No meu primeiro dia no bairro, o motorista me deixou no posto da esquina da rua do Glicério, centro de São Paulo. Segui a pé sozinha. Avisei que poderia levar meia hora ou o dia todo. Era imprevisível. Também era impossível prever o tamanho do desafio de produzir esta reportagem.
De 2013 a 2016, quase 30 mil haitianos chegaram ao bairro do Cambuci, na capital paulista. Com o tempo, foram se instalando, formando famílias e abrindo seus negócios. Transformaram a região, conhecida por baixada do Glicério, num pedaço do Haiti, país localizado no mar do Caribe e considerado o mais pobre das Américas.
Atualmente, ali só se fala o creoule, as mulheres usam perucas, e o prato mais apreciado é o peixe com banana da terra. O documentário O Haiti é no Cambuci, uma produção original e exclusiva do PlayPlus, é um convite para conhecer de perto a realidade desses imigrantes que vivem na capital paulista.
Assista no PlayPlus ao documentário completo "O Haiti é no Cambuci"
Conseguir fazer esse registro não foi simples, por se tratar de uma comunidade numerosa, mas extremamente fechada. Praticamente impenetrável. Minha primeira parada foi na mecânica vizinha ao posto. Feliciano estava debruçado num carro. Quando me viu, desligou o motor. Achei um bom sinal. Falou em português, fiquei animada. Quando eu disse que queria gravar sua rotina para um documentário, ele disse sim. Eu estava no céu. Não imaginei que seria tão fácil. E, na verdade, não seria. Feliciano era uma exceção e, apesar de ter aceitado, desistiu da ideia de participar do documentário no meio das gravações.
Haiti Cambuci
Foto: Edu Garcia/R7Elienne mora no Cambuci com o marido. A filha de seis anos tinha ficado em Porto Príncipe, capital do país caribenho. Ela não falava praticamente nada de português. Eu a convidei para tomar um suco e ela sugeriu um restaurante. Não entendi a escolha do lugar. Não havia nenhum haitiano ali, apesar de estarmos no quarteirão dominado por eles. Com a ajuda de um tradutor no celular, ela explicou que ali era um lugar de brasileiros e que os haitianos não entravam lá sozinhos. Ela sempre quis conhecer aquele local, mas não tinha nenhuma amiga brasileira. Estava feliz em ter a primeira, depois de três anos morando no Brasil, mas não quis ser minha entrevistada.
Aquele restaurante brasileiro era mesmo uma ilha no meio do território haitiano. No restante do bairro do Cambuci, eles estavam por todos os cantos. Mas não me davam nenhuma abertura. Sem a amizade de um haitiano, eu também não era convidada a entrar.
Mapa Cambuci
Arte R7Resolvi chamar um tradutor. Convidei Edwigt Espera, um haitiano que conheci em Porto Príncipe, na cobertura do terremoto, em 2010. Ele morava no Brasil havia muitos anos. Antes de começarmos, perguntou se eu tinha certeza que queria gravar dentro da casa de algum haitiano. E me desejou boa sorte.
Fomos até a moça que vendia frutas. Sempre que eu passava, ela me cumprimentava sorrindo, tentei falar com ela algumas vezes, mas não nos entendíamos. Nesse dia, ela estava acompanhada de outra haitiana. A mulher escovava seu cabelo e cochichava no seu ouvido. O Espera ouviu a mulher dizer que a gente queria se aproveitar da situação dela, para ela não confiar. Nunca mais a moça me cumprimentou, nem sorriu para mim.
Haiti Cambuci
Foto: Edu Garcia/R7Mesmo acompanhada de um haitiano, encontrei muita resistência. Durante a gravação do documentário, o presidente Jovenel Moïse foi assassinado dentro da residência oficial na capital do país no ano passado. O Cambuci ficou agitado. A política sempre foi um ponto crítico no Haiti. Esse foi o quinto presidente eleito morto durante o mandato.
O país viveu longas ditaduras, intervenções militares e estrangeiras, muita rivalidade e crimes políticos. O clima ficou ainda mais desfavorável e hostil entre os entrevistados. Muitos haitianos vieram ao Brasil fugidos de perseguições e ameaças, não se sentiam seguros nem mesmo para conversar.
Eram muitos motivos para essa população ser tão ressabiada. Afinal, milhares de pessoas saíram da ilha, percorreram uma longa jornada para chegar aqui e se estabelecer ali no Cambuci. Vieram por rotas clandestinas, que custaram muito dinheiro e muito tempo. Foram submetidos às situações extremas. Recomeçar num território desconhecido, com uma língua estranha, sem trabalho, exigiu de cada um coragem e cuidado. A sensação de insegurança e incerteza me pareceu acompanhá-los sempre.
Continuei por semanas frequentando o bairro. Depois de um tempo, eu já não causava estranheza, eles não interrompiam mais as conversas quando eu chegava, nem iam embora ou fechavam a porta. Quase não notavam minha presença. Fui ganhando confiança. Recebi até pedido de casamento. Mais de um. "Você tem marido? Estou querendo uma mulher brasileira. Quer casar comigo?" Assim, sem nenhum romance. Só uma forma de conseguir a cidadania.
Conheci, enfim, haitianos dispostos a compartilhar suas trajetórias e abrir suas casas. Pessoas incríveis que representam a extenuante mudança de país e de vida que não se faz por escolha e a vitória de fincar bandeira e transformar um bairro de uma das principais capitais brasileiras num novo lar.
O Espera tinha viajado para o México antes das gravações terminarem. De lá, perguntou se eu tinha conseguido todas as entrevistas. Eu disse que tinha sido um sucesso. "Não falei para você, Mari. Os haitianos são meio difíceis no começo, mas são parceiros." Não me lembrava de ele ter dito isso. Teria sido reconfortante no começo. Agora, eu já sabia.
Ideia original: Gustavo Costa
Produção e roteiro: Mariane Salerno
Montagem e finalização: Leandro Pasqualin
Imagens: Gilson Fredy, Leonardo Medeiros, Juarez Rossi Ferraz De Oliveira e Daniel Arcanjo
Iluminação: Edson Lira, Jairo Acaraiba e Laurindo Vilete
Operadores de áudio: Marcelo Nascimento, Marcus Justiniano e Wagner da Silva
Auxiliares: Leandro Viveiros, Reinaldo de Almeida Kerekes e Waldenir Leonardo Pradela
Gerente de sonorização: Rafael Ramos
Sonoplastas: Renan Laranjeira e Leonardo Chaves
Gerente de arte: Omar Sabbag
Gerente musical: Marcelo Eduardo Dos Santos
Tradução: Montalais Pierre, Stanley Silvestre e Edwigt Espera
Chefe de redação: Pablo Toledo
Diretor de Conteúdo OTT: Josmar Bueno Junior
Diretora de Transmídia: Bia Cioffi
Diretores de Jornalismo: Aline Sordili, Clovis Rabelo, Marcelo Trindade, Rafael Perantunes, Rogério Gallo e Thiago Contreira
Vice-presidente de Jornalismo: Antonio Guerreiro
R7 Estúdio
Reportagem: Mariane Salerno
Edição: Pablo Marques
Arte: Bruna Gabriela Santana
Fotos: Edu Garcia