Ver o conteúdo do artigo
Tony Chastinet, André Azeredo, Ana Albini, Pedro Cerântula e Márcio Neves, da RECORD
Receptação: relógios apreendidos durante a investigação (Reprodução/Polícia Civil)

Receptação: relógios apreendidos durante a investigação

Reprodução/Polícia Civil

A cena é cada vez mais comum em São Paulo: um motoqueiro com capacete e uma caixa de entregador se aproxima lentamente da vítima. Saca uma arma, aponta para a pessoa e leva o relógio. Não qualquer relógio, mas peças das marcas mais famosas e caras do mundo, verdadeiras joias. Em poucos segundos, o ladrão desaparece em meio ao caótico trânsito da cidade.

Os alvos são escolhidos em regiões com alto poder aquisitivo. Os ataques não têm hora para acontecer. A vítima pode estar no carro; no táxi, saindo do aeroporto; ou na calçada, chegando a um restaurante ou hotel.

Os assaltantes estão cada vez mais ousados
Ousadia: ladrão invadiu aula para roubar relógio (Reprodução/Polícia Civil)

Ousadia: ladrão invadiu aula para roubar relógio

Reprodução/Polícia Civil

Em fevereiro, o dentista Roberto Viotto ministrava um curso para 20 profissionais, quando um assaltante entrou no auditório e foi até ele. “Já está todo mundo rendido lá fora. A gente só quer o relógio.  Dá o relógio para ninguém se machucar”, relembra.

O relógio era um Rolex de ouro.

Viotto lembra que o roubo foi assunto em grupos de colecionadores e donos de relógios de luxo. “Nos grupos comentavam que o relógio não iria ficar no Brasil”, lamenta. O dentista diz que, desde 2015, já teve oito relógios roubados em São Paulo.

Cobiçado: relógios de luxo na mira dos ladrões (Reprodução/Polícia Civil)

Cobiçado: relógios de luxo na mira dos ladrões

Reprodução/Polícia Civil

Levantamento exclusivo do Núcleo de Jornalismo Investigativo da RECORD mapeou 215 ocorrências de roubo e furto de relógios de luxo em lugares públicos no Estado de São Paulo no ano passado.

A cidade de São Paulo registra a maior parcela dos casos (82%). Os bairros dos Jardins e Itaim-Bibi concentram um elevado número de ocorrências. Nestes bairros, há um grande número de bares, restaurantes, escritórios e hotéis. Foram 20 registros em 2023. Em 19 ocorrências, os assaltantes agiam de moto e em duplas.

Os números de ladrões e receptadores presos também impressionam.

Em dois anos, de acordo com o delegado Fábio Sandrin, a 4ª Delegacia de Investigação de Crimes contra o Patrimônio, do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), indiciou 360 pessoas, prendeu 124 em flagrante e pediu 236 prisões preventivas de ladrões e receptadores de relógios de luxo e joias roubadas.

Mas depois de roubados para onde vão estes relógios e joias?

A investigação

O número expressivo de investigações e prisões permitiram à equipe do delegado mapear a trajetória e o destino das joias e relógios de luxo roubados e furtados em São Paulo, além de identificar e traçar um perfil dos principais receptadores, ou seja, de quem compra a joia do ladrão.

Este foi o caso de uma rede de receptadores descoberta durante a investigação que identificou um assaltante que roubava mansões.

Residência: joias roubadas recuperadas pela Polícia (Reprodução/Polícia Civil)

Residência: joias roubadas recuperadas pela Polícia

Reprodução/Polícia Civil

Eles podem ser divididos em dois grupos: receptadores que compram todo tipo de joia e relógio que ficam na região central da cidade ou na Zona Leste. E os chamados “receptadores vip”, com lojas em shoppings e conexões internacionais.

“Tem receptadores que têm contato com os criminosos e recebem diretamente dos ladrões estes produtos. E, na sequência, acabam repassando a outros que já estão em um patamar acima, com mais capacidade econômica, comércio estabelecido e até de renome. Acabam recebendo e dão uma destinação reinserindo no comércio formal ou até mesmo remetendo para o exterior”, explica Sandrin.

Na investigação que levou até a elite dos receptadores de São Paulo, os policiais se depararam com o caso de uma advogada que teve as joias furtadas do apartamento durante uma viagem.

As câmeras de segurança do prédio registraram a diarista da mulher saindo com as joias.

Dias depois, ela teve uma surpresa quando viu algumas das joias roubadas no site de um leilão de objetos de luxo, na região da Cidade Jardim, um dos bairros mais exclusivos de São Paulo.

“Comecei a seguir várias páginas de joalherias e pessoas que vendem joias usadas. Estava olhando no Instagram, quando vi uma chamada de leilão de uma joalheria. Conforme eu comecei a rolar a página, eu vi várias peças minhas. Foi um misto de raiva e felicidade”, explica.

Depois de localizar as peças, o advogado da vítima comunicou a polícia.

Com uma ordem judicial, os policiais apreenderam as joias e descobriram que um joalheiro com loja no Shopping Eldorado, na Zona Oeste de São Paulo, foi quem deixou o material para ser leiloado.

As joias haviam sido compradas pela Vecchio Joalheria. A vendedora foi a diarista que havia furtado as joias da patroa.

O advogado da vítima, Adriano Salles Vanni, disse que ficou surpreso com o destino das joias.

“Realmente fiquei surpreso. Eles compram joias roubadas dentro do shopping center. Então eu encosto no shopping center com um relógio de marca que eu sei que custa R$ 100 mil. E a loja me oferece R$ 5 mil. Ela vai dizer que não sabia que era roubado e eu aceito? O preço não pode ser vil. E pelo que foi pago pelas joias, foi 10% do valor. Tá na cara que eles sabiam que as joias eram roubadas”, analisa.

Vanni diz que a cliente conseguiu recuperar 70% das joias furtadas. “O restante foi derretido”

Operação: loja em shopping foi alvo da polícia (Reprodução/Polícia Civil)

Operação: loja em shopping foi alvo da polícia

Reprodução/Polícia Civil

A joalheria foi alvo de mandado de Busca e Apreensão expedido pela Justiça de São Paulo na sexta-feira passada (3). Os policiais também foram até a casa do dono da empresa, o comerciante Avner Mazuz, que é um dos investigados pelo Deic.

O nome de Mazuz também apareceu no braço internacional do esquema.

Em outubro do ano passado, os policiais prenderam um comerciante de joias no Aeroporto de Guarulhos, quando ele tentava embarcar para Buenos Aires, na Argentina, com joias e relógios roubados.

Buenos Aires: avenida Libertad é destino de relógios roubados no Brasil (Reprodução/Polícia Civil)

Buenos Aires: avenida Libertad é destino de relógios roubados no Brasil

Reprodução/Polícia Civil

A polícia apurou que as peças seriam vendidas em lojas de compra de ouro e joias na Avenida Libertad e no bairro da Recoleta.

Em depoimento, o receptador preso disse que comprou as joias de Mazuz, que enviou fotos do material direto de Miami, onde participava de uma feira de joias antigas, a Antique Show.

Não foi a primeira vez que policiais encontraram relógios roubados em shoppings de alto padrão. Em 2022, um promotor de Justiça foi assaltando em Osasco e encontrou o relógio roubado em uma loja no Shopping Cidade Jardim.

Um dos envolvidos na receptação do relógio roubado do promotor, um comerciante de Minas Gerais, apareceu novamente na investigação do Deic, só que agora em uma rede internacional de receptação.

Rede internacional

O caso da receptação do relógio do promotor resultou em um acordo de não persecução penal com o pagamento de multa. O receptador mineiro aparece nas anotações encontradas no celular do ladrão que deu início ao caso. Era cobrado pelo assaltante que tinha valores a receber por um relógio Patek Philipe.

Os policiais descobriram que o comerciante e dois irmãos dele adquiriam os relógios e joias em São Paulo diretamente dos ladrões ou de três irmãos paulistas que atuam no comércio de relógios e joias usadas. O material era enviado ao exterior.

“Conseguimos durante a investigação acompanhar a movimentação deles e identificamos que há uma remessa desses produtos adquiridos ilicitamente aqui no país que acabam indo para a Argentina, Miami, nos Estados Unidos, Espanha e Alemanha. Estes países recebem os produtos que são roubados ou furtados aqui no Brasil”, explica Sandrin.

Delivery: taxista entrega joias roubadas para comissário (Reprodução/Polícia Civil)

Delivery: taxista entrega joias roubadas para comissário

Reprodução/Polícia Civil

Os irmãos mineiros usavam os serviços do taxista Norberto Roja para se deslocar na cidade. Mas ele fazia mais do que apenas transportar os receptadores. Também fazia entregas de joias e relógios. A polícia seguiu este taxista até o Aeroporto de Guarulhos, onde ele entregou um pequeno pacote para um homem e foi embora.

Os policiais abordaram o homem no saguão do aeroporto. Era o comissário Hernandes Maia Spínola, de 62 anos, brasileiro que trabalha há 31 anos em uma empresa aérea norte-americana e mora em Miami, na Florida. No saquinho entregue pelo taxista foram encontradas joias roubadas.

Na delegacia, ele disse que ganhava de US$ 100 a U$ 300 por viagem de um dos irmãos para levar o material para os Estados Unidos e entregar em mãos para os receptadores.

“Nós identificamos esta conexão internacional.  Comissários de algumas companhias aéreas acabam transportando estes bens, estas joias para o exterior. Ele esclareceu a conexão. Levava para determinadas pessoas a mando deste grupo criminoso sediado em Minas. Ele identifica algumas pessoas e aponta comerciantes na cidade de Miami”, ressalta o delegado.

Miami: relógios e joias eram entregues a receptadores nos Estados Unidos (Reprodução/Polícia Civil)

Miami: relógios e joias eram entregues a receptadores nos Estados Unidos

Reprodução/Polícia Civil

Em depoimento, o comissário forneceu os nomes de quatro pessoas — um americano e três brasileiros — que a reportagem apurou ter empresas de compra e venda de joias e relógios antigos pela internet e venda em feiras de antiguidade em Miami.

O comissário disse que não sabia que o material era roubado, mas acabou indiciado. Também disse que outros comissários atuavam no transporte das joias para os Estados Unidos.

Os policiais pediram mandado de busca e apreensão nos endereços dos irmãos mineiros, que foram presos temporariamente. Também pediram mandados para os irmãos paulistas. Atualmente, eles respondem em liberdade.

Argentina

No celular de um deles, a polícia encontrou outra ramificação do esquema. Uma foto enviada por mensagem mostrava um documento da Receita Federal sobre uma apreensão de 15 relógios de luxo avaliados no total em quase R$ 1 milhão.

Apreensão: piloto argentino diz que não entregou comparsas (Reprodução/Polícia Civil)

Apreensão: piloto argentino diz que não entregou comparsas

Reprodução/Polícia Civil

As peças estavam com o piloto argentino Ricardo Daniel Badala que, em mensagem, dizia estar preocupado e que não havia falado nada para a Receita. Desde março de 2017, Badala fez mais de 273 viagens para o Brasil.

Em outra mensagem, um outro envolvido no esquema se oferece para enviar um documento falso para justificar a quantidade de relógios. A polícia consultou a representante da Rolex no Brasil e descobriu que, entre os 15 relógios, a maioria da marca Rolex, havia itens roubados.

“Durante a investigação, descobrimos que a Argentina é uma escala natural de alguns receptadores”, assinala o delegado.

Não se sabe se os relógios eram levados para a Argentina e de lá seguiam para os Estados Unidos.

Mas, no final de 2021, um jornal argentino mostrou o caso de um americano que teve um Rolex roubado em Buenos Aires, contratou um detetive particular nos Estados Unidos para localizar a peça, que foi encontrada em uma feira de joias antigas em Miami. Estava no estande de um argentino que alegou ter recebido em consignação de um peruano.

“Chamamos a polícia de Miami. O vendedor na hora disse que iria devolver o relógio. Infelizmente, a investigação não avançou, já que o entendimento da polícia foi que o crime havia ocorrido no exterior”, conta o detetive David Bolton. Ele disse que Miami é um dos maiores centros do mundo de comércio de relógios de luxo e joias usadas.

Bolton conta que outra cliente também foi roubada em Buenos Aires ao desembarcar de um cruzeiro no bairro de Puerto Madero. Também era um relógio Rolex. A peça foi localizada em uma página no Instagram de leilão de joias usadas, da mesma maneira que a advogada paulista localizou as joias furtadas pela diarista.

“Fizemos contato com o vendedor, que também devolveu a peça sem resistência”, afirma Bolton.

O detetive americano também identificou o envolvimento de funcionários de companhias aéreas no transporte dos relógios roubados na Argentina para os Estados Unidos.

Certificados falsos
Falso: receptadores falsificavam certificados de relógio (Reprodução/Polícia Civil)

Falso: receptadores falsificavam certificados de relógio

Reprodução/Polícia Civil

A investigação também descobriu que os receptadores falsificavam certificados dos relógios para revendê-los sem despertar suspeitas.

Fotos dos certificados falsos e conversas entre dois receptadores revelam a ousadia dos criminosos. “Foi um meu amigo quem fez. A fonte é muito parecida. Tem essa diferença, mas também passa assim numa boa”, diz um receptador depois de analisar as fotos de um certificado falso da Rolex enviada por aplicativo de mensagem.

No depoimento do comissário, flagrado levando joias roubadas para Miami, ele revelou já ter trazido ao Brasil certificados enviados por contatos da quadrilha nos Estados Unidos.

“Ele trazia dos Estados Unidos alguns certificados de relógios de marca. Acreditamos que seja para dar uma autenticidade naquele relógio como se fosse um bem adquirido licitamente para ser transportado no futuro”, afirma o delegado Sandrin.

Outro lado

A defesa da Vecchio Joalheria e do empresário Avner Mazuz enviou a seguinte nota:

“A Joalheria Vecchio, empresa há mais de 40 anos no mercado, repudia qualquer insinuação ou leviana acusação de comércio de mercadoria de origem duvidosa. Esclareça-se que para a compra de qualquer joia ou objeto se faz necessário cumprir um protocolo de regras, em obediência ao compliance da empresa, o que colaboradores e funcionários seguem à risca, justamente para evitar a compra de alguma peça sem origem lícita. Afirma-se, ainda, que todas as joias adquiridas de terceiros detêm documentação própria e suficiente a elidir qualquer suspeita de que seriam de origem espúria. Reforça-se, também que é uma empresa de renome, que se mantém há tantos anos no mercado, em endereços simbólicos desta capital, agindo de forma regular, o que elide às ilações da Polícia Civil. A Vecchio tem plena confiança na justiça e, em breve, esse equívoco será reparado.”

Em nota, o advogado Paulo Barbezane, que defende o taxista Norberto Rojas, disse que o cliente é inocente.

“O senhor Norberto trabalha há mais de 30 anos como taxista, tem inúmeros clientes que com o decorrer do tempo tornam-se frequentes. Nunca teve problemas com a Justiça. Tudo o que transportava era lícito, inclusive buscava muitas joias arrematadas no leilão da Caixa Econômica Federal”, diz o advogado.

O advogado Victor Chodraui, que defende o piloto Ricardo Daniel Badala, informou que “apenas atuamos no caso para tratar da defesa na esfera tributária e não temos conhecimento dos fatos inerentes a investigação”.

No processo de receptação não consta o nome dos advogados do comissário Hernandes Spínola. Fizemos contato por meio de mensagem, mas ele não se manifestou.