[Alerta de gatilho: este texto contém informações sensíveis sobre abuso e violência sexual online. Caso você se identifique ou conheça alguém que esteja passando por esse problema, denuncie: disque 100]
Em abril deste ano, a Meta, empresa responsável pelo Facebook, Instagram e WhatsApp, reduziu a idade mínima necessária para criar uma conta pessoal nas redes sociais na Europa. Adolescentes de 13 anos podem ter seus próprios perfis — antes, só eram permitidos usuários a partir dos 16. A decisão foi alvo de críticas de grupos de proteção à infância em todo o mundo, que defendem a idade mínima de 16 anos para acessar as redes.
A preocupação não é em vão. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, com base em dados da SaferNet, organização de combate a crimes contra os direitos humanos, ocorrem, em média, 366 denúncias de crimes cibernéticos por dia no Brasil — as maiores vítimas são crianças e adolescentes.
A própria SaferNet indicou que houve 71.867 denúncias únicas de imagens de crianças expostas na internet em situação de nudez e de práticas de atos sexuais em 2023. “O ambiente digital, infelizmente, está muito propício para a violência sexual, para os abusadores ocuparem esse espaço”, afirma a pedagoga Cristina Cordeiro, diretora-adjunta do Instituto Liberta, um projeto que procura conscientizar e desnaturalizar a violência sexual contra crianças e adolescentes.
De janeiro a abril do ano passado, houve um crescimento de 69,7% no número de denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil online — 23.777 casos em 2023, contra 14.005 no ano imediatamente anterior. Veja abaixo a evolução das denúncias deste tipo de crime, nos primeiros quatro meses, entre 2019 e 2023.
O R7 ouviu duas vítimas de abuso sexual online. A pedido de ambas, a identidade não será revelada na reportagem, apenas as idades. Os nomes usados são fictícios.
A internet abre portas para os abusadores conseguirem se esconder atrás das telas e manipular vítimas — estratégia que nem sempre funciona nas interações pessoais. No caso de Maísa, hoje com 21 anos, o agressor entrou em contato via Facebook. Ele se apresentava como Gabriel, um suposto adolescente de 14 anos, enquanto a vítima tinha 11 na época.
“Foi em 2013, eu morava no Rio de Janeiro. Conversava muito pelo Facebook com várias pessoas e procurava gente da minha idade. Na escola, eu já era acostumada a conversar com pessoas mais velhas, uns três anos acima de mim, no máximo”, conta a jovem, que disse ter sido uma criança muito comunicativa.
A vítima diz que o garoto fictício começou a segui-la na rede social, quando o crime começou. “O nome era Gabriel, só isso que lembro. Ele falava que tinha 14 anos. Eu falei: ‘Ah, beleza’. Para mim, não tinha tanta diferença. A gente começou a conversar. No total, foi um mês e meio de papo. Nas duas primeiras semanas, era uma conversa normal, só para se conhecer mesmo.”
Porém, após alguns dias de trocas de mensagens, "Gabriel" começou a chamar Maísa para encontros em shoppings da cidade. A menina não tinha coragem de enfrentar a avó — que era bem rígida e não a deixava sair sozinha — para conhecer o suposto “amigo”.
A jovem também relata o abusador deu sinais, mas, por ser uma pré-adolescente na época, eram difíceis de ser interpretados e passavam despercebidos. “Uma coisa que eu achava muito esquisita, que na minha cabeça de criança era muito estranho, era que ele trocava o dia pela noite. De dia, ele não falava comigo, apenas à noite”, revela. Ela diz acreditar que o motivo é que, por ser um homem adulto, estava ocupado com o trabalho.
Com o passar do tempo, "Gabriel" ficou cada vez mais insistente. Tentou pedir o endereço de Maísa diversas vezes, e, ao receber seguidas negativas, começou a ameaçá-la. “Ele dizia: ‘Você sabe que eu posso te rastrear, né? Eu sou muito bom no computador.’ Na minha cabeça, era muito real. Eu não o conhecia, o cara era mais velho e comecei a ficar paranoica, com medo de ele saber onde eu estava. Mas nunca mandei nada”, revela.
A vítima afirma que os pedidos não pararam mais. “Ele passou a ficar mais estranho depois disso, pedindo fotos minhas. Eu mandava um retrato sorrindo, na escola. Mas ele pedia aquele tipo de foto. Eu, obviamente, nunca mandei. Porque eu era criança, nem sabia fazer esse tipo de coisa”, descreve.
Os tópicos das conversas também mudaram e, cada vez mais, “Gabriel” trazia assuntos que envolviam temas sexuais. Ele mandava imagens com o mesmo teor para a pré-adolescente.
As solicitações do abusador deixaram Maísa nervosa e estressada. A avó percebeu a mudança comportamental da neta, pegou o celular da jovem buscar pistas sobre a mudança de humor e encontrou as conversas dela com o abusador.
“Ela me confrontou falando: ‘O que é isso? O que é esse cara conversando com você?’. A minha avó, de 75 anos, já entendia que aquilo era uma coisa muito madura para uma [suposta] criança de 14 anos falar comigo. Ela me perguntou: ‘Você mandou alguma foto para ele?’. Eu respondi: ‘Não, vó, só minha mesmo, de rosto, na escola… Ele mandava dele também e eu mandei minha, para não ficar chato'”, relembra Maísa.
Depois da bronca, a avó levou a vítima à delegacia. No local, o telefone da pré-adolescente foi rastreado pelos agentes da polícia, e o abusador foi encontrado. A investigação mostrou que o suposto menino de 14 anos tinha 42 e usava as fotos de seu filho nas redes sociais para conversar com meninas menores de idade.
O suspeito já tinha passagem pela polícia e, com a denúncia de Maísa, foi localizado e preso. “Agora, ele já deve ter sido solto. Faz muito tempo. Depois disso, eu saí do Facebook e nunca mais falei com ninguém lá”, finaliza.
Crime semelhante vitimou Amanda, hoje com 20 anos. Na época, de 13 para 14 anos, um pouco mais velha que Maísa, conheceu seu abusador em um aplicativo para fazer amizade.
“Eu nunca fui uma pessoa muito sociável, sempre gostei muito da internet. Aí, apareceu para mim um aplicativo para fazer amizades. Você podia fazer amigos globalmente. Eu adorei isso, porque eu sempre quis fazer intercâmbio. Falei: ‘Vou treinar meu inglês e vou fazer amigos’”, conta a jovem.
A vítima relata que a plataforma só permitia usuários com 16 anos ou mais. Não teve dúvidas: driblou a regra e mentiu a idade. “Eu criei minha conta, entrei nesse aplicativo e começaram a chegar as notificações de pessoas que queriam fazer amizade comigo. Aí, chegou ele, tinha 25 anos. Mas, sinceramente, acho que mentiu”, lembra.
Amanda afirma que, inicialmente, “não achou nada de mais”. O homem era dos Estados Unidos e mandava mensagens sobre o dia a dia. “Ele era muito legal. Extremamente educado. Era a pessoa que falava: ‘Bom dia’, ‘O que você fez?’, ‘Como que você está?’, ‘O que você comeu?’. Era uma atenção muito diferente para mim”, recorda.
A jovem relata os detalhes: “Com o tempo, a gente acabou saindo desse aplicativo e foi para outro. Acabei contando a verdade para ele, que tinha 13 anos e não 16. Ele aceitou super de boa. Disse que não tinha o menor problema em relação a isso, que a idade era só um número”.
No começo, lembra a mulher, o suspeito pedia fotos do que ela havia comido, da lua. Os pedidos evoluíram aos poucos: imagens do rosto, maquiagem, da roupa, de partes descobertas do corpo. “Ele pedia fotos minhas só de sutiã, queria saber qual era a cor da minha calcinha. E eu estava num ponto de que faria qualquer coisa para continuar com a atenção dele. Qualquer coisa”, frisa.
“E foi o que aconteceu. Chegou o ponto dele começar a pedir fotos realmente mais íntimas. E depois que as mandei, ele parou de falar comigo. Simplesmente, parou. Do dia para noite, literalmente”.
O abusador nunca mais tentou contato ou respondeu mensagens. Foi nesse momento em que a jovem, uma adolescente na época, percebeu algo errado. “Eu olhei e falei: ‘Meu Deus, o que eu fiz?’. E não foi nem no sentido de: ‘O que ele pode fazer com as fotos?’. Foi no sentido de: ‘E se ele espalhar? E se do nada eu acordo e tem foto minha na internet?’”
A vítima nunca contou a história para ninguém, nem mesmo amigos. “Para mim, era uma vergonha. Fui manipulada, chegando ao ponto de fazer isso. Tinha vergonha de falar sobre”, assume Amanda, que não faz acompanhamento psicológico hoje, e não teve na época. Ela nunca mais teve notícia do criminoso.
Eduardo Perin, psiquiatra e especialista em sexualidade pelo Instituto Paulista de Sexualidade (InPaSex), alerta que, normalmente, vítimas dessa violência podem ter diversos transtornos psicológicos. “[Elas] desenvolvem depressão, ansiedade, uso de substâncias, transtorno de estresse pós-traumático e, eventualmente, isso pode ser um fator de risco para o desenvolvimento de um transtorno de personalidade”, lista o médico.
Já a pedagoga Cristina Cordeiro explica que a questão da culpa e da vergonha, relatada por Amanda, é comum em vítimas de abuso. “Sempre é muito envolvido em segredo, em ameaça, em sedução. É um crime que destrói mesmo emocionalmente as vítimas. Então, a gente vem sempre incentivando que as pessoas revelem”, explica.
O abuso não é físico, mas ainda é marcante nas vítimas e pode deixar diversos traumas. Maísa cita que, mesmo com acompanhamento psicológico, ainda sentiu muita dificuldade de confiar em pessoas e de marcar encontros românticos com parceiros que vieram das redes sociais.
“Depois que cresci, tive alguns relacionamentos que se iniciaram pelas redes sociais. É difícil confiar que aquilo era verdade, o que a pessoa estava me contando. Eu marcava [os encontros] sempre em shoppings, que têm seguranças e câmeras. É mais uma questão da confiança. Não o medo de tentar se aproximar de alguém”, diz.
No caso de Amanda, como não teve ajuda psicológica, seu trauma nunca foi tratado. “Sou extremamente insegura hoje. Tenho pouquíssimos amigos, e amigos em quem eu toque. Tipo, que eu conheci na escola, faculdade”, confessa. “Raramente tenho contato com pessoas da internet. Porque ficou o medo de: ‘E se eu fizer de novo? E se eu for manipulada de novo?’”, acrescenta.
A pediatra da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) Elisabeth Fernandes destaca que o trauma é a pior parte dessa violência. “São consequências devastadoras. No começo, as vítimas têm muita culpa, medo, remorso. Depois evolui isso para uma depressão, distúrbios de ansiedade”, explica a médica, que já atendeu diversos casos de violência sexual.
“Também tem vários distúrbios sexuais, como uma redução do desejo, dificuldade de ter uma nova relação com outra pessoa e conseguir realizar o sexo. Evolui com muito caso de transtorno de pânico e muita tendência a suicídio”, revela.
Os pais e responsáveis das vítimas têm uma responsabilidade relevante em casos de abuso infantil online. O chefe de investigações da Delegacia de Combate à Pedofilia do 4º DHPP de São Paulo, Alexandre Scaramella, o principal problema é a falta de informação sobre o assunto, além da necessidade de ficar mais atento às ações dos jovens na internet.
Para ele, dentro desse monitoramento, os responsáveis devem observar se há alguma mudança de comportamento no filho, um indício muito forte de que ele está sofrendo abuso.
“É muito característico um pai falar: ‘Meu filho é de um jeito e de uns tempos para cá ele mudou a sua maneira de agir. Se tranca no quarto, leva celular ao banheiro, não corresponde ao convívio com os pais, está sempre com o telefone na mão, sempre como se estivesse sendo perseguido’. Quando os abusos começam, em muitos casos, eles viram uma extorsão”, explica.
“O adulto, quando entra na mente da criança, tenta se passar pela mesma faixa etária, mas, depois que consegue material, começa a chantagear: ‘Ou você me manda mais ou eu vou falar para a sua mãe, para o seu pai, vou postar na rede social’. Aí, com esse tipo de pressão, de extorsão que a criança ou o adolescente acaba sofrendo, gera a mudança de comportamento”, completa.
Além disso, segundo Scaramella, quando o crime de abuso é descoberto, a reação dos responsáveis, normalmente, não é a ideal. “A gente vê que os pais não têm a mínima noção do tamanho do problema. Quando eles se deparam [com o abuso], querem ser enérgicos, querem brigar com a criança ou com adolescente, mas esse não é o caminho. É a conversa, é o diálogo, e tentar entender”, aponta.
A pediatra da SBP ressalta que o mais importante é o acolhimento. “A gente tem que acolher, tirar o máximo dessa culpa. Tentar mostrar que tem uma condição de a vítima seguir a vida feliz, sem ser abusada, que ela não é obrigada a aguentar isso. Ela tem que se expor falando para as autoridades, para tentar controlar aquela situação”, adverte.
Conforme a OMS (Organização Mundial da Saúde), a pedofilia é classificada como um tipo de distúrbio mental, como a necrofilia e a zoofilia, desde 1960. Essa patologia consiste no desejo sexual por crianças e adolescentes, meninas ou meninos, do mesmo sexo ou de sexo diferente, geralmente antes ou no início da puberdade.
Infelizmente, muitas pessoas não conhecem essa informação e classificam o crime de abuso e violência sexual de menores de forma errada. “Se a gente fala em pedofilia, confunde”, afirma Cristina Cordeiro. “A pedofilia não está no Código Penal brasileiro, não é um crime no nosso país. Porque ela é cadastrada como uma patologia”.
O investigador Alexandre Scaramella afirma que, do ponto de vista policial, essa violência, quando praticada na internet, é classificada como abuso sexual de forma online. “[Na lei], está previsto o armazenamento, compartilhamento e a produção de conteúdos online, até o estupro de vulnerável”, esclarece.
Cordeiro ainda salienta a importância da classificação correta desse crime. “É importantíssimo não usar a palavra pedofilia. É melhor usar a palavra violência sexual, que é um crime que está no Código Penal Brasileiro”, crava.
Quando nota-se que a criança é vítima de abuso sexual online, há uma série de medidas que podem ser tomadas para denunciar o crime. A primeira é assegurar a segurança da vítima e garantir que ela não esteja mais exposta a qualquer mal que o abusador possa fazer. Em seguida, tentar documentar provas — fotografias, mensagens, vídeos — que revelem o teor das conversas do agressor.
A denúncia, em si, é feita pelo disque 100 ou na delegacia mais próxima, e é imprescindível ser feita — só dessa forma o jovem estará realmente protegido. Como visto anteriormente, os impactos psicológicos nas vítimas são intensos, portanto também é essencial que elas recebam apoio dos pais e responsáveis e sejam encaminhadas a um psicólogo.
Além disso, promover a conscientização dessa forma de violência — que costuma passar despercebida — e combater a desinformação é uma forma de aumentar a percepção daqueles que estão à volta dos jovens, criando uma rede de proteção.
É muito importante que os pais acolham as vítimas e não coloquem a responsabilidade nelas. “A culpa nunca é da criança”, salienta o psiquiatra Eduardo Perin.
A violência sexual online é silenciosa, sempre aconteceu e aparece cada vez mais por causa das redes sociais. Por isso, o diálogo é a melhor forma de prevenção. “As famílias e escolas têm que falar do assunto. A violência sexual e a violência sexual online só crescem porque existe um silêncio em volta desse assunto”, afirma Cristina Cordeiro.
“Cada um tem o seu papel no enfrentamento à violência sexual. Segurança pública e o Judiciário têm o seu papel, mas as famílias e escolas podem se unir na prevenção”, continua a pedagoga do Instituto Liberta. “Aí, não tem segredo: é falar sobre o direito à privacidade, por que nós temos partes íntimas e por que as pessoas têm essas partes íntimas preservadas, cobertas”, diz.
“Se não encontrar um jeito de falar sobre o assunto, existe muito material de apoio. Tem livros infantis para, de forma lúdica, contar uma história para os filhos para as famílias entenderem dessa violência e poder conversar com seus filhos”, finaliza Cristina.
*Sob supervisão de Thaís Sant’Anna, editora do R7
Reportagem: Lorena Lindenberg e Melissa Venturini
Edição: Thaís Sant’Anna e Raphael Hakime
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Aldo Silva
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza
Produção Audiovisual: Julia de Caroli
Edição e Finalização: Caique Ramiro