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Luís Adorno, Catarina Hong e Hugo Costa, em Porto Príncipe, Les Cayes, Jérémie, Nippes e Corail

Pelas ruas de Porto Príncipe, capital do país mais pobre do ocidente, ainda são visíveis as marcas de que o Haiti não se recuperou do terremoto que matou mais de 300 mil pessoas em janeiro de 2010. Ainda há escombros pela cidade e, 11 anos depois, nem o palácio presidencial foi reerguido. Com a ferida não estancada, o povo haitiano agora tenta sobreviver a mais um tremor de terra, que deixou 2,2 mil mortos no Sudoeste da ilha situada no Caribe.

A intensidade dos dois terremotos foi semelhante. Porém, por ter atingido uma área mais rural -e ainda mais pobre e isolada-, o desastre não foi pior. Com o epicentro no distrito de Nippes, os locais mais afetados foram Les Cayes -a terceira maior província do Haiti-, Jérémie, Corail e L'Asile. Em geral, são localidades com agricultores, que cultivam, em sua maioria, banana, milho e feijão, além de pescadores. Distantes da capital Porto Príncipe, os distritos ficam afastados de tudo, inclusive da ajuda humanitária.

Desde a manhã de 14 de agosto, quando aconteceu o terremoto, o Sudoeste da ilha vem sendo atingido por réplicas do abalo sísmico, mas com menor intensidade. Em média, há pelo menos dois novos tremores de terra por dia. Mas não é só. Além disso, o país também teve ciclones recentes e o assassinato do presidente, Jovenel Moise, de 53 anos, no último 7 de julho. Antes de ser morto dentro de sua casa, ele foi torturado por um esquadrão formado por 26 colombianos. Ainda não se sabe a motivação do crime, mas os indícios locais apontam que o homicídio teve interesses políticos.

Em meio a isso, sobreviventes do novo terremoto -feridos ou não- tentam se adaptar às condições ainda mais precárias deixadas pelo desastre natural. Para sobreviver, vencem um dia de cada vez. Às vezes, sem água, sem comida e sem lugar para dormir. Dependendo muito de ajuda humanitária, que dificilmente chega aos locais de acesso mais restrito, muito pela atuação de gangues que impedem o caminho para saques. 

Bebês sobreviventes
Haitiana amamenta neta recém-nascida no hospital de Les Cayes
 (RecordTV)

Haitiana amamenta neta recém-nascida no hospital de Les Cayes

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A maternidade do hospital Imaculada Conceição, no centro de Les Cayes, no Sudoeste do Haiti, viu sua demanda de pacientes dobrar após o terremoto atingir a região. "Chegou tanta gente que não tínhamos cama para atendê-las. Colocamos as pessoas no chão. Alguns bebês nasceram com defeitos", afirma a enfermeira chefe do departamento, Rose Sterline Georges, de 29 anos. Dentro da maternidade cheia, não há nem sequer uma pessoa com máscara no rosto por precaução contra a covid-19.

Wudemizard Aristin, de 19 anos, perdeu o bebê que esperava ao cair fugindo do terremoto
 (RecordTV)

Wudemizard Aristin, de 19 anos, perdeu o bebê que esperava ao cair fugindo do terremoto

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Algumas das grávidas de Les Cayes não conseguiram salvar seus bebês. A vendedora ambulante Wudemizard Aristin, de 19 anos, saiu correndo quando sua casa começou a balançar, por volta das 8h30 do dia 14 de agosto. No desespero, caiu. Sentiu fortes dores na barriga, onde esperava seu terceiro filho. Ao chegar ao hospital, descobriu que o feto não resistiu. Ainda em estado de choque, duas semanas depois do ocorrido, ela diz não conseguir nem pensar direito sobre o assunto.

Deitada em uma maca hospitalar, quando a vendedora olha para o lado direito, pode observar três mulheres que tiveram seus filhos, prematuros, ao lado das crianças.

Uma dessas mães está acompanhada pela avó da criança, a comerciante Constan Nicole de 45 anos. Ela conta que sua terceira neta nasceu com oito meses ao invés de nove, como estava previsto. Segundo ela, o terremoto foi o fator preponderante para que o nascimento fosse adiantado. "O que importa é que ela sobreviveu. Podemos dizer que ela já nasceu sobrevivente do terremoto", diz.

Para criá-la, porém, será outra batalha. "Eu e minha família perdemos tudo. Casa e comércio. Então, não sei o que será de nós a partir de agora. Primeiro, vou pensar em deixar a menina bem", complementa Constan.

Do lado de fora da maternidade, o hospital recebeu tendas dos Médicos Sem Fronteiras, que conta, inclusive com a ajuda de um farmacêutico brasileiro, para além de profissionais de demais nacionalidades. Ali, eles cuidam de crianças, adultos e idosos. Atualmente, a maioria de seus pacientes não têm a ver com o terremoto, o que prova que a calamidade, que já era grave antes do desastre natural, apenas se intensificou.

Os feridos fisicamente pelo terremoto
Gustave Mykervenson, de 10 anos, segura bola de tênis com punho atingido por blocos de concreto durante o terremoto
 (RecordTV)

Gustave Mykervenson, de 10 anos, segura bola de tênis com punho atingido por blocos de concreto durante o terremoto

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O menino Gustave Mykervenson, de apenas 10 anos, se preparava para lavar a louça da casa, onde vivia com a mãe e irmãos, quando teve um apagão. Horas depois, despertou em um hospital de Corail, cidade ribeirinha também situada no Sudoeste do Haiti, com médicos tratando seu punho direito. As feridas estavam graves. Por pouco, não atingiram os tendões, o que poderia fazer com que ele perdesse os movimentos da mão.

Passados alguns dias, ele retorna ao hospital, que recebe ajuda humanitária de bombeiros e médicos brasileiros, além de um médico argentino. Lá, ele é atendido pelo tenente Marcelo Neves Carvalho, do Corpo de Bombeiro do Distrito Federal que está em missão no Haiti desde o final de agosto. "Como é complicada a higiene nesta região, precisamos cuidar para que a ferida dele fique sempre limpa para cicatrizar", explica.

O menino recebeu uma bola de tênis da mãe, para ir exercitando os movimentos do punho e dos dedos. À reportagem, o garoto conta que não sentiu dor e nem percebeu o impacto de sua cozinha caindo sobre si. Ele não viu nada. Ansioso para voltar a poder brincar, ele diz querer usar a bolinha de tênis para jogar futebol com os amigos. Afirma ser craque, mas não tão bom quanto Neymar, seu maior ídolo.

A ajudante de obra August Fidele, de 30 anos, carrega sua mãe, a vendedora de carvão Livia Lamour, de 60, para o hospital de Corail, no Sudoeste do Haiti (RecordTV)

A ajudante de obra August Fidele, de 30 anos, carrega sua mãe, a vendedora de carvão Livia Lamour, de 60, para o hospital de Corail, no Sudoeste do Haiti

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Já a vendedora de carvão Livia Lamour, de 60 anos, milagrosamente está viva. Ela caminha com muita dificuldade e, constantemente, volta ao posto de saúde de Corail, para refazer seus curativos. Ela varria a calçada quando o terremoto atingiu a cidade. Um muro caiu sobre ela. Seus olhos, nariz e orelhas tinham sangue. Seus familiares, ao verem a situação, se desesperaram. Deram ela como morta.

Vizinhos, com a certeza absoluta de que ela não havia resistido, usavam o muro caído sobre ela como passagem de corredor para ajudar aqueles que eles achavam que tinham chances de sobreviver. A filha dela, a ajudante de obra August Fidelie, de 30 anos, que leva a mãe para as consultas, conta que um juiz que estava no local percebeu que os pés de Livia tinham espasmos, quando pediu ajuda médica para a idosa. Médicos a resgataram e perceberam que ainda havia sinais vitais.

Pela gravidade da vendedora de carvão, se ela fosse atingida em Corail, certamente, segundo os médicos que a atenderam, estaria morta neste momento. Foi preciso acionar a ajuda humanitária dos EUA, que havia enviado um helicóptero para o Haiti para auxiliar nas buscas de pessoas atingidas pelo terremoto. Com urgência, ela foi levada de helicóptero a um hospital maior, nas proximidades, e sobreviveu.

"Ainda sinto muita dor. Agradeço a Deus pela vida, mas não sei se ele vai me permitir ficar aqui por muito tempo. Eu sinto muita dor. Todo o meu corpo dói muito. Eu não consigo andar, não consigo dormir, não consigo comer. Todo movimento que eu faço, hoje, me dói muito", relata a vendedora de carvão.

Agricultor e destro, Phelogene Fritz Edouard, de 33 anos, perdeu três dedos da mão direita (RecordTV)

Agricultor e destro, Phelogene Fritz Edouard, de 33 anos, perdeu três dedos da mão direita

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Antes de Livia, o agricultor Phelogene Fritz Edouard foi consultado pelo médico argentino do posto de saúde, que averigou o estado de sua mão direita. Destro, ele também ficou debaixo dos escombros. Quando foi resgatado, percebeu que havia algo de errado em sua mão. Foi operado com urgência. Para sobreviver, teve que amputar três dedos. Perdendo parte de sua principal ferramenta de trabalho, agora ele diz que vai ter que reaprender a trabalhar.

"Deus me deu a mão. Agora, ele tirou. Então, deve ter um plano para mim", afima o agricultor. Ele complementa que tem familiares para ajudá-lo neste momento tão difícil, mas lamenta por aqueles que não têm. "Se olharmos aqui para o lado [uma igreja desabada], a gente vê muita gente trabalhando pra pegar restos e reconstruir suas coisas. Por mim, eu também estaria ali, mas, como não posso, meus familiares estão fazendo por mim", acrescenta.

Nova vida sem casa

Após perder casa em terremoto, família foi para um abrigo improvisado em um local descampado próximo de Les Cayes (RecordTV)

Após perder casa em terremoto, família foi para um abrigo improvisado em um local descampado próximo de Les Cayes

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As casas que não desabaram em Les Cayes ficaram, pelo menos, com fissuras. A maioria delas, graves, com potencial risco para a estrutura da residência cair. Algumas famílias decidiram, mesmo assim, permanecer em suas habitações. Outras, temendo morrer numa espécie de rescaldo gerado pelo terremoto, deixaram suas casas e passaram a viver, em conjunto, em barracas espalhadas pela cidade.

O estádio de Les Cayes, que normalmente recebe jogos da liga nacional haitiana, por ter dois times na primeira divisão, atualmente abriga 2.000 famílias em situação precária. Barracas foram erguidas com pedaços de madeira e de ferro retirados dos estulhos das casas desmoronadas. O teto é feito de lona. O chão tem alguns colchonetes velhos, onde as crianças e idosos têm prioridade para dormir.

Banheiros químicos chegaram a ser instalados para essas famílias dentro do próprio estádio, mas, com o passar dos dias, não deram conta. O mau cheio se instalou e as privadas entalaram. Com isso, os equipamentos foram retirados. A população local tem de procurar, dia após dia, um local diferente para fazer suas necessidades fisiológicas.

Menino caminha ao lado de fosso sujo na beira do estádio de Les Cayes (RecordTV)

Menino caminha ao lado de fosso sujo na beira do estádio de Les Cayes

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Além disso, há lixo espalhado por todos os cantos do estádio, dentro e fora das quatro linhas. A água que é consumida pelas 2.000 famílias chega por meio de um cano que jorraria água fora, num fosso que atualmente está entupido de lixo. Mulheres e crianças se revezam, com baldes sujos, para pegar essa água para consumo. Enquanto as crianças tomam essa água, as mulheres lavam suas panelas e demais itens utilizados diariamente.

O que, de fora, parece um terror, para eles é um alívio. Os cidadãos de Les Cayes agradecem pela oportunidade de ter água, mesmo suja. Há localidades, não tão distantes do estádio, que a população não consegue nem sequer isso.

Um menino que caminha ao lado da fossa desvia da reportagem e entrega os baldes para a mãe, que está em frente à bica d'água. Depois, volta para seu barraco, pega mais baldes e leva para a mãe novamente. Faz tudo bastante apressado, pois vê outros três meninos, de idade semelhante, brincando no centro do gramado. É preciso cumprir as tarefas de casa antes de se divertir.

Cadem Matanin, de 42 anos, vive há mais de duas semanas com a família num barraco improvisado dentro do estádio de Les Cayes (RecordTV)

Cadem Matanin, de 42 anos, vive há mais de duas semanas com a família num barraco improvisado dentro do estádio de Les Cayes

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Cadem Matanin, comerciante de 42 anos, dorme na terra, enquanto seu netinho é colocado num colchonete sujo. É o máximo de conforto que ela pode proporcionar para ele. Ao lado de sua barraca, montou, com ajuda de familiares, um fogão improvisado. Sobre ela, há uma panela de ferro, que tem, dentro, feijão cozinhado. A comerciante diz que é isso o que ela e sua família comeram naquele dia: Feijão amassado. No dia seguinte, ela só saberá o que comer quando chegar alguma nova doação.

Mas a situação não deve permanecer por muito tempo. Deve piorar. Isso porque, em até três meses, o campeonato haitiano deve voltar, e o presidente da liga futebolística de Les Cayes quer liberar o campo para o esporte.

Mesmo com casa, medo faz dormir na rua
Mulher dorme em colchão colocado na rua em Les Cayes, com medo de réplica de terremoto acontecer durante a madrugada (RecordTV)

Mulher dorme em colchão colocado na rua em Les Cayes, com medo de réplica de terremoto acontecer durante a madrugada

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Nas ruas de terra nada sinalizadas e ao lado de suas casas, com as estruturas comprometidas pelo terremoto, os moradores de Les Cayes têm dormido sobre o asfalto após a tragédia natural. Conforme o horário vai avançando e a noite começa a se aproximar da madrugada, as esquinas da cidade passam a ter várias barricadas formadas com entulho. Os bloqueios são feitos pelos próprios moradores, para que diminuam os riscos de atropelamento da população.

Eles temem que novas réplicas aconteçam enquanto dormem, à noite ou durante a madrugada, podendo ceifar aquilo que ainda conseguem ter: Suas próprias vidas. E para as mulheres é ainda pior: Com as ruas escuras, casos de violência sexual têm sido citados com frequência pela população. As que são casadas, quando o sol se põe, se preparam para dormir em cadeiras, tendas ou sobre lençóis postos no chão com os filhos. Enquanto isso, os homens se revezam, dormindo sentados, para fazer a segurança da família.

A lei do mais forte
Crianças e mulheres disputam um pirulito em Jérémie, no Sudoeste do Haiti (RecordTV)

Crianças e mulheres disputam um pirulito em Jérémie, no Sudoeste do Haiti

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Os filhos de mais de 100 desabrigados de Jérémie agora disputam, na lei do mais forte contra o mais fraco, toda doação que chega ao abrigo provisório onde sobrevivem. A comunidade, que ocupou um terreno descampado no distrito, é sobrevivente de uma região montanhosa. Ali, o tremor de terra de agosto desprendeu rochas da montanha, que rolaram abaixo e mataram centenas de pessoas.

Diferentemente de outros abrigos provisórios espalhados por outras cidades do Sudoeste do Haiti também atingidas pelo terremoto, as crianças de Jérémie, uma área rural mais afastada, não brincam. Suas expressões, a todo momento, são de tensão e de atenção. Afinal, é preciso estar esperto caso chegue alguma ajuda humanitária naquela área tão isolada.

Um menino, de 11 anos, até tentou arrumar uma maneira de se divertir em meio à situação de precariedade. Ele cortou uma borracha que é usada em acostamentos de ruas no Haiti e montou uma máscara. Por dois segundos, enquanto ele a mantinha sobre o rosto, o jovem imitava um super-héroi. Logo depois, quando o garoto tirou a máscara, olhou para ela e seu sorriso, aos poucos, foi desaparecendo.

Já três meninas, uma de 8 e duas de 10 anos, caminhavam sempre juntas. Perguntadas sobre o que elas faziam no dia a dia, uma dela disse que ajudava sua mãe a cuidar de uma irmã mais nova. Indagada se, além de ajudar, ela também gostava de brincar com as colegas, ela não soube responder. Disse, apenas, que gostava de estar com as meninas de idade próximas.

Quando surge uma sacola na mão de um desconhecido, as famílias arregalam os olhos e se aproximam, de pouco em pouco, na torcida para que seja um alimento. Qualquer tipo de alimento. Naquela tarde, eram alguns pacotes de biscoito, outro pacote de balas e um terceiro pacote com pirulitos. Quando perceberam que era algo comestível, todos pediram, desesperados, que entregassem em suas mãos.

Os doces, destinados às crianças, eram disputados, a tapas, empurros e gritos. Os biscoitos também, mas pelas mulheres do abrigo. Em menos de um minuto, os alimentos foram pegos pelos sobreviventes do terremoto. A maioria deles, porém, ficou sem.

Disputa por água

Menino espera sentado sua vez de pegar água em Jérémie (RecordTV)

Menino espera sentado sua vez de pegar água em Jérémie

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Na área rural de Nippes, no epicentro do terremoto de 14 de agosto, poços artesianos rasos são a principal fonte de água. Mas muito deles, oxidados, têm apenas água salgada, que não servem para nada além de cozinhar alimentos salgados -nem para lavar nada eles servem, porque o reagente suja o que toca.

Mesmo assim, a fila para pegar um pouco dessa água, em baldes brancos e amarelos -também sujos- é grande, formada por mulheres e por crianças. Sob forte sol, elas empurram o aparelho de ferro para baixo, de um lado, enquanto a água sai pelo outro. As únicas que têm coragem de beber essa água são as galinhas criadas por algumas das famílias locais. Ao todo, menos de 60% dos haitianos conseguer acessar água potável.

Na saída do distrito de Les Cayes, no sentido ao distrito de Jérémie, que também foi atingido pelo terremoto, a nova rodovia, que nem chegou a ser inaugurada, está inteira rachada. Pelo caminho, dos dois lados, a cena da destruição se faz presente. Casas, escolas, igrejas e até uma agência funerária estão sob escombros.

Em determinado trecho, chama a atenção o desespero de algumas pessoas em torno de um poço. A quem chega, um morador afirma: "A água está acabando!". E estava mesmo. Ali, uma solução paliativa foi implantada pela Unicef: Um bolsão de água foi colocado em um terreno, um pouco acima do poço, com capacidade para 10.000 litros de água. Por meio de um caminhão-pipa, o bolsão é enchido, mas sem periodicidade.

Menino e menina aguardam sua vez para pegar água em fonte de Jérémie (RecordTV)

Menino e menina aguardam sua vez para pegar água em fonte de Jérémie

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A partir do bolsão, a água é chega ao poço através de uma mangueira. De lá, mais mulheres e crianças se dividem para guardar água. Enquanto isso, homens, juntos, observam o desespero sem se mexer. A cerca de 10 quilômetros dali, uma comunidade com mais de 100 famílias de agricultores vive, desde o terremoto de agosto, com águas obtidas de maneira exclusiva por meio de doações.

Com mortos no rio que a comunidade costumava usar para sobreviver, a população ficou refém da bondade humana. Os moradores locais reclamam que muitas doações chegam ao Haiti, mas que o governo tem retido o que para em Porto Príncipe. No sudoeste do país, atingido pelo tremor de terra, são poucos os itens que têm chegado.

Na região sudoeste, há muitos rios secos e sujos. A vizinha de um desses rios, chamado L'asile, conta que, há anos, ele está morto. Quando chove, há um terremoto ou pequenos tremores de terra, que são constantes no país, o que costuma passar pelo rio são apenas entulhos. A única vida local é formada por cabritos que se alimentam de restos comestíveis encontrados em meio ao lixo.
Já em uma comunidade de Jérémie, moradores locais encontraram um manancial por conta própria, no topo de uma montanha. Eles desviaram a água por meio de fossos e de canos para sua comunidade. Sem ajuda do governo, foi a maneira que encontraram para ter o mínimo: Água para viver.

Um país sem acesso à educação
Menino se senta em cadeira de escola que desabou em Corail com o tremor de terra (RecordTV)

Menino se senta em cadeira de escola que desabou em Corail com o tremor de terra

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No Haiti, 90% das escolas são privadas. Em um país cujo luxo é ter o que comer e o que beber, estudar é, por vezes, fora de cogitação. Se tiver que pagar por isso, ainda, dificulta ainda mais. Ao longo do Sudoeste do Haiti, atingido pelo terremoto, é possível notar algumas escolas, infatis e primárias, abaixo, entulhadas. Em Jérémie, uma delas, só é possível identificar que ali é/foi uma escola porque, em frente, foi colocada uma placa, presa a um cabo de madeira.

Em Corail, a escola que ficava nos fundos de uma igreja datada há mais de 200 anos, pouco depois da revolução bem sucedida feita pelos escravizados haitianos, teve uma parte desmoronada. Por sorte, não feriu ninguém. Agora, os entulhos dela, formados por madeira e ferro, são reutilizados para reforçar um hospital doado pela Argentina, próximo dali. Bombeiros brasileiros fizeram o trabalho de cortar as madeiras de maneira com que elas ficassem seguras na reutilização.

O idioma crioule e suas complexidades
Menino se senta em cadeira de escola que desabou em Corail com o tremor de terra (RecordTV)

Menino se senta em cadeira de escola que desabou em Corail com o tremor de terra

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Governo e população haitiana, definitivamente, não falam a mesma língua. Enquanto todos os comunicados governamentais são feitos no francês, 90% da população não entende, pois costuma falar apenas o crioule haitiano -que também se tornou língua oficial, mas em menos de 30 anos. Em frente ao palácio presidencial, por exemplo, militares que exigiram a saída da reportagem da região deram as ordens em crioule. Respondidos em francês, não argumentaram.

A gramática do crioulo haitiano é, apesar de ser uma variação do francês, bem mais simples do que o idioma europeu. Os verbos não variam por tempo e pessoa. Não há gênero gramatical. Assim, nem artigos, nem adjetivos variam com o substantivo. A ordem das palavras é a mesma do francês, mas as orações são bem mais simples. Dentro do próprio país, aqueles que conseguem aprender o francês constumam fazê-lo apenas na adolescência, muitas vezes de maneira autodidata.

O que esperar do futuro?

Crianças pegam água para consumo em meio aos escombros de uma igreja desabada em Corail (RecordTV)

Crianças pegam água para consumo em meio aos escombros de uma igreja desabada em Corail

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Sendo um dos países mais pobres do mundo, o Haiti caiu no ranking mundial de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), entre 2010 e 2019. Passou da 165ª posição para a 170ª. Os haitianos dizem que a queda tem ligação direta com o terremoto de 2010, porque, desde então, a indústria e tudo aquilo que fomentava a economia local passaram a ficar receosos com os desastres naturais que assolam a ilha.

Isso é corroborado por estrangeiros que estiveram no Haiti em 2010 e que voltaram para a ilha agora. Armin Braun, diretor do Centro Nacional de Desastres no Brasil e chefe da missão humanitária brasileira no Haiti, afirma que, de lá para cá, acredita que ou as coisas ficaram estagnadas ou pioraram. "O terremoto em 2010 foi muito devastador e, depois desse, eles tiveram furacões e ciclones que trouxeram mais problemas. Então, temos hoje um país mais pobre do que em 2010", analisa.

Esperança é um sentimento difícil de criar raízes no Haiti. Ela parece se desprender do solo a cada terremoto e voar toda vez que passa um ciclone. Mas cresce discretamente nas crianças haitianas, que, alheios à tragédia humana, brincam como antigamente se brincava no Brasil, com poucos recursos, mas com alegria.

Meninos tiram cerâmica de igreja desabada para reaproveitar material em nova construção de casa em Corail (RecordTV)

Meninos tiram cerâmica de igreja desabada para reaproveitar material em nova construção de casa em Corail

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Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo da Record TV

Reportagem: Luís Adorno, Catarina Hong e Hugo Costa

Colaboração: Márcio Neves
Fotografias: Luís Adorno

Coordenação: Thiago Samora

Chefe de Redação: André Caramante