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Thaís Furlan

A vendedora de seguros Daniela dos Anjos, o entregador Emerson Gomes da Silva, o vendedor Fernando Lacerda, o comissário de bordo Alexandre da Silva, o metalúrgico Ronan Candido, o estudante Adriano Amarom, o promotor de vendas Rafael Cardoso, a diarista Jéssica Monteiro... E tantos outros.

Esses nomes não são apenas de trabalhadores brasileiros. É de gente inocente, que de uma hora para outra, se viu na cadeia por um crime que não cometeu.

São alguns dos casos que acompanhei recentemente. Tema de uma Série Especial do Jornal da Record.

De todas as injustiças que um inocente pode sofrer, certamente a privação da liberdade é a maior delas.

Quando uma pessoa que não cometeu um crime vai parar na prisão, a vida dela nunca mais é a mesma. E quando raramente a justiça repara o erro e manda soltar o preso, ele continua pagando a conta por algo que não cometeu. Paga com o preconceito que sofre, com a ficha suja, com a falta de emprego e de oportunidades. Paga com os olhares de quem ainda duvida da inocência dele.

A prisão injusta tira tudo de um cidadão: leva seus direitos, sua voz e sua dignidade (Reprodução)

A prisão injusta tira tudo de um cidadão: leva seus direitos, sua voz e sua dignidade

Reprodução

Uma dor sem tamanho para quem é preso e para quem fica do lado de fora da cela lutando para que a justiça seja feita.

Durante toda a minha carreira acompanhei bem de perto a dor e a luta de mães, pais, filhos, avós, amigos e até de chefes de inocentes detidos.

Em cada caso que ainda chega para mim, o exercício é sempre o mesmo: analisar os relatos, buscar provas e evidências. 

No Brasil não existe um número exato de pessoas presas que são inocentes (Reprodução)

No Brasil não existe um número exato de pessoas presas que são inocentes

Reprodução

Mas acima de tudo, tentar me colocar por alguns instantes no lugar de quem foi detido injustamente.

Eu imagino a dor de quem, de uma hora para outra foi parar num ambiente hostil, sujo, superlotado e perigoso simplesmente porque alguém não fez seu trabalho corretamente.

Você consegue se imaginar numa cela, por um segundo, sem ter cometido um crime? Consegue imaginar como ficaria seu filho numa situação dessa? Sua mãe?

A prisão de inocentes é a grande causa da minha vida profissional. É inadmissível pensar que cidadãos de bem vão parar na cadeia todos os dias, por um erro do Estado. Isso acontece em todos os cantos do país.

E quando o Estado erra, tudo começa, invariavelmente, com erros básicos: policiais civis e militares que prendem sem pensar. Não questionam o óbvio. Não procuram provas.

Na sequência, promotores que não se atentam que a investigação foi falha e reforçam o erro. E a justiça condena. Sem provas.

Se o " suspeito" for pobre, negro e morador de uma comunidade, a condenação então é quase sempre certa. Um sistema viciado no racismo.

E o terceiro país do mundo em números de presos, não contabiliza a quantidade de inocentes atrás das grades.

Tem gente simples e trabalhadora que é presa apenas por ter o nome parecido com um suspeito que está sendo procurado.

Tem também a vítima que se confunde e aponta a pessoa errada. A polícia satisfeita não investiga e prende.

Depois de anos e anos relatando essa historias dramáticas, eu certamente posso afirmar: há mais inocentes presos no Brasil do que você pode imaginar.

E eu acredito que de uma hora para outra, qualquer cidadão que não cometeu crime algum pode acabar preso. Principalmente se ele for pobre.

São casos absurdos. Relatos criminosos de quem um dia perdeu a liberdade sem ter feito nada. Acompanhe com a gente algumas dessas histórias.

Prisão na véspera do casamento

Uma busca simples na internet faz a estudante, Daniela dos Anjos de 21 anos, reviver um pesadelo.

Uma injustiça que, de uma hora para outra, transformou a vida dela.
Ela foi presa faltando um mês para o casamento.

Eu passei muita vergonha. Uma menina prestes a casar, passar por esse constrangimento. Eu tenho medo de tudo acontecer de novo

Daniela dos Anjos

A estudante estava no terceiro ano do ensino médio, nunca tinha pisado numa delegacia, assistia as aulas de manhã e trabalhava como vendedora à tarde.

Ela nem imaginava que era investigada por um assalto a joalheria na cidade de Poá, na Grande São Paulo, um crime ocorrido quatro meses antes.

Tudo aconteceu em novembro de 2018.  Veja abaixo nessas imagens do circuito interno do crime que Daniela foi acusada.

As imagens mostram um homem e duas mulheres. Eles se passaram por clientes e, armados, rendem as funcionárias de uma loja. Uma das suspeitas, de rosa, recolhe os anéis de ouro e depois os relógios. 

Em depoimento, a vendedora da loja disse que na manhã do roubo, uma mulher, que mais tarde se revelaria uma das assaltantes, foi até a joalheria se informar sobre o preço das joias. Mas nesse horário, a Daniela estava na escola, como comprova o livro de presença.

Já mais tarde, na hora do assalto, a Daniela também não podia estar na loja. Um documento de um banco prova que ela fez um saque usando a biometria, a impressão digital. O banco fica a 65 quilômetros da cidade de Poá.

"Muita revolta e indignação. Uma pessoa que não fez nada, não tem provas de que fui eu"

Daniela dos Anjos

O Reconhecimento feito pela internet, no primeiro momento, não foi suficiente para a polícia.

O delegado do caso não aceitou essa suposta evidência quando a vendedora da loja procurou a delegacia.

Mas não satisfeita, a lojista foi até o Ministério Público, de Poá. A promotora pediu que a polícia apurasse a denúncia.

Mas segundo a Daniela, a investigação foi feita de maneira errada.

Apenas as funcionárias da joalheria foram convocadas a depor e todas disseram, que uma colega de trabalho havia localizado uma foto de Daniela nas redes sociais e depois mostrado a elas, todas a reconheceram como integrante do grupo que assaltou a loja.

Daniela nunca foi intimada para depor na polícia. Ela acabou presa com base numa investigação feita por uma vítima.

Os policiais quando me abordaram, eles me disseram: “ Você lembra do roubo que você fez? Foi na hora que eles se identificaram e deram voz de prisão.

Eu respondi: " Não sou eu, vocês estão me confundindo."

Conversamos com um advogado criminalista, Adriano Salles e ele conta que tem notícia de pessoas que não praticaram crimes. Mas são pessoas parecidas e são condenadas assim.

A defesa de Daniela contratou um perito. Ele provou que, como mostrava o vídeo, a altura e a estrutura física da verdadeira assaltante eram diferentes das medidas da Daniela. Os familiares organizaram manifestações para chamar a atenção sobre a injustiça de uma mulher presa com base em fotos de uma rede social. Mas nada adiantou.

Ela ficou presa quase um mês na cadeia.

Daniela está solta há dois anos e meio. Um juiz entendeu que a investigação deveria ter levado mais tempo e que ela precisava ser ouvida. O advogado de defesa, Vilson Góes disse que ela foi acusada e quem está conseguindo as provas é a defesa dela. " Nós pretendemos processar as vendedoras por falsos testemunhos. Elas praticamente acabaram com a vida da Daniela."

Nossa equipe tentou falar com a funcionária que teria reconhecido Daniela como uma assaltante. Mas não conseguimos contato com ela.

Daniela ainda responde o processo por roubo qualificado e pode voltar para a cadeia. Hoje em dia, mesmo em liberdade provisória, vive com medo.

Se eu quiser viajar não posso, se eu quiser ficar até mais tarde na rua não posso, sempre tenho que informar tudo para Justiça

Daniela dos Anjos

Daniela responde processo por roubo qualificado e pode voltar para a cadeia (Reprodução)

Daniela responde processo por roubo qualificado e pode voltar para a cadeia

Reprodução
https://img.r7.com/images/r7-estudio-inocentes-10112022193051924

Arte R7
Brasileiro ficou quase seis anos preso por um crime que não cometeu, na Inglaterra

O comissário de bordo, Alexandre da Silva saiu do Brasil, em 1989, quando tinha vinte e seis anos.

Ele foi para Inglaterra com a missão de mudar o próprio destino.

Mas a história de realizações pessoais foi radicalmente interrompida.

Alexandre tinha se mudado há apenas dez dias para um novo endereço quando tudo aconteceu.

Um vizinho avisou sobre a presença da polícia na casa que estava morando. Eles foram verificar uma denúncia de que tinha droga no local.

Eu fui no centro fazer umas coisas minhas. E quando saí do metrô entrou uma mensagem dizendo que tinha polícia em casa procurando um dos meus colegas

Alexandre da Silva

No quarto do Alexandre, não havia drogas, algemado, na sala da própria casa, ele explicou que era comissário de bordo e só havia dormido ali três noites. Mas os policiais acharam que Alexandre fornecia drogas para o colega. Já que trabalha com viagens.

Foram apreendidas vinte gramas de cocaína e dois comprimidos de metanfetamina, uma droga sintética estimulante.

O Alexandre teve os sigilos telefônico e bancário quebrados.

Nada irregular foi encontrado. Mas ainda assim a acusação, sem qualquer evidência passou pelos tribunais ingleses.

Ele foi condenado a 11 anos e meio de prisão em 2009, enquadrado num crime que aqui no Brasil seria o equivalente a formação de quadrilha.

No processo não há uma única menção, a quantidade encontrada no quarto do amigo.

Segundo os advogados de defesa, uma estratégia da polícia para que a justiça não questionasse a prisão.

O colega de quarto também foi preso. E fez uma carta afirmando que Alexandre não sabia sobre a droga.

Mas não mudou a situação. O baiano ficou quase seis anos no regime fechado.
O comissário de bordo, que viajava o mundo inteiro, de repente se viu trancado com direito de sair da cela apenas meia hora por dia para o banho de sol.

Só não tiraram a minha alma, a minha personalidade, o resto tiraram tudo

Alexandre Silva

Alexandre foi solto em março de 2015, do lado de fora, encontrou uma vida bem diferente.

Ele teve que vender a casa para pagar os advogados, não tinha mais emprego. E até hoje, sete anos depois, enfrenta sérios problemas emocionais.

Na Inglaterra, histórias como a do brasileiro tem sido cada vez mais comum. O país criou uma comissão pública independente para analisar casos de inocentes presos, sem provas.

Hoje, aos cinquenta e seis anos, Alexandre não tem mais a ilusão de ser feliz na Inglaterra.
O país que representava oportunidades, virou sinônimo de injustiça.

Alexandre ficou preso por quase seis anos na Inglaterra por um crime que não cometeu (Reprodução)

Alexandre ficou preso por quase seis anos na Inglaterra por um crime que não cometeu

Reprodução
Um motoboy foi preso injustamente por ter uma moto igual a usada por criminosos

Um rapaz de 24 anos, que trabalhava como motoboy para pagar os estudos, foi de aluno exemplar a presidiário depois de uma investigação falha.

Emerson Gomes da Silva foi condenado a 9 anos e seis meses de prisão.
Ele foi acusado por um roubo de uma moto.

Antes de setembro de 2021, ele ganhava a vida como entregador numa lanchonete.

A hamburgueria é toda monitorada por câmeras de vigilância. As imagens e mensagens de clientes da lanchonete comprovam que o motoboy trabalhou durante toda a noite e não poderia ter cometido o assalto.

Dezenas de provas foram apresentadas para Polícia, para o Ministério Público e para a Justiça.

Mas não resolveu.

Emerson foi preso porque tinha uma moto igual a usada por assaltantes que atacavam os moradores do Jardim Ângela, bairro da periferia de São Paulo.
Ele foi condenado depois que as vítimas fizeram o reconhecimento por uma foto.

Muitas vezes, a polícia não consegue encontrar a pessoa que é acusada do crime e mostra um álbum de fotografia. E a vítima olha e aponta. Uma prova frágil, mas responsável por inúmeras condenações

Adriano Salles Vanni

A Chefe do Emerson, a Soraia também sempre acreditou na inocência do rapaz. Ela contratou advogados e dois deles ajudaram a provar que a investigação falhou. E conseguiram anular o julgamento. Emerson deixou a prisão trezentos e trinta e dois dias depois.

Vejam esse momento emocionante quando ele deixa prisão. Nossa equipe registrou tudo para gente.

Emerson foi punido por um erro que não cometeu, e ainda não sabe como vai refazer a vida.

Um pouco depois de conseguir a tão sonhada liberdade, o jovem não quer levar nenhuma lembrança da cadeia.

Até a roupa ele fez questão de deixar para trás.

Veja registros de histórias e bastidores da equipe
Assista todos os episódios da série especial:

FICHA TÉCNICA
Repórter cinematográfico: Daniel arcanjo 
Auxiliar: Washington Duarte 
Imagens: Lucio Severino
Auxiliar: Waldir Gomes
Áudio: Marcelo Nascimento
Iluminação: Luís Donola
Repórter: Thaís Furlan
Produção: Amanda Binato
Coordenação de Arte Videografismo: Eduardo Cooke 
Videografismo: Cátia Sako
Arte da reportagem: André Louzas
Gerente de Arte: Omar Sabbag
Arte R7: Keven Rodrigues Santos
Edição R7 Estúdio: Cloris Akonteh
Edição das matérias: Alfredo Feierabend
Coordenação de pauta: Rosana Teixeira