenvolvimento de infraestrutura de qualidade, confiável, sustentável e resiliente para apoiar o desenvolvimento econômico e o bem-estar humano.

O transporte público deve ser a base da mobilidade urbana. A descarbonização deve ser acompanhada de uma transição justa e inclusiva para reduzir as desigualdades e apoiar as comunidades mais pobres. Precisamos de parcerias efetivas, inclusive com o setor privado, que ajudem a compartilhar conhecimento, eliminar silos e direcionar financiamento e capacidade tecnológica para nossos objetivos comuns. O potencial transformador do transporte sustentável só pode ser liberado se as melhorias se traduzirem na erradicação da pobreza, empregos decentes, melhor saúde e educação e maiores oportunidades para mulheres e meninas. Os países têm muito a aprender uns com os outros

António Guterres, Secretário-Geral da ONU, durante a Segunda Conferência Global de Transporte Sustentável


REPORTAGEM
Bruna Lima

ARTES
Luce Costa

VÍDEOS
Carlos Eduardo Sneakdan
João Gabriel Barreto

COORDENAÇÃO E EDIÇÃO
Alexandre de Paula
Fausto Carneiro
Rudá Moreira