“Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União.”
Década após década, o PCC (Primeiro Comando da Capital) abandona cada vez mais o lema que, supostamente, norteou sua criação. Em 30 anos, a facção criminosa deixou de lutar pelos direitos dos presos em prol de um objetivo maior — e bem menos nobre: maximizar o lucro conseguido por meio das mais diversas e violentas atividades criminosas. Segundo cientistas políticos e autoridades ouvidas pelo R7, a principal atuação dos criminosos hoje é o tráfico internacional de drogas, carro-chefe do esquema.
A facção ganhou força e se tornou ainda mais perigosa: movimenta aproximadamente US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,4 bilhões) por ano, ocupando o oitavo lugar no ranking mundial das organizações criminosas, de acordo com o UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, na sigla em inglês).
“Hoje, eles estão cuidando do tráfico de entorpecentes, enquanto o preso continua largado dentro do sistema prisional às expensas do Executivo. Às vezes, passando por situações que a gente já vivia [presenciava] há 30 anos”, afirma Ivana David, desembargadora do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que acompanha o PCC desde a sua fundação.
O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, integrante do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do MPSP (Ministério Público de São Paulo), reitera que a principal preocupação da facção é o lucro que provém da atividade criminosa. Muito embora serviços assistencialistas — como distribuição de kits de higiene e ônibus disponibilizados para visitas familiares — passem aos integrantes a impressão de que estão sendo cuidados pelos líderes.
Entre esses chefões, um deles ganhou destaque a partir dos anos 2000: Marcos Willians Herbas Camacho — o Marcola. Ele descentralizou o poder e criou as "sintonias", um esquema malicioso que repõe automaticamente quem não deu certo, colocando a sobrevivência da atividade criminosa acima das demandas individuais.
Mesmo assim, especialistas apontam um momento delicado para o PCC, que hoje mostra sua fragilidade com o isolamento de Marcola e rachas internos.
“Quem está no comando do PCC e está em liberdade está milionário. Então, eles não estão muito preocupados com o que os presos pedem ou acham. O sujeito que está preso, às vezes, foi condenado a 20, 30 anos por causa do PCC. Foi cumprir uma missão, envolveu-se na morte de um policial, por exemplo, e é esquecido no sistema prisional. Eles estão preocupados em ganhar dinheiro”, explica Gakiya.
De acordo com Ivana David, muitos integrantes estão insatisfeitos com o rumo do PCC e vêm abandonando o grupo criminoso para ingressar em outras organizações ou fundando as próprias. “Não é por outro motivo que assistimos à criação de outras pequenas facções. Só no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, temos 53 cadastradas, e deve ter muito mais”, justifica.
Carlos Augusto, cientista político e integrante do Grupo de Pesquisa em Segurança Pública e Violência e Justiça da UFABC (Universidade Federal do ABC), também afirma que o ideal mais comunitário e social do PCC sobrevive somente dentro do sistema penitenciário e entre os membros mais antigos da organização criminosa.
A lógica capitalista e a fome pelo lucro distanciaram o comando da facção dos demais integrantes, principalmente daqueles que ocupam a base e são responsáveis pelas vendas no varejo nas periferias, explica o cientista político.
Em 25 de janeiro deste ano, Marcola foi transferido da Penitenciária de Porto Velho, em Rondônia, para a Penitenciária Federal de Brasília, no Distrito Federal, dentro do Complexo da Papuda, região de segurança máxima. Isso, mais do que nunca, fez com que o número 1 do PCC ficasse incomunicável com o mundo exterior, tolhendo sua capacidade de dar ordens e de saber os detalhes da facção criminosa multimilionária que comanda.
Gakiya, responsável pelo pedido de transferência de Marcola e jurado de morte pelo grupo criminoso, conta que desde o deslocamento do líder houve um enfraquecimento relativo do PCC, e hoje há uma disputa interna pelo poder.
“Tanto Marcola quanto os integrantes que tinham mais poder foram transferidos. Eles estão perdendo a força porque acabam isolados, não têm contato com o mundo externo, salvo por meio de advogados e familiares. Há também o isolamento físico e territorial, porque a maioria dessa cúpula está bem longe do estado de São Paulo, o que não permite que as ordens sejam transmitidas com facilidade nas ruas e dificulta o feedback”, explica.
"Playboy", como Marcola também é conhecido, está há quase 30 anos preso e tem 342 de condenação. Com isso, “ele foi perdendo o fôlego”, afirma Ivana, que integra o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). “Hoje, eu acho que ele é mais um símbolo do que uma voz de poder.”
Desde a transferência, toda conversa que Marcola tem com o advogado é gravada, e o que ele fala com a mulher precisa ser dito em um código — que, muitas vezes, a Polícia Federal entende, já que foi treinada para decifrar essa comunicação.
“O Estado corta a comunicação do Marcola com o mundo exterior, ele perde o poder de se comunicar com a sintonia final, que é quem recebe as ordens. O PCC é uma empresa. O CEO ficou doente, o vice responde”, exemplifica Ivana.
Com a cúpula isolada, o maior desafio da polícia e do Ministério Público passa a ser a nova liderança do grupo, aqueles que foram colocados como os responsáveis pela “sintonia final” da organização criminosa. A operação Sharks foi iniciada justamente para investigar, encontrar e deter esse novo grupo de comandantes, a partir do cruzamento de múltiplos dados que resultaram em informações sobre o alto escalão da facção.
As provas colhidas na operação, principalmente uma planilha com dados extensos encontrados com "Tubarão", integrante responsável pela administração do setor financeiro, revelaram a cadeia logística no tráfico de drogas. Mostraram ainda como funciona a sucessão entre as principais lideranças à frente da fonte de maior renda da organização criminosa. Isso revelou, pelo menos no início da ação, a participação de 21 pessoas ligadas à cúpula, algumas presas durante a investigação, de acordo com o MPSP.
“A gente também comprovou, por meio desse processo, que o PCC encaminhou R$ 1,2 bilhão para o Paraguai, entre 2019 e 2020. Acho que tem muita coisa a ser feita no que diz respeito ainda à lavagem de dinheiro, mas depende também dessa colaboração internacional que nós estamos buscando, tanto com o governo federal quanto com polícias e ministérios públicos de outros países”, conclui Gakiya.
Traficante Jorge Rafaat, assassinado a tiros de metralhadora antiaérea em 2016
ReproduçãoApós o assassinato do traficante Jorge Rafaat, conhecido como o “Rei da Fronteira”, no Paraguai, em 2016, o PCC deu início ao processo de expansão internacional do tráfico de drogas — com o domínio da rota localizada no sul do país.
Segundo Carlos Augusto, pesquisador em segurança pública, a facção começa a dominar toda a cadeia do crime: a produção (com parcerias no Paraguai e na Bolívia); o transporte — através de estradas, rodovias, pequenos aeroportos e portos; e as lojas, antigamente conhecidas como biqueiras, onde as drogas são comercializados no varejo.
Além do domínio de toda a rede, um diferencial do PCC nas múltiplas práticas criminosas em relação às demais facções brasileiras, como o Comando Vermelho, é a possibilidade de lucrar com o tráfico de forma individual — sem precisar dividir os ganhos com a facção. O que torna a organização muito atrativa e leva ao surgimento de “empresários” criminosos, como André do Rap.
“Não, há no PCC, uma porcentagem do lucro, ou dos negócios, a dividir com a fraternidade. Se outras facções funcionam assim, no PCC, a lógica econômica dos negócios de cada irmão é autônoma em relação à organização política e à economia interna. É por isso, fundamentalmente, que seu poder de crescimento é tamanho”, escreve Gabriel Feltran, professor do Departamento de Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), no livro Irmãos — Uma História do PCC.
Entretanto, é apenas uma pequena parcela que, de fato, enriquece com o tráfico de drogas. Da mesma forma como ocorre na economia legal, o lucro da prática criminosa está concentrado nas mãos dos detentores dos meios de produção — os donos dos produtos e dos mecanismos de distribuição das drogas, argumenta Carlos Augusto.
Hoje, coexistem dois PCCs: o que mora na favela e o que reside em regiões nobres como Jardins, na zona oeste da capital paulista, e Alphaville, na região metropolitana de São Paulo.
E, nesse sistema econômico do crime, o elemento com menos força na organização está na ponta da cadeia: os funcionários das “lojinhas de drogas” — que são moradores das comunidades, segundo o pesquisador.
“É tentador, né? Direto os cara chama pra uns trampo e eu não tenho emprego fixo, onde vou ganhar o que ganhava? Naquela época eu ajudei em casa, dei um grau no barraco, tá ligado? Sempre fui cabeça, não gastava nos rolê, mas aí dinheiro assim vai que vai e aquilo não era vida, vivia escondido, desconfiava de todo mundo e mesmo com tudo caí. Não volto não, quero fazer de tudo para ficar de boas, criar meus filho na paz.”
O relato acima é de um jovem, ex-gerente de uma "lojinha de drogas" na região metropolitana de São Paulo, e foi dado ao cientista político Carlos Augusto durante sua pesquisa sobre a precarização do trabalho no tráfico de drogas.
Esse jovem e outros confessam ao pesquisador que escolheram se envolver com o crime pelo fato de o pagamento ser mais vantajoso e pela possibilidade de melhorar a vida de suas famílias. Eles alegam que, nas comunidades, as opções de trabalho são limitadas e com baixíssima remuneração.
Apesar de o “salário” ser mais atrativo, ele tem muitas consequências — além da mais óbvia, que é a prisão. Os funcionários das "lojinhas de drogas" estão expostos a duas forças de opressão e violência: da própria facção criminosa e do Estado (na figura das polícias Militar e Civil).
“Muitos relatam que querem sair [desse sistema], mas não conseguem. É quase uma escravidão. Se você foi preso e for pego com uma quantidade determinada de dinheiro ou droga, você está devendo [à organização]. E você tem que pagar trabalhando”, relata Carlos Augusto.
Uma "loja de drogas" na região do ABC paulista, por exemplo, pode lucrar cerca de R$ 150 mil por semana. Geralmente, as mulheres da facção são responsáveis pelo transporte do dinheiro, em razão da menor possibilidade de abordagem policial. Entretanto, isso não acarreta menor responsabilidade para elas: caso o valor das vendas seja apreendido, elas serão cobradas pelo dono do ponto de tráfico.
“Quando o PCC começou a entrar nos ambientes políticos e econômicos, ele criou um outro sistema de mais opressão por parte da grana. Ele passa a deixar de ser social para ser opressor. O capitalista nada mais é do que isso. Para ganhar dinheiro, você tem que oprimir alguém. E quem ele começou a oprimir? A comunidade. Quem é funcionário dele? A comunidade”, reforça.
Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que, só em 2022, 8.000 pessoas foram assassinadas na Amazônia Legal, região do Brasil composta de nove estados. A taxa de mortes por 100 mil habitantes foi de 26,7 na localidade, enquanto no restante do país foi de 17,7.
Entre as principais razões da alta letalidade está a disputa das rotas de tráfico de drogas por facções criminosas, principalmente entre o PCC e o CV (Comando Vermelho), afirmam especialistas.
A Amazônia Legal faz fronteira com três dos principais produtores mundiais de drogas: Bolívia, Peru e Colômbia. Por isso, é uma rota de grande importância para a entrada dos entorpecentes no Brasil, que, por sua vez, serão consumidos aqui ou encaminhados para outros mercados, como Estados Unidos, Europa e África.
Com base em dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes de 2021 e em entrevistas com policiais federais que atuam no combate ao crime organizado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que o tráfico de cocaína seria responsável por fazer circular o equivalente a 4% do PIB brasileiro, que fechou em R$ 8,7 trilhões em 2021.
Já as rotas internacionais que passam pelos estados da Amazônia Legal responderiam por cerca de 40% desse volume de dinheiro. Ou seja, pelo menos R$ 139,2 milhões foram movimentados pelas organizações criminosas somente nesta região.
A desembargadora Ivana David, também integrante do Centro de Inteligência do TJSP, afirma que o Comando Vermelho está presente no Norte do país, tentando tomar por completo as rotas de tráfico na região para impedir que o PCC domine e crie uma hegemonia em toda a fronteira seca do Brasil.
Outro ponto ressaltado pela especialista é a questão do garimpo. "Muita gente acredita que o PCC esteja diretamente envolvido com o garimpo ilegal na Amazônia, mas quem está no garimpo são pessoas como o André do Rap [classificado como uma espécie de "terceirizado" da facção], que, com o dinheiro oriundo do tráfico, de importação independente, estão investindo o lucro no garimpo", explica Ivana David.
Máfia, cartel, irmandade ou sociedade secreta? Não é fácil classificar o PCC. A definição depende da perspectiva adotada e a partir de qual ponto da história a facção criminosa é analisada.
Para o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, a organização criminosa poderia ser classificada como máfia, pois atende a quase todos os requisitos, como atuação transnacional, divisão interna do tipo empresarial, infiltração nos poderes do Estado, lavagem de dinheiro estruturada e sociedade secreta.
Assim como nas máfias, o comando do PCC instituiu o código do silêncio. Isto é, se algum integrante for preso, ele não pode revelar os detalhes do funcionamento da organização criminosa às autoridades policiais, sob o risco de morte.
Já para a desembargadora Ivana David, o PCC tem ingredientes de cartel e de máfia. Ao longo dos anos, a organização criminosa passou a copiar alguns modelos, principalmente da máfia calabresa. Entretanto, ela não possui um elemento essencial para esse tipo de estrutura: a ligação familiar.
“A formação do PCC está mais próxima do cartel do que da máfia, porém o tamanho do PCC [que está se expandindo transnacionalmente] é do tamanho da máfia”, afirma. Segundo a desembargadora, o que diferencia o cartel das demais organizações é a questão geopolítica.
“Não existe cartel transnacional. No México e na Colômbia, eles são divididos. Cada estado é um cartel. Aqui no Brasil não é assim, não tem essa divisão geográfica. Ninguém respeita nada, vai tomando tudo”, explica.
Já o sociólogo Gabriel Feltran tem uma visão diferente sobre a definição da facção criminosa que surgiu em solos paulistas. Para ele, o PCC é uma fraternidade criminal que funciona como sociedade secreta, a exemplo da maçonaria, que é fortalecida ao incorporar estruturas empresariais e militares. “Uma sociedade secreta tem pessoas muito respeitadas, mas não tem mando”, reforça.
Psicóloga e autora do livro Primeiro Comando da Capital (PCC): el Grupo Criminal Brasileño de las Cárceles, Mônica Leimgruber ainda acrescenta que o PCC é um contrato social com a punição máxima de morte.
“Nenhuma organização se mantém se não tiver um contrato social […] Quando você tem uma punição máxima de morte, a sua tendência é realmente obedecer a esse contrato estabelecido naquela organização.”
A maior facção criminosa do país completa 30 anos em um momento de expansão do tráfico internacional de drogas. Hoje, para combater a criminalidade e criar políticas de segurança pública no Brasil, é imprescindível compreender o PCC e enfrentá-lo.
As últimas três décadas representam uma mudança completa na estrutura do mundo do crime no Brasil e na América Latina, que precisa ser acompanhada por novas políticas de segurança, afirma Gabriel Feltran.
Ao longo dos anos, a organização criminosa utilizou a política de encarceramento em massa para promover a sua expansão.
"O PCC instrumentaliza os investimentos em prisões e repressão para seu próprio crescimento há tempos”, diz o professor do Departamento de Sociologia da UFSCar.
“Prender é ruim para quem é preso, mas é ótimo para a facção. Além disso, o modelo de liderança do PCC é despersonalizado, ou seja, há posições centrais de poder, mas esse poder é da posição, e não da pessoa que a ocupa”, afirma o especialista.
Até agora, o meio mais viável que todos os investigadores e pesquisadores sobre a facção encontraram para enfrentar o PCC é o que eles chamam de “follow the money”, ou, siga o dinheiro, em inglês.
Por isso, segundo o investigador Gakiya, torna-se cada vez mais necessária a colaboração por parte das autoridades públicas de outros países.
“Se a gente não tiver essa colaboração com as instituições policiais de outros países, principalmente do Paraguai, onde já há comprovação de que o PCC manda muito dinheiro daqui para lá, a gente não tem como aqui de dentro do país, ou mesmo em São Paulo, quebrar esses sigilos e verificar esses caminhos do dinheiro”, explica.
Para ele, essas questões devem ser resolvidas com um esforço do Estado brasileiro aliado às polícias locais e às lideranças dos países da América do Sul que são produtores da droga.
Ivana David, por outro lado, cita a importância de trabalhar na prevenção desse tipo de criminalidade ofertando saúde e educação, tirando a criança da mão do grupo criminoso. “O jovem vai começar como biqueiro e sonhar um dia virar um sintonia naquela empresa.”
“Está cheio de milionário praticando crime. [É preciso] trabalhar na educação, na saúde e na esperança dessa juventude para que o canto da sereia — que é o crime organizado — não leve esse menor para dentro da organização criminosa e lhe prometa uma carreira”, afirma a desembargadora.
Reportagem: Isabelle Amaral, Letícia Dauer e Lucas Ferreira
Edição: Vivian Masutti
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Adriano Sorrentino e Sabrina Cessarovice