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Giovanna Orlando, do R7

Desde que a indústria do entretenimento se transformou numa máquina do tamanho do mundo, cada geração teve o seu grupo musical que despertou paixões sem fronteiras. Foi assim nos anos 1960 quando jovens choravam, gritavam, desmaiavam pelos britânicos Beatles. Ou nos anos 80, quando adolescentes não reprimiam sua adoração pelos porto-riquenhos do Menudo. Nos anos 90, os rapazes do New Kids on the Block abriram caminho para as boybands norte-americanas, seguidos alguns anos depois pelo Backstreet Boys.

Agora que o mundo dobrou de tamanho com a internet, quem arrasta multidões nas ruas e também nas redes sociais são os meninos e meninas do K-pop.

Cantando em coreano, uma língua que até alguns anos atrás nunca tinha sido popular, e falando sobre amor, críticas à sociedade e problemas da juventude, como saúde mental, auto-aceitação e empoderamento feminino, os grupos conseguem dialogar com a geração atual.

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Divulgação/ BigHit Entertainment

Mas um kpoper que se preza não apenas “ouve música”. Ele se torna um genuíno interessado em cultura coreana. Cinema, animações e novelas ganham espaços em serviços de streaming e conquistam milhares de fãs, além da culinária e da língua, que também se tornam objetos de estudo.

Feiras e exposições de cultura coreana ganharam espaço entre os kpopers brasileiros, como a Expo Hallyu, organizada pelo Centro Cultural Coreano no Brasil no primeiro fim de semana de julho, em São Paulo. O evento reunia fãs de k-pop, aficionados por produtos de beleza sul-coreanos e tinha uma exibição de figurinos usados em produções do audiovisual do país.

No palco principal, a programação misturava apresentações de música tradicional coreana, artes marciais, competição de grupos cover de k-pop e o show do grupo Newkidd. Por todo o espaço do evento era possível encontrar fãs dançando as músicas que tocavam no estande e tirando fotos com posters gigantes do BTS.

Nós estamos aqui

A barreira linguística e cultural não limita o sucesso e o alcance do gênero pelo resto do mundo. Nem mesmo a identificação com os fãs, que conseguem usar as letras como uma forma de conforto e ajuda pessoal.

"Toda geração precisa de um movimento que fale por ela, que a represente. E o k-pop tem sido isso nestes últimos anos", diz Érica Imenes, escritora e produtora do podcast Kpapo.

Com clipes super produzidos, visuais marcantes, grupos com no mínimo 5 membros e podendo chegar a 18, coreografias sincronizadas e criativas, melodias que grudam e refrão fácil de se aprender, o k-pop conseguiu se destacar na internet, chamando atenção do mundo inteiro para um mercado musical consideravelmente novo.

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Arte R7

A possibilidade de ver um desses artistas de perto, no entanto, ainda é um sonho limitado. Com poucos shows ao ano, os fãs precisam fazer esforços. Como São Paulo é a cidade que mais recebe apresentações, muitos fãs precisam viajar para o estado, guardam dinheiro e outros acampam meses antes do evento para garantir que vão ver o ídolo de pertinho.

Os fãs do grupo Monsta X — chamados monbebes (lê-se monbebês) — chegaram no começo de fevereiro para comprar os ingressos, voltaram para as barracas e lá ficaram até o dia 19 de julho, data da apresentação única da turnê We Are Here (Nós estamos aqui, em tradução livre) do grupo sul-coreano no Brasil. Cerca de 200 pessoas se dividiam em turnos para ocupar as 4 barracas que ficavam na calçada em frente ao Espaço das Américas, em São Paulo.

Com tudo escrito em uma planilha, os organizadores do acampamento separam os fãs em três turnos —  manhã, tarde e noite — e conferem a disponibilidade de cada um para ficar acampado. Segundo os fãs presentes, todos trabalham, estudam, conseguem voltar para casa para tomar banho e seguir a rotina.

O grupo de monbebes, que conta com 60 membros, já é acostumado com acampamentos. Eles montaram o mesmo esquema no ano passado para ver outros grupos de k-pop, como SF9, Day6 e The Rose.

O K-pop é para todos

Parte fundamental do gênero e uns dos atrativos, a dança desperta o fascínio dos fãs, que se dedicam a aprendê-las. Pelas redes sociais, é fácil encontrar pessoas interessadas em montar grupos para aprender as coreografias oficiais dos grupos e ensaiar nos tempos livres.

Com a dedicação e profissionalismo dos grupos e dançarinos, surgiram competições de dança. Campeões no palco do Expo Hallyu e do Kpop World Festival em julho, os nove membros do grupo paulista B2 se dedicam a aprender as coreografias do gênero e dos grupos preferidos desde 2013.

Com preferência por coreografias de grupos femininos, erroneamente consideradas coreografias mais simples e menos trabalhosas, o grupo opta por lançamentos e músicas que acabam gerando engajamento com os fãs nas redes sociais. De passatempo, a paixão por dança acabou virando trabalho.

“Muitas pessoas dizem que nós somos referência para outros grupos e que eles sonham em dançar com o B2, e isso nos deixa muito feliz”, diz o dançarino Iuri Hipólito Vieira.

"Estamos incentivando as pessoas a fazerem o que gostam, se divertir e, acima de tudo, praticar uma atividade física."

Iuri Hipólito Vieira

O gênero também se tornou parte do trabalho do professor de dança Lucas Olly, que foi selecionado para fazer parte do grupo de dançarinos que se apresentaram com o BTS, em maio.

Levando coreografias oficiais para a sala de aula, ele passa também a parte teórica das danças e as técnicas usadas. Fã de k-pop desde 2011, ele garante que, uma vez que o fã se interessa por dança, não tem volta, e que a música tem espaço para todo mundo.

Uma onda, um tsunami

A música sul-coreana é uma consequência direta da política do país dos anos 80 e 90. Depois da Guerra da Coreia (1950-1953), que dividiu a península em duas Coreias, o país precisou se reestruturar.

Nos anos 70, se tornou um dos países mais importantes da Ásia e virou um Tigre Asiático, com os investimentos focados na indústria e tecnologia. Mas, vivendo uma ditadura, os costumes eram conservadores e o governo controlava todos os meios de produção de notícias.

Até o final dos anos 80, as músicas exaltavam a identidade e soberania sul-coreana em forma de baladas. Depois de 1987, o rádio começou a se expandir e a televisão se tornou o principal meio de entretenimento do país.

Foi em 11 de abril de 1992 que um grupo chamado Seo Taiji and Boys mudou a música sul-coreana.

Taiji tinha participado de um grupo de heavy metal, chamado Sinawe, que tinha ajudado a moldar o rock nacional no final dos anos 80. Com o fim da banda, ele se uniu aos dançarinos Yang Hyunsuk e Lee Juno, criando um trio de hip hop para se apresentar num dos tradicionais programas de música da época.

No palco de uma das principais emissoras sul-coreanas, eles apresentaram a música “I Know” (Nan Arayo, em coreano), que recebeu do júri a nota mais baixa do dia.

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Arte R7

O fracasso virou, de forma surpreendente, uma onda de sucesso. Depois do lançamento, a música passou 17 semanas no topo das paradas sul-coreanas, um recorde que só foi perdido 15 anos depois, com a música Lies, do BIGBANG.

“O grupo fez com que os empresários e o governo entendessem que os jovens eram um mercado rentável”, explica a escritora e produtora do podcast Kpapo, Érica Imenes. “A música foi uma febre, ela era inspirada pelo hip-hop americano”.

Fugindo do nacionalismo e romance tímido que antes era cantado nas baladas, o trio criticava a pressão social para o sucesso, o sistema educacional e outras coisas com as quais os jovens se identificavam.

Paralelamente ao nascimento do k-pop, o governo sul-coreano viu potencial na indústria do entretenimento e começou a destinar fundos para seu desenvolvimento.

Com foco nos dramas e nas novelas do país, o entretenimento passou a ser exportado para outros países da Ásia, o que deu o nome de Onda Hallyu ou Onda Coreana.

“Os dramas fizeram muito sucesso na China e ajudaram a impulsionar o k-pop, porque os artistas cantavam as trilhas sonoras”, explica Érica. “Só depois que o gênero ganhou visibilidade e força, o governo começou a investir diretamente nele”.

Em 1993, o presidente Kim Yong Sam começou a investir na indústria do entretenimento através do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo, melhorando a infraestrutura e desenvolvendo tecnologias que possibilitaram o crescimento e exportação da música, filmes e dramas.

Com o K-pop, a Onda Hallyu virou um tsunami, que mobiliza milhões de pessoas e injeta bilhões na economia sul-coreana

Fábrica de idols

A força da onda do K-pop tem, por trás dela, uma rede industrial, formada por empresas dedicadas a entender o que os jovens gostam, o que eles querem consumir e produzir exatamente o que fará sucesso com este público.

As audições destas empresas reúnem centenas de candidatos, que se apresentam a jurados na esperança de serem selecionados. Andar pela rua e ser abordado por um olheiro é outro dos sonhos desses sul-coreanos.

Uma vez selecionado, o jovem se torna um trainee. Com um contrato na mão, ainda serão necessários anos treinando para se tornar um artista completo.

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Arte R7

“Eles autorizam a empresa a cuidar deles e moldá-los, para se tornarem o melhor possível. Os trainees aprendem a cantar, dançar, fazer rap, atuar, novas línguas, diferentes expressões faciais, modelar, qualquer coisa que seu potencial permitir”, explica o jornalista americano Jeff Benjamin, que cobre k-pop para a Billboard desde 2013.

Mas estar em uma empresa e preencher todos os requisitos não garante que o jovem vá se tornar um artista. Tudo depende da estratégia da empresa para lançar um novo grupo no mercado e de qual perfil de artistas eles precisam, explica Érica.

O porte da empresa também é um fator decisivo para o tipo de ajuda e treinamento que os trainees têm disponível.

Nas grandes empresas, os jovens são realocados para um dormitório, podem ter os estudos bancados, além de todo o treinamento. “Mas tem caso de trainees que precisam procurar trabalhos secundários, como trabalhar em cafés”, conta Érica.

O gênero da era tecnológica

Desde o começo dos anos 2000, a Coreia do Sul tenta exportar o k-pop pela Ásia. A solista BoA se tornou uma das artistas sul-coreanas de maior sucesso no Japão, um dos mercados musicais mais importantes e difíceis de entrar.

Mas a bolha asiática estourou com Psy e o Gangnam Style, o viral de 2012 que fez a onda k-pop atravessar oceanos.

“É uma cena musical perfeita para a era tecnológica, com as músicas divertidas e conceitos e visuais incríveis”, explica Benjamin.

As agências precisaram entender como a internet funcionava e o conteúdo que os fãs esperavam. Com isso, cenas dos bastidores dos artistas, transmissões ao vivo, programas de sobrevivência acabaram sendo disponibilizados em diferentes plataformas e as empresas começaram a lançar legendas em outras línguas, o que antes era trabalho dos fãs.

O fenômeno criou uma cena e identidade própria. Os kpopers tem uma maneira de se vestir própria, de se portar nas redes sociais e um vocabulário diferente. Mesmo do outro lado do mundo, algumas palavras em coreano e a forma de agir dos idols acabaram se tornando parte do dia-a-dia dos fãs que surfam, em feliz histeria, neste tsunami coreano.

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Arte R7

Reportagem: Giovanna Orlando
Edição: Cristina Charão e Tatiana Chiari
Fotos: Edu Garcia
Arte: Sabrina Cessarovice e Matheus Vigliar
Vídeos: Márcio Neves, Reinaldo Montalvão, Bruno Lima, Edimar Sabatine, Caíque Ramiro, Danilo Barboza, Marisa Kinoshita e Luciano Gonçalves de Souza