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Pablo Nascimento e Priscilla de Paula, da Record TV Minas

A estátua vistosa no centro da rotatória, em meio a duas grandes placas de ferro, na entrada de Itabira, indicam a força de uma grande personalidade na cidade mineira com pouco mais de 120 mil habitantes, localizada na região central do estado, a 106 km de Belo Horizonte.

Quem se aproxima observa que uma das placas traz um poema: A Grande Ilusão do Migrante. A escultura maciça ao lado tem a figura do autor: Carlos Drummond de Andrade — o itabirano mais famoso, que deixou em sua obra sinais da saudade pela terra natal, de onde se mudou ainda na juventude.

R7 Estúdio percorre locais de Minas Gerais que ainda guardam tesouros de um dos maiores escritores do país e que eternizam os bastidores da vida do poeta que, se estivesse vivo, teria completado 120 anos em 31 de outubro de 2022.

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Arte/R7

Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é consequência
de um certo nascer ali.

Trecho de 'A Ilusão do Migrante', Carlos Drummond de Andrade

A estátua na chegada da Itabira não é a única homenagem a Drummond na cidade. A obra faz parte do Museu de Território Caminhos Drummondianos, um circuito com 44 placas instaladas pelo município com poemas do escritor mineiro.

A 6 km da obra está a Fazenda Pontal, com uma réplica do casarão da fazenda da família de Drummond, no qual ele passou boa parte da infância, principalmente férias e fins de semana. A propriedade original foi destruída em 1973 para dar espaço a uma barragem de minério. A cópia foi erguida como contrapartida para manter viva a história do poeta.

Fazenda tem estátua de Drummond ainda criança (Priscilla de Paula / Record TV Minas)

Fazenda tem estátua de Drummond ainda criança

Priscilla de Paula / Record TV Minas

O coordenador da Fazenda Pontal, José Norberto, acredita que Drummond já esboçava seus primeiros textos na propriedade. "A fazenda tem um sentido histórico e cultural, mas também era o centro das atenções do poeta enquanto criança", relata.

Mas Drummond não ficou muito tempo na cidade. Antes de sair da adolescência, ele já havia se mudado para a capital do estado, Belo Horizonte, onde frequentou o centenário Colégio Arnaldo, na região centro-sul do município — além de ter passado uma temporada em um colégio interno de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, de onde foi expulso por "insubordinação mental".

O R7 visitou o Colégio Arnaldo para entender como era o aluno Carlos Drummond na escola que continua em funcionamento até hoje. A equipe também foi ao bairro onde os familiares do escritor viveram em Belo Horizonte para ver o que eles deixaram de marca na cidade. Ouça as histórias no podcast abaixo:

A timidez característica do jovem magro e franzino não impedia as críticas pontuais sobre os problemas cotidianos que ele mostrava em seus textos. O traço marcante da escrita se perpetuou quando ele se juntou a outros escritores mineiros em BH para editar A Revista, produção de estilo modernista que propagava na jovem capital mineira as tendências do movimento cultural e literário iniciado com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922.

"O modernismo veio trazer o cotidiano quanto aos temas, além da liberdade formal. Qualquer coisa pode ser motivo de poema. Tudo pode receber tratamento poético. Até uma pedra no meio do caminho", explica Antônio Sérgio Bueno, professor aposentado de literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) sobre as características do movimento literário.

Foi baseado nessa ruptura com os padrões estilísticos da literatura que Drummond transformou acontecimentos corriqueiros em versos, como no poema No Meio do Caminho.

No meio do caminho tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho,
tinha uma pedra,
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho,
no meio do caminho tinha uma pedra.

'No Meio do Caminho', Carlos Drummond de Andrade

"Você imagina o escândalo que essa pedra foi em Belo Horizonte nos anos 1920. Teve gente que disse que ele deveria pegar essa pedra e bater na própria cabeça. São versos totalmente livres. Não tinha nenhuma metrificação. A temática era surpreendente", avalia Antônio Sérgio Bueno.

Apesar da habilidade de Drummond com as palavras, o pai dele, Carlos de Paula Andrade, coronel e fazendeiro influente na política itabirana, não via futuro para o filho na literatura. Quem conta a história é Flávia Andrade Goulart, sobrinha do escritor, que hoje, aos 94 anos, vive em Belo Horizonte. "Na família mesmo, ele ficou isolado. Não acreditavam no sucesso que o tio Carlos faria como escritor", relembra.

A sobrinha do poeta fala que, certa vez, o avô foi surpreendido por Drummond ao perguntar ao filho a cor da pedra que deveria ser colocada em seu anel de formatura na faculdade.

"Meu avô disse que havia comprado um rubi para o anel do meu pai, que estudara direito. Então meu tio disse: 'Eu cursei farmácia porque o senhor exigiu um curso superior, mas eu não sei fazer uma pílula'", recorda-se.

Drummond e a imprensa

Apesar de ter se formado em farmácia, Carlos Drummond de Andrade nunca exerceu a profissão. A maior parte da vida dele foi dedicada a cargos públicos, mas foi nas redações jornalísticas que ele fez história.

O jornalista e escritor Humberto Werneck, que prepara uma biografia sobre Drummond, afirma que o itabirano foi em busca de uma vaga de colaborador no pequeno Jornal de Minas, em Belo Horizonte, quando a família dele se mudou para a capital mineira, em 1920. Na época, a cidade tinha 23 anos — pouco mais velha que o jovem de 18 anos.

"Drummond era um cara que se interessava por tudo. Desde criança, ele gostava de revistas e jornais. Antes de ser alfabetizado, ele se apaixonava até pela forma física das letras", explica Werneck sobre a relação do itabirano com a escrita.

Memorial em Itabira tem desenhos de Drummond feitos por ele mesmo (Priscilla de Paula / Record TV Minas)

Memorial em Itabira tem desenhos de Drummond feitos por ele mesmo

Priscilla de Paula / Record TV Minas

O escritor chegou a trabalhar como redator e a chefiar a redação de um jornal, além de colaborar com as principais publicações do estado, mas as crônicas eram o forte dele. Depois de se mudar para o Rio de Janeiro, em 1934, para assumir o cargo de chefe de gabinete do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, ele passou a colaborar com jornais cariocas. Entre eles, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, para o qual redigiu a última crônica antes de morrer.

Historiadores calculam que Carlos Drummond de Andrade tenha escrito mais de 6.000 textos a partir de 1920. A datilografia original de quase 400 crônicas compostas entre 1960 e 1970 estão guardadas na AML (Academia Mineira de Letras), em Belo Horizonte. Os textos estão organizados em dez volumes, jamais publicados nessa formatação.

Rogério Faria Tavares, presidente da AML, afirma que as crônicas do itabirano podem ser divididas, basicamente, em três grandes grupos: os textos do cidadão atento à comunidade — desde a segurança até banalidades como o pássaro na casa do vizinho; os textos saudosistas que narram a vida na cidade natal de Drummond; e os escritos que questionavam o futuro do meio ambiente.

"Drummond era, sobretudo, o poeta do sentimento do mundo. Atento e sensível às coisas do seu tempo, da sua realidade e do seu entorno. Ele não era alheio nem alienando, encerrado em torre de marfim ou gabinete refrigerado. Ele vivia integralmente o que o homem do povo vivia. A escrita drummondiana é clássica porque ela é atual", contextualiza.

Para conhecer histórias dos bastidores e desafios de Drummond na imprensa mineira, ouça o podcast abaixo, que traz entrevista com o biógrafo Humberto Werneck:

Drummond e a mineração

Os estudiosos não têm dúvida ao afirmar que Carlos Drummond de Andrade também foi à frente do tempo dele ao externar nos textos sua preocupação ambiental. Principalmente em relação à mineração.

José Miguel Wisnik, professor de literatura aposentado da USP (Universidade de São Paulo), diz que a relação de Drummond com o tema começa já em suas origens. Itabira, sua cidade natal, também foi berço da mineradora Vale.

"Itabira fica no quadrilátero ferrífero, em Minas Gerais. É uma região de portentosas jazidas de ferro. Tem toda uma história que começou no início do século 20, quando mineradoras e siderúrgicas de Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Bélgica souberam que Minas Gerais tinha esse potencial de reservas e correram para lá para comprar terras", explica Wisnik.

O professor lembra que, com o passar dos anos, Drummond viu o pico do Cauê, que ficava no horizonte da antiga casa dele, ser reduzido devido à exploração mineral na região. Cada um de nós tem seu pedaço do pico do Cauê.

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Priscilla de Paula / Record TV Minas

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro,
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda,
Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

'Lanterna Mágica', Carlos Drummond de Andrade

No podcast a seguir, o professor José Miguel Wisnik explica como as críticas à mineração afetaram a visão dos itabiranos em relação ao conterrâneo. Durante algum tempo, ele chegou a ser visto como ingrato pelos moradores da cidade.

O Rio? É doce./A Vale? Amarga./Ai, antes fosse/Mais leve a carga./Entre estatais/E multinacionais,/Quantos ais!/A dívida interna./A dívida externa./A dívida eterna./Quantas toneladas exportamos/De ferro?/Quantas lágrimas disfarçamos/Sem berro?

'Lira Itabirana', Carlos Drummond de Andrade

O tesouro
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Drummond morreu no Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto de 1987, aos 84 anos, apenas 12 dias depois da morte da única filha dele, Maria Julieta Drummond de Andrade, então com 59 anos.

A saga do cronista é tema da série de reportagens O Tesouro de Drummond, da Record TV Minas. O especial foi dividido em quatro episódios. Assista a seguir:


Reportagem: Pablo Nascimento e Priscilla de Paula
Arte: Bruna Santana
Edição: Marcos Rogério Lopes
Produção: Luciana Simões
Edição de VT: Isabel Andrade
Vinheta: João Teixeira Júnior
Edição de podcast: Kiko Viveiros
Chefia de redação:
Adriana Viggiano e Flávia Martins y Miguel
Direção de jornalismo: Marco Nascimento