Duas décadas após ser eleita a ‘Melhor Cantora do Milênio’ pela BBC de Londres, Elza Soares está longe de sentir o peso de seus 82 anos de vida.
Em mais de 60 só de carreira, ela acumula uma discografia com 84 títulos, 17 pinos na coluna e uma coletânea de dores e alegrias da mulher preta, filha de uma lavadeira com um operário, criada na favela de Água Santa, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Tanto que a cantora é direta ao rejeitar qualquer questionamento que a coloque na posição de vítima da própria história (e da idade). “Eu continuo a mesma. A Elza viva. Com os mesmos sentidos e desejos. Seguindo a vida. A que você conheceu de salto 15 dançando e cantando no palco.”
Elza Soares se recusa a ser uma vítima da própria história
@callanga (Patricia Lino)Nos últimos 20 anos, ela conseguiu fazer da trajetória pessoal matéria-prima para ressignificar tragédias, atualizar o discurso, dialogar com novas gerações e, assim, se transformar em uma das principais vozes da juventude brasileira.
O R7 Estúdio mergulha no universo da cantora e, com a ajuda dela, de amigos e músicos, sai em busca do que a faz cada dia mais jovem (na disposição e no conteúdo).
Com uma obra tão vasta, vale ressaltar, é praticamente impossível sintetizar todos os elementos desse processo tão pessoal e humano. Entretanto, o título dado pela BBC, em 1999, é ponto de referência de um momento responsável por chamar a atenção de um Brasil que, por vezes, não soube reconhecer o tamanho de Elza.
“A princípio, eu senti vergonha. Tinham muitos talentos e eu sou uma cantora que não aparece muito na televisão. Mas, depois, eu pensei: ‘tinha que ser eu’”, lembra-se a intérprete.
“Elza Soares é uma cantora que foi, ao longo da vida, vítima de uma série de práticas do apagamento de mulheres negras nesse país. Dona de uma voz e um repertório inquestionáveis, ainda assim, muitas vezes foi colocada no ostracismo e à margem se comparada a grandes divas”, observa Raquel Virginia, cantora e compositora do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira.
Elza Soares e Os Originais do Samba no Festival da Record
Reginaldo Manente/EstadãoDura na Queda, em referência à canção oferecida a ela por Chico Buarque — e que abre o álbum Do Cóccix Até O Pescoço, de 2002 —, Elza, sem a pretensão de fazê-lo, dava ali um importante passo em direção às narrativas e às linguagens que passariam a apontar os novos rumos de sua vida e carreira.
“Eu sempre fui brigona. Mas botar a minha voz para que todos ouvissem, mesmo, foi depois desse disco”, completa. A Carne, composição de Seu Jorge e Marcelo Yuca, e um dos grandes marcos do disco, é a prova disso.
“Essa canção representa tudo. Representa muito a mim e a todos nós negros. É uma música forte”, diz Elza.
O público de Elza Soares, até 2014, era predominantemente composto por pessoas maiores de 55 anos. É o que indica Pedro Loureiro, empresário da cantora.
“A renovação do público foi estratégica. O público dela estava com a idade lá em cima. E é uma faixa que não consome tanto, que não vai tanto a shows, que compra menos no streaming. A intenção era derrubar essa faixa etária”, explica.
Elza Soares foi a primeira mulher a puxar samba-enredo na Avenida, em 1969
Agência O GloboHoje, de acordo com informações obtidas com a Deezer — uma das principais plataformas digitais de música no país —, 40,33% do público dela na ferramenta está concentrando entre pessoas de 26 a 35 anos.
Na sequência, vêm as faixas etárias de 36 a 45 anos, com 22,32% e 18 a 25 anos, que corresponde a 21,46% das pessoas que acompanharam a artista nos últimos 12 meses.
A ampliação e a renovação do público, no entanto, só foi possível após análise da obra dela. “À época, fui pesquisar para ver se ela comunicava com o público mais jovem. E a obra dela era total jovem. A Elza é muito contemporânea. E aí veio A Mulher do Fim do Mundo, que é totalmente contemporâneo, depois Deus é Mulher, Planeta Fome... Tudo com a Elza”, explica Loureiro.
A proximidade com as necessidades da juventude brasileira tem estimulado Elza a continuar produzindo novos discos, shows e, claro, discursos.
“Eu tenho uma linguagem que vai muito bem com os jovens. E eu gosto de trazê-los, de trazer comigo essa garotada, essa juventude abandonada. Eu acho que eu falo e eles absorvem bem. Chega bem nos ouvidos dessa juventude. Eles vêm muito para mim.”
Com um público renovado, cada vez mais amplo e diversificado, “ela tira essa ideia de presente, passado e futuro. Coloca tudo em um só. É importantíssimo você enxergar o presente como uma linhagem do futuro e de transformação atual”, descreve Russo Passapusso, vocalista e compositor do grupo BaianaSystem.
O corpo dela não é mais o mesmo. Isso é fato. No entanto, Elza Soares é mais que os efeitos naturais de 82 anos de vida. Se o salto 15 precisou ser deixado de lado, o movimento permanece ainda mais show após show.
“Força de vontade é tudo. Quando eu chego no palco, eu esqueço que tenho coluna operada. Isso me impossibilita muito de caminhar. Mas, ali no palco, naquela cadeira, eu faço miséria.”
Longe do salto 15, ela canta em uma cadeira e prova que força de vontade é tudo
@callanga (Patricia Lino)Elza da Conceição Soares tem feito mais do que “miséria”, tem alimentado com esperança, protagonismo e coragem uma geração inteira de jovens.
E deve continuar fazendo isso por um longo período de tempo, porque como ela mesma diz: “Eu ainda não envelheci. O dia em que envelhecer, eu falo.”
Os anos que antecederam o projeto A Mulher do Fim do Mundo, de 2015, embora tenham reunido importantes obras, como Elza Canta e Chora Lupi (2014), álbum em homenagem ao compositor Lupicínio Rodrigues — autor de Se Acaso Você Chegasse (1959), primeiro sucesso dela —, também representaram uma fase de problemas na condução da carreira de Elza Soares.
“Ela não vivia um bom momento. Isso há seis anos. Elza não tinha uma gestão que privilegiasse a história dela. Ela enfrentava problemas sérios de administração. Falta de pagamento, falta de gestão. Não tinha estratégia”, lembra Pedro Loureiro que, ao lado de Juliano Almeida, administra a carreira da estrela atualmente.
Problemas de gestão e administração foram desafios na carreira de Elza
@callanga (Patricia Lino)A cantora confirma o papel dos atuais empresários no processo de transformação dos rumos que, à época, se apresentavam a ela na música.
“Eu sempre tive maus empresários. No entanto, tive a felicidade de conhecer duas figuras maravilhosas, o Pedro e o Juliano. Esses dois caras consertaram a minha vida de uma maneira incrível. Consertaram a minha vida mesmo. Eu tive uma melhora muito grande de carreira com eles”, destaca Elza.
O álbum, aclamado pela crítica e vencedor do Grammy Latino, em 2016, corresponde ao início de um projeto ousado. Elza mergulha nas próprias marcas para dar voz a questões como violência contra as mulheres, racismo e a inevitável finitude da vida.
Maria da Vila Matilde, que estimula mulheres a denunciar casos de agressão, é apenas um exemplo da mudança de posição em relação ao conteúdo do que até então era cantado por ela.
“Foi um encontro de potências criativas poderosíssimas. De um lado, a Elza, com toda a sua força e, de outro, esse grupo de artistas inquietos e brilhantes da cena contemporânea paulistana. Foi uma pororoca. Um encontro de grandes ondas. Tive a ‘sorte’ e o privilégio de acreditar nessa ideia e ser o pivô desse encontro”, conta Guilherme Kastrup, produtor musical de A Mulher do Fim do Mundo e de Deus é Mulher (2018).
No show A Mulher do Fim do Mundo: incríveis parcerias para uma grande voz
@callanga (Patricia Lino)Aliás, o segundo álbum amplia as discussões sociais e políticas ao tratar de tudo aquilo que é calado pela corrupção e por parcerias com novos nomes da música brasileira.
“É uma honra suprema ser interpretada por Elza, mas isso nunca me passou pela cabeça. O acaso colaborou. A música veio no quarto de um hotel em Uberlândia, Minas Gerais, antes da minha passagem de som. Montei uma base com beats no celular e gravei a melodia em cima e mandei para o Kastrup por WhatsApp”, conta Tulipa Ruiz, compositora de Banho, canção que encerra o show.
O poder do discurso da cantora, que não se ocupa de posições pré-estabelecidas, está, no entanto, em dar voz às demandas contemporâneas, como ressalta Caio Prado, cantor e compositor de Não Recomendado, canção que integra outro disco de Elza, o recém-lançado Planeta Fome (2019).
“Ver Elza no auge dos seus 80 anos levantando questões que refletem seu tempo é a prova da vocação também política do artista. É inspirador e empoderador ter Elza mostrando sua liderança a provar que muitas outras mulheres, mulheres pretas, também podem ser líderes de seus tempos.”
Elza Soares alimenta uma geração de jovens com sonhos, esperança e protagonismo
@callanga (Patricia Lino)Edição: Thiago Calil e Tatiana Chiari
Apoio: Cleide Oliveira
Arte: Sabrina Cessarovice
Fotos: Callanga (Agência Amarelo Urca)
Produção audiovisual: Bruno de Moura Lima,
Bruno Roberto Leite Ferreira, Julia De Caroli Vizioli
Edição de vídeo: Edimar Sabatine, Caíque Ramiro e Danilo Barboza
Videografismo: Eriq Gabriel Di Stefani
Sonoplastia: Luciano Gonçalves de Souza