Cinco lutas. Cinco pódios. Mas a maior vitória de Kamila Duitama, atleta mirim de muay thai, foi vencer o êxodo da Venezuela e recomeçar a vida, com a família, no interior de São Paulo.
“Eu me considero mais venezuelana, porque lá é meu país de origem. Mas eu também me considero brasileira porque eu sei falar o português e porque eu vivo aqui. Lá meu sonho não seria possível”, conta a adolescente de 12 anos.
Maayloin Jimenez, a mãe, compartilha o que viveu com um misto de orgulho e alívio: "Minha filha faz ginástica, a mais velha está praticando o esporte que gosta. Aqui elas conseguem comer as coisas que gostam. Consigo dar uma vida melhor para elas. Valeu a pena. Conseguimos ter tranquilidade", conta.
Um dos fluxos migratórios mais dramáticos da atualidade é o dos venezuelanos. Sob o comando da ditadura de Hugo Chávez, seguida pela de Nicolás Maduro, mais de 5,4 milhões de pessoas deixaram a Venezuela em busca de segurança e melhores condições de vida, nos últimos 15 anos. É a maior crise de deslocamento forçado na América Latina. No Brasil, estima-se que existam mais de 300 mil venezuelanos. É o principal país de destino para essa população. Muitos vão parar no interior de São Paulo. O Sudeste recebe 8,9% do total de pedidos de refúgio feitos oficialmente no país.
Kamila Duitama é refugiada venezuelana e atleta mirim de muay thai
RECORDLuís Duitama, pai de Kamila, reflete sobre a situação do lado de lá da fronteira: "Agora mesmo não voltaria. Tem que mudar o governo e a mentalidade. Lá você tem que trabalhar hoje, pra comer amanhã. Vai tomar água, não tem água. Vai assistir tevê, não tem energia... O povo está contra o Estado, o Estado está contra o povo, então quem protege o povo?"
Eles são um exemplo de recomeço. A experiência de retomar a vida em um país distinto daquele de origem, sob a perspectiva de um refugiado, é marcada por uma complexa teia de desafios e nuances que transcendem a mudança geográfica. É um processo permeado por perdas, adaptações e a árdua construção de uma nova existência em meio à incerteza e à saudade. Maayloin e Luiz conseguiram o que parecia impossível. Depois de perder tudo, se reergueram com a ajuda de programas sociais. Ela abriu no Brasil um negócio semelhante ao que tinha na Venezuela: um salão de beleza. Ele, uma barbearia.
"Já trabalhava na Venezuela com design de cílios. Chegando aqui, comecei a trabalhar em um salão de beleza. Um dia, a dona perguntou se eu me arriscaria a trabalhar se comprassem material. Sempre fui assim, aprendi na marra", conta a esteticista.
Maayloin é mãe de Kamila e se reergueu no país com a ajuda de programas sociais
RECORDA adaptação ao Brasil trouxe muitos desafios, como aprender a língua e se acostumar com uma nova cultura. Maayloin, que está grávida do terceiro filho, explica que a família foi o motor dessa nova trajetória: "Meus filhos são tudo para mim. Tudo que faço é por eles. Deixei o restante da minha família na Venezuela, mas vale a pena pelo futuro deles."
A língua é só a primeira barreira, mas muitos refugiados se esforçam para aprender. Em uma aula de português para refugiados na cidade de Araraquara, no interior paulista, encontramos uma sala cheia deles. A professora Renata Motih Abdel Fattah, que também é coordenadora de direitos humanos do programa para os refugiados da cidade, diz que é necessário mais do que ensinar.
É preciso acolher: "Eu trato cada um respeitando a cultura, o idioma e religião, uma paixão assim por todos eles. É como se você estivesse com a sua avó. Quando eu pego um imigrante pra conversar, pra ensinar os serviços básicos do dia a dia, eu tô ensinando meu pai, minha mãe, minha vó".
Entre os alunos estão venezuelanos e refugiados vindos do Oriente Médio. O chefe de cozinha sírio Jadalah Alsabah passou por esse processo há nove anos, quando fugiu do governo de Bashar Al Assad, depois que o Estado tomou o restaurante dele. A guerra civil na Síria já dura mais de uma década e gerou uma das maiores crises humanitárias do século XXI. Com mais de 6,6 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo, os sírios representam um dos maiores grupos de refugiados da atualidade.
“Eu vim aqui com a conta zerada. Não tinha nada. Agora trabalho com um sonho de fazer algo bom e, graças a Deus, eu consegui trazer meus filhos pro Brasil. Quem sabe consigo comprar um foodtruck pra rodar e vender minha comida. Esse é meu sonho”, diz. Com o dinheiro da comida típica que ele vende nas feiras do interior paulista consegue criar os filhos Abdulah e Hivin, que chegaram ao país há cerca de quatro anos. Os irmãos frequentam a escola e estão adaptados. O menino sonha em ser jogador de futebol. Já a garota quer ser médica. Projetos que seriam inviáveis na Síria, nos dias de hoje.
O sírio Jadalah Alsabah é chefe de cozinha e vende comida típica em feiras do interior paulista
RECORDA chefe do escritório do braço da ONU para refugiados no Brasil (ACNUR), Maria Beatriz Bonna Nogueira, destaca que o papel diplomático nacional no recebimento desses refugiados é essencial: "A gente de fato vê o Brasil como um país de portas abertas. Tem sido assim porque recebe de diferentes pontos de entrada. Então a gente tem uma entrada constante de cerca de 400 pessoas todos os meses, vindo da Venezuela, na fronteira com a cidade de Pacaraima (RO). E nós temos uma entrada de pessoas de diferentes países, de diferentes nacionalidades, principalmente pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo”, explica.
O estrangeiro que chega aqui tem os mesmos direitos dos brasileiros, como acesso ao SUS e à educação, por exemplo. Os dados indicam que 77.193 pessoas foram reconhecidas como refugiadas no Brasil em 2023, número 117% maior que em 2022.
“A migração está na raiz da construção do Brasil. A gente é um país construído por diversos grupos de imigrantes, desde o início da nossa história. Eu entendo que a migração traz aspectos positivos, quer seja a cultura dessas pessoas novas, desde a culinária até suas danças, seus ritmos, suas músicas, até mesmo a capacidade produtiva, a força de trabalho, experiências de trabalho diferentes, olhares diferentes sobre a forma de produzir”, avalia Luana Medeiros, diretora de Migrações do Ministério da Justiça.
Mas estender a mão a quem precisa se torna também um grande desafio para as autoridades:
"Esse acesso aos direitos está garantido pela nossa legislação, pela própria Constituição. Mas com o aumento do número de imigrantes no Brasil, a gente percebeu que é preciso definir as competências de cada ente federativo, as expectativas de atuação, protocolos de atuação, de forma que a gente consiga melhorar a integração local dessas pessoas", completa.
Repórter Cinematográfico: Fábio Ferreira
Edição e finalização do Documentário: Tamires Sanches
Edição executiva da Websérie Recomeços: Fábio Preccaro, Beatriz Milanez
Edição de texto da Websérie Recomeços: Jéssica Leite
Edição de imagens da Websérie Recomeços: André Zampieri
Gerente Operacional: Thiago Henrico
Gerência de Jornalismo Record News: Larissa Chaves
Gerente Geral Regional/ Record News Araraquara: Moisés Lucena
Direção de Jornalismo Record News: Camila Moraes
Vice-presidente de Jornalismo: Antonio Guerreiro