Esta foto recente de divulgação do filme Aqui chocou fãs ao mostrar Tom Hanks, 68 anos, de volta à adolescência, com ajuda de uma ferramenta de rejuvenescimento de inteligência artificial. Trata-se do reencontro do astro com Robin Wright, com quem atuou em Forrest Gump, o Contador de Histórias (2014).
Tom Hanks e Robin Wright rejuvenescidos com ajuda de inteligência artificial, em 'Here' (2024)
Reprodução/Sony PicturesA trama é a adaptação de uma obra-prima americana dos quadrinhos de mesmo nome, famosa por ter revolucionado a estética do gênero ao recontar a história da humanidade do ponto de vista do canto de uma sala.
Capa da edição brasileira do quadrinho 'Aqui'
Reprodução/Quadrinhos na CiaHoje, o clássico de Richard McGuire, tão genial quanto pretensioso, sequer é encontrado nas livrarias brasileiras, mais de quatro décadas após sua publicação original — editado pela Companhia das Letras, ele vai ganhar nova impressão neste mês, após longa espera.
O cenário nacional, contudo, não lhe é lá muito afável. Enquanto na Bienal do Rio de 2023 autores do gênero tinham um espaço dedicado a eles, no evento de São Paulo deste ano, que começa depois de amanhã, cartunistas tiveram que se unir para criar seu próprio “artist’s alley”, ou beco dos artistas.
Essa expressão, que lembra um “puxadinho”, tem sua razão de ser. Pouco mais de um ano atrás, a candidatura de Mauricio de Sousa à Academia Brasileira de Letras foi recebida com surpresa, como se sequer um “tipo B” de literatura os quadrinhos fossem. O jornalista James Akel chegou a dizer que os gibis estavam “mais próximos do entretenimento do que da educação”.
Para Sidney Gusman, editor-chefe da MSP (Mauricio de Sousa Produções), os quadrinhos vêm perdendo relevância no país desde os anos 1990, processo que acabou ganhando velocidade com o desmantelamento da mídia impressa. E, hoje, sobrevivem como uma “arte de nicho”, enquanto lutam para continuar presentes nas salas de aula e conquistar as gerações z e alpha, nascidas em ambiente digital.
“O espaço destinado às HQs foi diminuindo, assim como as colunas, os artigos e as reportagens. As tirinhas, antes entendidas como para crianças e para adultos, foram jogadas para a categoria de ‘baixa cultura’, junto da seção de caça-palavras”, avalia Gusman.
Fabiano Ormaneze, professor da pós-graduação em jornalismo científico (LabJor) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), vai além: segundo ele, a divisão entre culturas, seja alta e baixa, de massas e erudita, pode resultar no “apagamento” de parte da identidade brasileira.
“Essas classificações impõem a ideia de que haveria determinadas produções mais valorizadas do que outras. Com isso, deixamos de considerar as manifestações que o povo produz, independentemente do seu grau social”, diz.
E quebrar essa percepção não é fácil. Ormaneze explica que se trata de um processo lento e envolve diversos fatores sociais. “Nos anos 1950, houve manifestações contrárias ao uso dos quadrinhos em escolas, considerando-os algo menor ou infantilizado”, explica.
“Geralmente, associamos aquilo feito para as crianças a algo simplista, o que também não é verdade e deve ser modificado. Achar que não se deve incluir os quadrinhos na cultura, na literatura ou nos grandes cânones, como a Academia Brasileira de Letras, é um preconceito”, completa.
Embora não existam números oficiais da dimensão da venda de quadrinhos no Brasil, o site O Guia dos Quadrinhos, alimentado por usuários, mostra dados que refletem essa queda citada pelo editor-chefe da MSP. Segundo compilação da plataforma, a quantidade de títulos lançada caiu de forma ainda mais acentuada de 2015 para cá — em 2021, foram menos de 2.000.
Mesmo assim, a atual Base Nacional Comum Curricular, que norteia a qualidade da educação no país, os reconhece como um instrumento de aprendizagem “essencial”, que pode ser “usado de forma lúdica e interdisciplinar no ensino de diferentes áreas do conhecimento”.
Trecho da graphic novel 'Jeremias', da Mauricio de Sousa Produções
Reprodução/Mauricio de Sousa ProduçõesSegundo a pedagoga Rona Hanning, fundadora e codiretora do LerConecta, projeto responsável pela curadoria do espaço infantil da Bienal do Rio, o fôlego literário diminuiu e é urgente repensar a maneira de apresentar as leituras paradidáticas aos alunos.
“A escola precisa cumprir o papel dela de trabalhar os clássicos e mesclá-los com o contemporâneo. Senão, não vai ter história para contar. O que a gente faz com uma nação que nunca mais vai ler Guimarães Rosa porque é difícil?”
Para Rona, é a memória literária brasileira que está em jogo. “Não precisa ler o romance, lê um conto, um fragmento, mas introduz o autor. Se a gente não conhecer isso na escola, não vai mais conhecer. E trazer a imagem como um elemento narrativo é um fator fundamental para o novo leitor”, completa.
Mas há luz no fim do túnel. Prova de que o mercado nacional está se adaptando às demandas das novas gerações é a tendência de adaptar clássicos da literatura para os quadrinhos. Caminho percorrido pela L&PM, ao produzir HQs de obras como Guerra e Paz e Dom Quixote — direcionadas a estudantes do ensino médio.
É a aposta ainda da editora Arqueiro, conhecida pelas obras de autoajuda, que pegou carona no filão e publicou o quadrinho A Srta. Butterworth e o Barão Louco, especialmente para os fãs da americana Julia Quinn, da série Bridgerton.
O fenômeno Heartstopper, adorado no streaming por tratar de amores adolescentes, fez o caminho inverso: virou gibi pelo selo Seguinte, da Cia. das Letras, após explodir como uma webcomic, tipo de quadrinho online com influência do mangá, da ilustradora inglesa Alice Oseman.
Gusman destaca a importância de esse movimento passar a assimilar crenças e hábitos da sociedade atual.
Jane, na imagem abaixo, lançado aqui pela Pipoca e Nanquim, empresa brasileira especializada na publicação do gênero, é uma história que segue essa linha, ao reinventar o clássico Jane Eyre, publicado pela britânica Charlotte Brontë em 1847, a partir de uma perspectiva atual. A obra tem roteiro de Aline Brosh McKenna (de O Diabo Veste Prada) e ilustrações de Ramón K. Pérez.
Jane lançado pela Pipoca e Nanquim em 2019
Reprodução/Pipoca e Nanquim - 02/09Editor e cocriador da editora Pipoca e Nanquim, Alexandre Callari, 48 anos, é um dos que vê nas HQs uma porta para o mundo.
Ele conta que foi por meio delas que aprendeu conceitos políticos, sociológicos e filosóficos complexos e foi introduzido a autores como Ernest Hemingway (1899-1961), Herman Melville (1819-1891) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
“Meu primeiro contato [aos dez anos] com Hemingway foi num quadrinho do Arqueiro Verde [herói criado nos anos 1940]. Saiu, pela Editora Abril, uma historinha que terminava com uma citação do Adeus às Armas [romance publicado pelo autor americano em 1929 e considerado um dos melhores já ambientados na Primeira Guerra Mundial], conta Callari, que tem o gibi até hoje.
Trata-se do trecho em que Arqueiro Verde percebe que não pode salvar uma criança da morte:
Na tradução, feita por Monteiro Lobato, da edição da Bertrand Brasil de 2013:
“Eu achei uma coisa espetacular. Na época, perguntei ao meu pai: quem é esse tal de Ernest Hemingway? Meu pai, que não era letrado, não fazia ideia. Então, quem me levou a procurar a respeito de um dos grandes expoentes da literatura moderna foram os quadrinhos”, conta Callari.
Arte Estúdio Quadrinhos
R7Dono de um dos principais comércios de quadrinhos de São Paulo, a Loja Monstra, Guilherme Lorandi, 32 anos, conta que foi alfabetizado pelo pai com a ajuda de histórias em quadrinhos. “Eu e meu irmão crescemos com o gibi do Fantasma [herói de tirinha de jornal criado em 1936] em mãos”, lembra. E logo virou um frequentador assíduo de uma antiga loja da praça Benetito Calixto, em Pinheiros: a Gibiteria.
Capitaneado por “Seu Otavio”, o local era mais um espaço para conversar, debater e fazer amizades do que uma loja especializada. E Lorandi, aos poucos, virou mais do que um visitante: passou a trabalhar ali:
Interior da Loja Monstra, em Pinheiros, em São Paulo
Reprodução/Loja MonstraCom a ascensão do e-commerce e das gigantes do varejo online, Otavio decidiu se aposentar em 2018 e passou o comando do espaço ao novo funcionário. Lorandi alterou o nome para Loja Monstra e a reinventou, sem se desligar de sua essência. “Como eu vi a antiga loja morrer, sabia que tinha que fazer algo diferente para a minha loja sobreviver”, relembra,
Hoje, o local reúne lançamentos, recebe autores nacionais e internacionais, promove debates e sessões de filmes e é ambiente de muita conversa.
Se aqui os fãs de quadrinhos ainda têm essa pecha de geeks ou nerds fervorosos, lá fora, o debate está em outro nível: existe há décadas um consenso de que o gênero é a “nona arte” e convive ao lado do cinema, da pintura e do teatro com estética e complexidade próprias.
Prova disso é que lá atrás, em 1992, Maus, do cartunista sueco-americano Art Spiegelman, ganhou o Prêmio Pulitzer — um dos mais importantes do jornalismo —, com um relato duro da história do pai do autor, sobrevivente do Holocausto.
“Nos museus franceses, há exposições com obras de quadrinistas ao lado de grandes pintores do Renascimento. Não há diferenciação entre aquilo destinado a crianças ou a adultos, todas as formas de arte são apreciadas por todas as idades”, avalia Callari, da Pipoca e Nanquim.
No início deste ano, o 51⁰ Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême reuniu 1.500 quadrinistas, que deixaram intransitáveis as ruas da cidade, localizada no leste da França. De maio a julho, Viena, na Áustria, sediou uma megaexposição sobre Roy Lichtenstein (1923-1997), célebre por ter bebido nos quadrinhos, com obras como We Rose Up Slowly. Estavam lá também Look Mickey e Popeye, dos anos 1960.
Isso além das grandes reportagens já publicadas no gênero, como Palestina, do maltês radicado nos Estados Unidos Joe Sacco. A obra é um marco nas narrativas gráficas e redefiniu as bases do jornalismo em quadrinhos — com centenas de entrevistas e fotografias realizadas entre 1991 e 1992.
Gusman, o editor-chefe da Mauricio de Sousa Produções, conta que encabeçou o movimento das graphic novels brasileiras, há pouco mais de dez anos, justamente para tentar se aproximar do público infantojuvenil com uma produção que resgatasse o glamour da nona arte nacional.
Foi aí que ele lançou Astronauta, um tipo de “náufrago do espaço” desenhado por Danilo Beyruth, um dos grandes nomes contemporâneos. O sucesso foi tão grande que, hoje, o projeto já conta com 1 milhão de títulos vendidos.
Detalhe da história em quadrinhos 'Turma da Mônica: Laços'
Reprodução/Mauricio de Sousa ProduçõesA aposta se estendeu a novas versões de personagens antigos, como a série gráfica Turma da Mônica: Laços, desenhada pela dupla de irmãos Vitor Caffagi e Lu Caffagi, que chegou aos cinemas mostrando uma aventura com Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali adolescentes, no maior estilo Stranger Things e Goonies.
Foi mais ou menos o que aconteceu na década de 1980 nos Estados Unidos, quando a maior empresa de quadrinhos do país, a DC Comics, viu seus principais títulos entrarem em crise, apesar dos superpoderes de seus heróis.
Então, a editora Karen Berger, não exatamente uma fã assídua dos clássicos, resolveu trazer histórias “sérias”, voltadas para o público adulto, com personagens secundários da editora. E deu início ao que ficou conhecida como a “Invasão Britânica” — algo similar aos Beatles chegando à América —, quando roteiristas e desenhistas ingleses dominaram as vendas da DC Comics com histórias sobrenaturais, que fugiam do maniqueísmo dos heróis tradicionais. Nasceram, aí, sucessos como Watchmen, de Alan Moore, e Sandman, de Neil Gaiman.
Apesar de existirem a Loja Monstra, a Graphics MSP e a editora Pipoca e Nanquim, ainda há um grande caminho para que as histórias em quadrinhos brasileiras assumam um papel de potência no cenário cultural do país.
Trecho da história em quadrinhos nacional 'Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias'
Reprodução/Pipoca e NanquimIsso mesmo com a presença esporádica de festivais voltados ao gênero, como a convenção de cultura pop CCXP, o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, a PerifaCon, chamada informalmente de Comic Con da Favela, e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba.
São eventos que ajudam, inclusive, a divulgar o trabalho dos quadrinistas brasileiros no exterior, como as HQs Angola Janga (2017) e Cumbe (2014), do paulista Marcelo D'Salete, essenciais para ilustrar a escravidão no Brasil.
“O mais importante hoje é dar destaque a histórias novas, quadrinhos que contam narrativas brasileiras sem o fim didático, mas que retratam problemas, como o racismo e o assédio sexual”, diz Gusman, citando Jeremias: Pele, Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, Cidade Pequenina e Tina: Respeito, respectivamente.
Para Rona Hanning, um caminho a ser seguido é a inclusão do gênero na formação de educadores. “Hoje, os professores dos professores não são leitores das diversas formas de narrar. E é importante que isso ocorra já na formação desses profissionais, para que a cultura dos quadrinhos chegue às escolas com o prestígio que ela merece”, finaliza.
*Estagiário do R7 sob supervisão de Vivian Masutti
Reportagem: João Acrísio, estagiário do R7
Edição: Vivian Masutti
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Gabriel Marques Rodrigues e Sabrina Cessarovice
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza
Produção Audiovisual: Denise Marino, Guilherme Estevam Silva e Julia de Caroli
Operação de Captação Audiovisual: Guilherme Cabral
Edição e Finalização: Caique Ramiro