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Por Luís Adorno, do Núcleo Investigativo da RecordTV

Seis anos atrás, Lucimara Pars, de 45 anos, foi deixada, de surpresa, pelo marido. Coube a ela cuidar, sozinha, da filha, que tinha apenas um ano e sete meses. Em janeiro deste ano, o ex-marido disse a ela que não tinha mais emprego no Ceará, para onde tinha ido quando a largou, e pediu para voltar para a casa dela, no Capão Redondo, zona sul da capital paulista. Por ser pai da sua filha, Lucimara autorizou, mas temporariamente.

No início, ele ficaria apenas dois dias dentro da casa, tempo que seria hábil para que ele encontrasse um novo emprego ou bico para se manter em outro lugar na cidade. O período aumentou para duas semanas. O ex-marido encontrou um bico de serviços gerais, mas começou a beber álcool depois de terminar o trabalho com os novos colegas. Embriagado, chegava em casa e tratava sua ex como se fosse sua posse.

Ao receber negativas de retornar o que viveram no passado, o ex dela começou a quebrar os itens domésticos. Bateu e quebrou a geladeira e a televisão. Depois, a agrediu, na frente da filha dos dois, que ficou assustada. Hematomas foram deixados em seus braços. Assim como ela, durante a cada minuto da pandemia, oito mulheres foram agredidas fisicamente no Brasil. O dado foi divulgado nesta segunda-feira (7) pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

mesmo com a pandemia, continuamos com um número muito elevado de violência doméstica no Brasil.

Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP

Os dados integram o relatório “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”. De acordo com o levantamento, no último ano, 17 milhões de mulheres foram expostas a algum tipo de violência no Brasil. Além de agressões físicas, os dados apontam que foram muitos os relatos de ameaças e de agressões psicológicas e verbais.

Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, “a principal informação é o fato de que, mesmo com a pandemia, continuamos com um número muito elevado de violência doméstica no Brasil. Esse número não é novo, infelizmente, tem muitos anos que indicamos isso, mas mostramos que, a cada minuto, oito mulheres apanharam no Brasil. Em sua maioria, em situações de violência doméstica intrafamiliar”.

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Reprodução/ Record TV
As agressões e os agressores

F.S. é uma mulher de 34 anos que não pode dizer seu sobrenome, não pode mostrar o rosto e nem revelar onde está. Isso porque foi agredida pelo ex-marido em Araçatuba, a 517 km da capital paulista, fugiu e, agora, tenta reconstruir sua vida longe dele. Ela relembra do ex com dificuldade, diz que o estado de pânico não some e que tem muita dificuldade de se relacionar com as pessoas.

De acordo com o relatório, uma a cada quatro mulheres acima de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência. Os índices apontam que as mulheres até 34 anos são as que mais sofrem. As vítimas entre 16 e 34 anos representam 63,8% do total das mulheres agredidas psicologicamente ou fisicamente no país.

Ao todo, 13 milhões de mulheres (18,6% do total) foram vítimas de ofensa verbal, como insulto, humilhação ou xingamento. Mais de 4 milhões de mulheres (6,3%) sofreram chutes, empurrões ou tapas. Mais de 3 milhões de mulheres (5,4%) sofreram violência sexual. Outras 2 milhões de mulheres (3,1%) foram ameaçadas com faca ou com arma. E mais de 1 milhão de mulheres (2,4%) foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento.

“No Brasil, nós temos, infelizmente, números elevadíssimos de violência contra a mulher. Somos uma das nações que mais mata no mundo. Então, é muito importante que a gente conscientize essa mulher que está sofrendo violência para buscar ajuda. Se não quer envolver polícia no caso, por exemplo, não tem problema: Ligue para o 180, para ONGs, hospitais. É importante não sofrer calada”, afirma Samira Bueno.

Entre as vítimas de violência, as mulheres separadas ou divorciadas foram as que mais sofreram violência durante a pandemia: 35% do total. Depois, as solteiras (30,7%), viúvas (17,1%) e casadas (16,8%). Quando é levado em conta a raça das vítimas, quem mais sofre são as mulheres pretas (28,3%), seguidas das pardas (24,6%) e brancas (23,5%), de acordo com o levantamento do FBSP.

A pesquisa também mostra que, a cada 10 casos registrados, em sete o autor da agressão é um conhecido da vítima. Desse total, em 25,4% dos casos, o agressor era o companheiro da vítima; em 18,1%, o ex da vítima; e, em 11,2%, o agressor é o pai ou a mãe. Quase metade desses casos (48,8%) foi registrada dentro de casa. Na rua: 19,9%; No trabalho: 9,4%.

“O fenômeno da violência doméstica é complexo, porque a mulher vítima está sendo agredida por uma pessoa que ela jurou amar. Isso torna tudo mais difícil. Denunciar para uma autoridade ou mesmo num hospital é muito difícil. Passa por vergonha, medo de que ele seja preso. Muitas vezes, a vítima só quer que o autor para de agredi-la”, diz Samira Bueno.

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Divulgação/Governo do Estado de São Paulo
Depois da agressão

Repercutiu no final do mês de maio uma ligação que uma moradora de Andradina, a 625 km da capital paulista, fez para a PM (Polícia Militar) fingindo que pedia uma pizza para denunciar que estava sofrendo violência doméstica. Ao atender a ligação, o soldado Cássio Júnior dos Santos afirmou que ela estava ligando para polícia. Ao responder que sabia, o policial entendeu o recado e solicitou o envio de uma viatura para atendê-la no local.

“Não espere você tomar um soco no rosto, quebrar uma costela, ter uma lesão corporal grave, ter até mesmo uma ameaça de morte ou uma tentativa de feminicídio para procurar ajuda da polícia."

delegada Raquel Gallinati,

Mas muitas mulheres não têm a mesma decisão. De acordo com o relatório do FBSP, após sofrerem agressões, 45% das agredidas no Brasil durante o período da pandemia não fizeram nada. Outras 22% das vítimas procuram ajuda da família e 13% buscaram ajuda de amigos. Apenas 12% foram até uma delegacia da mulher para registrar denúncia. Outras 7% foram para delegacias comuns e/ou ligam para o 190, da PM.

A delegada Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de SP, orienta que todas as mulheres que sofrem violência devem procurar ajuda. “Não espere você tomar um soco no rosto, quebrar uma costela, ter uma lesão corporal grave, ter até mesmo uma ameaça de morte ou uma tentativa de feminicídio para procurar ajuda da polícia. Nos sinais, é preciso que as mulheres tenham forças para denunciar”.

Das que decidiram não procurar ajuda -na polícia ou fora da polícia- 32,8% afirmaram, ainda segundo o relatório do FBSP, que decidiram isso sozinhas. Outras 16,8% afirmaram que a ação não era importante a ponto de chamar a polícia. 13,4% ficaram com medo de sofrer represálias e 12,6% não tinham provas o suficiente para levar à polícia.

A delegada ser importante procurar ajuda da polícia, de familiares, colegas de trabalho e fugir de todo relacionamento abusivo. “Podem ir até uma delegacia de polícia, uma especializada de defesa da mulher ou qualquer outra delegacia. Toda delegacia pode responsabilizar o criminoso. No caso de um flagrante, a mulher relata o fato para que se inicie um Boletim de

Ocorrência, depois uma instauração de inquérito policial e, ali, pode solicitar as protetivas de urgência, se necessário.”

Segundo Samira Bueno, “o grande problema é que a violência doméstica é silenciosa. Ela começa, geralmente, com um insulto, violência verbal. Ele te xinga num dia, no outro te desmerece, tem uma enorme briga, no dia seguinte ele aparece arrependido, diz que te agrediu porque bebeu, te trata bem de novo, aí começa a agredir fisicamente e vai escalando. Começa com violência psicológica e vai para a física, o que pode terminar com um feminicídio”.

Cruz vermelha pintada na palma da mão com batom por uma mulher, como símbolo do pedido de socorro (Reprodução/Record TV)

Cruz vermelha pintada na palma da mão com batom por uma mulher, como símbolo do pedido de socorro

Reprodução/Record TV

Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo 
Reportagem: Luís Adorno
Colaboração: Márcio Neves
Coordenação: Thiago Samora
Chefe de Redação: André Caramante