Em 4 de outubro de 1957, a União Soviética lançou o primeiro objeto criado pela humanidade a orbitar a atmosfera do planeta Terra. Era o Sputinik-1, que durou seis meses antes de cair. Por 22 dias, até 26 de outubro daquele ano, o satélite artificial transmitiu pequenos sinais de rádio, basicamente "bips" monitorados por especialistas e radioamadores. A Corrida Espacial, que por décadas reuniu esforços intensos tanto dos soviéticos quanto dos norte-americanos, estava oficialmente iniciada.
Além dos pequenos sinais de rádio, o Sputinik-1 também fez importantes estudos das propriedades da atmosfera, efeitos da microgravidade e da radiação solar, o que abriu caminho para o primeiro voo de um ser vivo para fora do planeta (a cadela Laika, em 1957), e a primeira missão tripulada (Yuri Gagarin, em 1961) — sem dúvida, a primeira grande conquista midiática dos esforços da corrida espacial.
Desde o sucesso do Sputinik, potências globais se envolveram em uma disputa pela soberania das pesquisas espaciais, em eventos dramáticos que só foram encerrados após o fim da Guerra Fria. Nas últimas décadas, a corrida espacial mudou de figura: não é mais encarada apenas como peça de propaganda ideológica e fonte de estudo científico, mas também como um mercado potencial, que ganhou também a companhia de empresas em busca de lucros e recursos. Não é por acaso, que especialistas enxergam que estamos vivendo uma nova corrida espacial, cujos resultados ainda são obscuros.
Como muitas das tecnologias que se popularizaram no século 20 — a exemplo da internet e dos smartphones — a corrida espacial e o lançamento de espaçonaves eram uma iniciativa militar. Os grandes foguetes que transportam artefatos e humanos para o espaço são herdeiros diretos dos grandes mísseis balísticos que nasceram como arma de dissuasão, como as ogivas nucleares. Os primeiros satélites também eram protótipos de dispositivos de espionagem que não podiam ser evitados.
Antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, o famoso cientista nazista Wernher von Braun, considerado o pai dos foguetes V2 e dos mísseis balísticos intercontinentais, negociou a própria rendição ao governo dos Estados Unidos. Junto com mais de 500 cientistas e pesquisadores de foguetes, o alemão foi levado secretamente ao país, onde recebeu cidadania norte-americana. Foi a chamada Operação Paperclip (clipe de papel, em português), que acolheu ao todo mais de 1.600 cientistas, engenheiros e técnicos alemães para os serviços norte-americanos, incluindo ex-líderes do Partido Nazista.
Os soviéticos empreenderam operação similar, conhecida como Operação Osoaviakhim, quando realocaram mais de 2.500 engenheiros alemães e equipamentos secretos de pesquisa para áreas controladas pela União Soviética após a rendição da Alemanha, em 1945, mas sem lhes dar uma nova cidadania.
Um dos motivos para o sucesso inicial dos comunistas na corrida espacial foi o R-7, o primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM, na sigla em inglês), capaz de atingir alvos nos Estados Unidos. Como as ogivas do país eram muito maiores que as criadas pelos rivais, o míssil precisava ser muito grande, o que também o tornava um veículo propulsor para voos espaciais. Foi um R-7 sem modificações que transportou o Sputinik-1.
No livro Challenge to Apollo: The Soviet Union and the Space Race, 1945- 1974, Asif Azam Siddiqi, um historiador especializado em história da ciência e tecnologia, revela que o programa espacial da União Soviética respondia primordialmente a necessidades militares e estava menos inclinado a competição dos que os norte-americanos, que no início da década de 1960 declararam suas intenções de levar tripulantes humanos à Lua e trazê-los em segurança.
O programa espacial dos EUA também foi impulsionado por iniciativa militar. Antes da criação da Nasa, existia a Naca (Comitê Nacional para Aconselhamento sobre Aeronáutica, em português), criada em 1915, composta por militares e originalmente empenhada na criação de aeronaves avançadas. Nove meses após a transmissão do primeiro satélite artificial, o governo reestruturou o comitê e o colocou sob administração civil.
Foi com a chegada de civis que o programa norte-americano experimentou maiores avanços. Ao contrário dos soviéticos, que contavam com diversos escritórios de projetos espaciais que competiam entre si, todos os cientistas envolvidos com a corrida espacial nos EUA passaram a atuar na mesma instituição. Em 1969, a iniciativa culminou com a chegada à Lua, na famosa missão Apollo 11, por meio da qual os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin caminharam na superfície lunar.
O míssil V2, da Alemanha, é considerado o primeiro ICBM da história
Bundesarchiv (Arquivo Público Alemão)A chamada "conquista da Lua" marcou uma virada do programa espacial norte-americano, que fora duramente criticada pelo então presidente Dwight D. Eisenhower no final da década de 1950, ao cunhar o termo "Crise do Sputnik". Ver os soviéticos lançando o primeiro satélite da história da humanidade soou quase como uma humilhação para os norte-americanos. "A crise do Sputnik reforçou para muitas pessoas a concepção popular de que Eisenhower era um incompetente sorridente; foi outro exemplo de um presidente 'não faz nada', jogador de golfe, administrando mal os eventos", escreveu Roger D. Launius, historiador-chefe da Nasa, em um artigo sobre as origens da era espacial.
Mesmo políticos importantes compartilharam esse sentimento. "Agora, de alguma forma, de alguma forma nova, o céu parecia quase estranho. Também me lembro do profundo choque de perceber que poderia ser possível para outra nação alcançar superioridade tecnológica sobre este nosso grande país", refletiu Lyndon B. Johnson, então senador e futuro presidente dos EUA, em um churrasco dado em um rancho dele no Texas, na noite em que o mundo soube do sucesso do Sputinik-1.
A insatisfação levou a grandes mudanças no programa espacial do país — que pode ser resumido em uma injeção gigantesca de dinheiro em pesquisa e no crescimento do orçamento da Nasa. O orçamento do Programa Apollo, com a missão de desembarcar tripulantes na Lua, teve um orçamento de cerca de US$ 25 bilhões — cerca de US$ 165 bilhões, em câmbio atualizado de 2021 (algo em torno de R$ 970 bilhões).
A chegada de civis, no entanto, não impediu que uma nova onda de militarização chegasse ao espaço. Medidas para impedi-la foram tomadas no final da década de 1960, principalmente com a assinatura do Tratado do Espaço Sideral, que também foi criada para tentar evitar uma busca desenfreada por recursos minerais fora do nosso planeta.
Antes da aprovação do tratado, uma resolução da Assembleia Geral da ONU de outubro de 1963 proibiu que as potências introduzissem armas de destruição em massa no espaço, para evitar que a intensa corrida armamentista saísse do território terrestre.
Em janeiro de 1967, o tratado mais amplo do espaço foi finalmente aprovado. Entre as principais medidas, destaca-se a proibição do armazenamento de armas nucleares no espaço (convencionais continuam permitidas), o uso militar da Lua e de todos os outros corpos celestes, além de estabelecer que o espaço deve ser usado livremente por todas as nações, sem qualquer reivindicação de propriedade sobre corpos celestes ou direitos exclusivos de exploração. De uma forma geral, é um acordo similar ao Tratado da Antártida, assinado seis anos antes também na ONU.
Mas, o confronto entre o presidente norte-americano Ronald Reagan e o líder soviético Leonid Brejnev acirrou os ânimos novamente e uma nova ameaça de militarização no espaço se consolidou, principalmente com a criação de armas antissatélite, sejam mísseis balísticos ou até outros satélites. No mesmo período, o governo dos EUA também deu início ao infame programa Iniciativa Estratégica de Defesa, mais conhecido de forma pejorativa como Star Wars.
A ideia do governo Reagan era a criação de um sistema de dissuasão, um escudo de defesa que detectasse e abatesse mísseis intercontinentais soviéticos antes mesmo deles reentrarem na atmosfera terrestre. Para isso, seriam utilizados radares poderosos, satélites armados com antimísseis, e — a parte mais famosa do projeto — canhões laser.
O programa 'Star Wars' utilizaria radares poderosos para detectar mísseis inimigos
NARA & DVIDS Public Domain ArchiveO plano megalomaníaco queria utilizar o espaço para dar aos Estados Unidos o que foi chamado de "monopólio nuclear". Se funcionasse, o Star Wars deveria ser capaz de afastar qualquer míssil nuclear intercontinental da União Soviética, alterando de forma definitiva o princípio de destruição mútua assegurada, que previa que ambas as superpotências seriam destruídas caso uma guerra nuclear fosse deflagrada — o que garantiu que nenhum estrategista militar pensasse em iniciar uma.
O Star Wars morreu antes mesmo de nascer de verdade: seu custo foi estimado entre US$ 100 e 200 bilhões, e levaria cerca de 20 anos para se tornar operacional, o que o tornava um empreendimento arriscado, uma vez que corria o risco de estar obsoleto assim que ficasse pronto. Um estudo científico publicado em julho de 1987 no periódico Reviews of Modern Physics afirmou que seria necessária pelo menos mais uma década de pesquisa para saber se os conceitos do programa sequer eram possíveis.
“O Star Wars representa um ataque fundamental aos conceitos, alianças e acordos de controle de armas que têm sustentado a segurança americana por várias décadas, e a adesão contínua do presidente a eles constitui um dos atos mais imprudentes e irresponsáveis na história da política moderna", discursou o então senador Joe Biden, em 1986, em um evento para jornalistas no National Press Club.
Nos anos 2000, o governo de George W. Bush tentou ressuscitar partes do programa com o nome "Escudo antimísseis". Para se mostrar comprometido com a missão, os EUA até se retiraram do ABM (Tratado sobre Mísseis Antibalísticos), que limitava a quantidade de bases e mísseis empregados em defesa e interceptação, para evitar ainda mais gastos com corrida armamentista e a criação de armas mais avançadas.
O posicionamento norte-americano causou controvérsias com líderes russos e chineses da época e não conseguiu nenhum avanço efetivo, segundo análise de Philip Coyle, especialista norte-americano em doutrina e desenvolvimento de armas, que também foi diretor-associado da Casa Branca para Segurança Nacional e Assuntos Internacionais.
"Muitos tomadores de decisão em Washington — e, pelo que se lê, o próprio presidente — parecem estar mal-informados sobre as perspectivas de sucesso a curto prazo com a defesa nacional de mísseis e os orçamentos solicitados para isso. Leva 20 anos para desenvolver um caça a jato moderno e de alto desempenho, e provavelmente levará ainda mais tempo para desenvolver uma rede eficaz de defesa de mísseis", afirmou Coyle.
O programa e acabou por ser paralisado indefinidamente no governo de Barack Obama.
Após a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, o panorama da exploração espacial mudou quase completamente. O que era uma competição intensa e uma busca por superioridade militar se transformou, em parte, em cooperação. Além disso, outras nações lançaram projetos espaciais próprios com variado grau de sucesso.
A Rússia, herdeira do poderio científico e militar soviéticos, brecou boa parte dos esforços de exploração espacial, por motivos principalmente financeiros. Seu projeto avançado de estação espacial, a Mir, serviu de base para a Estação Espacial Internacional, usada por astronautas de diversos países, e laboratório para mais de 3 mil pesquisas, que geraram mais de 500 artigos científicos publicados. Segundo a Nasa, só em 2023 foram mais de 500 investigações.
Hoje, o laboratório é administrado em parceria com a Roscosmos (Agência Espacial Russa), Nasa, Agência Espacial Canadense, Europeia e Japonesa e recebe astronautas de dezenas de outros países.
Mas, o espírito colaborativo não eliminou a geopolítica espacial. Apenas a diversificou e a tirou das mãos de duas superpotências. O primeiro alvo da chamada "Nova Corrida Espacial" é, obviamente, a Lua, ainda menos inexplorada do que as missões Apollo nos fazem pensar.
Em 25 de junho deste ano, a missão chinesa Chang'e-6 retornou de um pouso bem-sucedido ao lado oculto da Lua, com amostras do solo do nosso satélite, tornando a potência asiática a primeira a alcançar tal feito. Ao todo, a sonda coletou cerca de 2 kg de material, tiradas diretamente da Bacia Aitken, uma das maiores crateras catalogadas do Sistema Solar.
De acordo com a descrição da CNSA (Administração Espacial Nacional da China), a missão foi uma "façanha sem precedentes na exploração lunar humana", que envolveu diversos desafios técnicos, como contatar a nave, pela exigência de que outro veículo apenas para comunicação orbite o satélite. Para realizar o pouso, a sonda precisou também de um sistema autônomo que escolhesse um local sem obstáculos para a aterrissagem, em uma região geologicamente acidentada e praticamente sem catalogação científica — ainda que, em janeiro de 2019, a sonda Chang'e-4 tivesse conseguido aterrissar nessa mesma área. Já sua sucessora, a Chang'e-5, obteve sucesso ao retornar do satélite com amostras do solo, em dezembro do ano seguinte.
Mesmo os norte-americanos reconheceram e saudaram o sucesso chinês. Jim Bridenstine, então diretor da Nasa, disse que o pouso chinês de 2020 foi "uma conquista impressionante". Mas, a admiração não demorou para se tornar animosidade. Em abril, em um discurso aos deputados do Congresso dos Estados Unidos, o atual chefe da Nasa, Bill Nelson, afirmou que os EUA estão em uma "corrida espacial" com os chineses.
"Acreditamos que muito do chamado programa espacial civil deles é um programa militar. E acho que, na verdade, estamos em uma corrida espacial", disse Nelson aos legisladores. Em uma entrevista à National Public Radio dada em maio, Nelson acrescentou que o governo norte-americano teme que chineses demarquem territórios na superfície lunar. Já a China anunciou planos de pousar tripulantes humanos na Lua "até o final da década". "E então há áreas limitadas onde você pode pousar no Polo Sul. Não quero que eles cheguem lá e digam: 'isso é nosso. Fiquem fora'", disse Nelson.
Após a coleta inédita de rochas do lado escuro da Lua, o governo chinês convidou diversos países do mundo a se inscreverem para pesquisar as amostras, uma iniciativa comemorada pela Nasa. Mas, a agência é proibida de cooperar com chineses por causa de uma lei de 2011, conhecida como "Emenda Wolf", criada pelo senador republicano Frank Wolf. Basicamente, a lei proíbe que a Nasa use fundos federais para pesquisas de cooperação com agências chinesas sem autorização do Congresso ou do FBI, o que burocratiza pesquisas.
No entanto, a China não está sozinha em seus planos de conquista espacial: em 2021, o país anunciou um projeto em conjunto com a Rússia de construir uma estação de pesquisa na Lua. A ILRS (Estação Internacional de Pesquisa Lunar), segundo os dos países, está aberta a cooperação com outras nações, mas dificilmente deve contar com apoio norte-americano, segundo especialistas.
"É uma corrida para ver quem tem melhores capacidades técnicas. A China está rapidamente avançando. O ritmo do desenvolvimento tecnológico chinês é o elemento ameaçador [para os EUA]", disse em entrevista ao jornal The Guardian, Kazuto Suzuki, professor de política científica e tecnológica da Universidade de Tóquio.
China e Rússia planejam construir usina de energia autônoma na Lua
Divulgação/CNSA e RoscosmosA ILRS seria sustentada por um reator nuclear construído de forma autônoma e com planos para ser entregue até 2035. Uma fonte de energia constante é necessária, uma vez que estudos afirmaram que painéis solares podem não ser suficientes para alimentarem uma estação espacial na Lua, ainda mais se contar com presença humana.
Os russos, por sua vez, anunciaram em julho de 2022 que abandonarão a cooperação com o projeto da Estação Espacial Internacional em alguma data até 2028, como resposta às sanções ocidentais ao país desde a invasão da Ucrânia. Logo depois, Yuri Borisov, chefe da Roscosmos, afirmou que o país pretende lançar sua própria estação espacial, que deve ter seu primeiro segmento em órbita até 2027.
As declarações podem marcar o fim da cooperação entre Rússia e Estados Unidos no espaço, onde colaboram desde o início do projeto da EEI, em 1998. Também pode ser o início definitivo de uma nova fase geopolítica da corrida espacial. Com o possível fim da parceria, norte-americanos e europeus provavelmente pararão de utilizar a nave e o foguete Soyuz, criados pelos soviéticos na década de 1960, e considerados ainda hoje os veículos de lançamentos e transporte espacial mais longevos e confiáveis já criados.
Bandeira da China colocada na Lua
Divulgasção/CNSA/CLEPNão é por acaso que os EUA aceleraram seu programa em parceria com a SpaceX, empresa do bilionário Elon Musk, que trabalha aceleradamente no foguete Starship, composto de veículo de lançamento e nave espacial. O conjunto se destaca por ser reutilizável, o que pode reduzir dramaticamente os custos de viagens e envio de cargas para o espaço futuramente.
Mas, o cronograma de testes é apertado, já que a empresa planeja utilizar a cápsula Starship como veículo que levará astronautas dos EUA novamente à Lua, na missão Artemis 3, planejada para setembro de 2026.
Nos últimos meses, outros países colocaram a Lua como alvo. Em agosto de 2023, a Rússia fracassou em seu retorno ao satélite, após a direção da missão perder o controle da nave Luna-25 e o veículo colidir com a Lua.
Por outro lado, países sem grande histórico de conquistas espaciais experimentaram sucesso. Também em agosto deste ano, a Índia se tornara o quarto país do mundo a pousar uma sonda não-tripulada na Lua, com um pouso bem-sucedido no polo sul do satélite natural, uma região pouco conhecida por cientistas.
O programa indiano foi ainda elogiado pelo baixo custo: a missão Chandrayaan-3, que alcançou sucesso, custou cerca de 6 bilhões de rúpias (algo em torno de R$ 368 milhões), um orçamento bem abaixo das potências espaciais. Para alcançar tal feito, a missão utilizou propulsores mais econômicos, que usaram a própria força gravitacional do planeta para auxiliar na jornada até o satélite natural. "Com fornecimento local de equipamentos e elementos de design, conseguimos reduzir o preço consideravelmente. Uma configuração semelhante feita por um fornecedor internacional custaria de quatro a cinco vezes", disse em entrevista à agência Reuters Amit Sharma, CEO de uma empresa que fornece equipamentos para a ISRO, a agência espacial indiana.
Em janeiro de 2024, o Japão repetiu o feito indiano e se tornou o quinto integrante do clube de nações que conseguiram pousar na Lua. Mas, ninguém duvida que novos concorrentes consigam o feito em breve: empresas bilionárias, que enxergam no espaço um crescimento de mercado.
Os dois principais financiadores corporativos da exploração espacial são, obviamente, Elon Musk e Jeff Bezos, fundadores da SpaceX e Blue Origin, respectivamente. As duas empresas desenvolvem seus próprios sistemas de foguetes, naves e exploradores espaciais, em busca de contratos bilionários com governos.
A Blue Origin foi selecionada pela Nasa para fornecer um módulo lunar da missão Artemis. A missão, segundo a Nasa, "explorará a Lua mais do que nunca", e preparará o caminho para futuras missões que levarão astronautas para Marte. Por sua vez, a SpaceX ganhou contratos bilionários para desenvolver o Starship para a Nasa.
Entretanto, essas corporações bilionárias estão de olho em possíveis recursos presentes na Lua e outros astros. Estimativas apontam que os recursos presentes na Lua podem valer até mesmo quatrilhões de dólares (sim, quatrilhões!), o que torna a busca pelo dinheiro do satélite uma espécie tecnológica de corrida pelo ouro do Velho Oeste.
O atual Tratado do Espaço Exterior não proíbe que empresas explorem recursos espaciais, só impede contratos de exploração exclusiva. Mas, teoricamente, elas só poderiam fazer isso com autorização de um Estado signatário do acordo.
Novas leis ainda abriram mais brechas para um comércio de recursos espaciais, mesmo que nenhuma tecnologia permita isso esteja sequer perto de ser desenvolvida. Em 2015, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a chamada Lei de Competitividade de Lançamento Espacial Comercial, que passa a permitir que cidadãos e empresas do país "se envolvam na exploração e exploração comercial de recursos espaciais ". A única exceção são coisas consideradas vivas, como vegetais e animais.
Blue Origin criará módulo lunar para a Nasa
Divulgação/Blue OriginPaíses como Japão e Índia seguiram a tendência e aprovaram leis similares, o que mostra que a nova corrida espacial só está começando. Musk e Bezos também traçam planos grandiosos para o futuro. Musk disse aos quatro ventos que pretende colonizar Marte, com planos de missões não-tripuladas para 2026, e voos tripulados a partir de 2030, embora sempre deixe claro que tenha previsões "muito otimistas".
Já Jeff Bezos planeja o que chamou de "assentamentos espaciais", que seriam cidades com ecossistemas similares ao do planeta. A construção foi tema de uma apresentação de 2019 da empresa, que afirmou que a saída do planeta seria uma forma de melhorar a vida da população do planeta.
Nas últimas décadas, descobertas e teorias tornaram a Lua um objeto de cobiça para além dos anseios de amantes e poetas mundo afora. Hoje, é de conhecimento científico e econômico que nosso satélite pode ser ainda mais importante para o equilíbrio das atividades terrestres. Não à toa, grandes potências concentram verbas substanciais para fazer com que pequenos passos voltem a marcar a superfície de lunar, visando grandes saltos para a humanidade. Permanece a dúvida sobre a abrangência com que cada uma dessas potências encaram o conceito “humanidade”.
Durante a transmissão do podcast Ciência Sem Fim, o geofísico e divulgador científico Sérgio Sacani destacou um recurso essencial presente em abundância em nosso satélite natural: a água. De antemão, o especialista explica que o H2O lunar não se apresenta por lá como aqui na Terra. “A molécula de água [na Lua] está presa em rochas, os vidros lunares. Na hora que há o impacto de um asteroide, ele esquenta tanto um terreno, que a rocha vira vidro.” Segundo Sacani, essa água não seria utilizada para matar a sede de astronautas, mas sim, a das naves terráqueas: “Você tem o hidrogênio e o oxigênio. Liquefeitos viram combustíveis de foguete. Então, a Lua vira um posto avançado no Sistema Solar.”
Em outra ocasião, no mesmo canal, ele explicou ser mais fácil lançar um foguete a partir do nosso satélite do que da Terra, devido à menor gravidade e à ausência de atmosfera do astro. “Se você tem o combustível lá, você não precisa levar daqui da Terra”, concluiu.
Já em um corte de live compartilhada no YouTube, o geofísico anunciou que pesquisadores identificaram dutos de lava inativos na Lua — o que corroboraria futuras operações espaciais a partir do satélite. “Tanto na Lua como em Marte, esses dois objetos tiveram uma história de um vulcanismo muito grande no passado”, esclarece. “Quando o vulcão é extinto, o duto seca e ele vira um túnel gigantesco.”
A partir daí, eles poderiam ser usados para os seres humanos se protegerem da radiação espacial. “Outra coisa, no tubo de lava, você se protege contra a variação drástica de temperatura, que durante o dia é quente, porque não tem atmosfera, e durante a noite é congelante”, ressalta Sacani, além de lembrar que esse tipo de abrigo é ideal para nos assegurar contra possíveis colisões de corpos celestes contra a Lua.
Mas, para o geofísico, não são apenas as reservas de H2O e nem a hospitalidade subterrânea do nosso satélite que impulsionam as novas missões espaciais. Em 2020, a missão chinesa Chang'e-5 coletou amostras lunares que continham um isótopo do elemento hélio-4, ou simplesmente hélio, conhecido como hélio-3. Raro na Terra, mas abundante em nosso satélite, ele é para muitos especialistas, uma fonte de energia limpa e inesgotável. “[Com] um pouquinho de hélio-3, você consegue colocar em um reator nuclear, e ele cria uma energia muito limpa e muito eficiente”, reforçou Sacani, durante participação no podcast Podpah.
Lua deve ser ainda mais importante para o equilíbrio das atividades terrestres
Reprodução/Instagram/@nasaPara entender a relevância do hélio-3 é preciso diferenciar duas reações que ocorrem no núcleo dos átomos, a fissão e a fusão nuclear. Em entrevista exclusiva ao R7, o professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), Gustavo Canal, explicou que, na primeira, os átomos pesados (como urânio ou plutônio) se dividem em núcleos menores, liberando energia. “É a base das usinas nucleares atuais”, ressalta o docente. “Mas, gera resíduos radioativos.”
Já na fusão, núcleos de átomos leves se fundem para formar um núcleo mais pesado, liberando dez vezes mais energia. “É o que ocorre no Sol e tem potencial para ser uma fonte de energia limpa e abundante”, lembra Canal.
Em entrevista ao Jornal da USP, Ricardo Galvão, especialista em Física de Plasmas e Fusão Nuclear Controlada e atual presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, atentou sobre a utilização do hélio-3 como combustível na fusão nuclear: “Tanto nos reatores a fissão quanto nos reatores a fusão atualmente utilizamos deutério e trítio. Um dos problemas é que a energia que sai gera nêutrons de alta energia; os nêutrons são partículas que, quando bombardeiam parte do reator, fazem com que esses elementos se tornem radioativos; elementos radioativos que precisam ser armazenados por muito tempo, centenas de anos. Já o hélio-3, quando reage com deutério, não produz nêutrons energéticos, a energia sai imediatamente em partículas carregadas, então, não haveria radiação dos elementos dos reatores”, concluiu Galvão.
No entanto, segundo Gustavo Canal, embora esse elemento exista na Terra, a concentração dele é muito menor do que na Lua, pois os ventos solares, que trazem o elemento do sol onde ele é produzido, são bloqueados pelo nosso campo magnético. “Na nossa atmosfera, ele é produzido em pequenas quantidades por meio de bombardeio de raios cósmicos em átomos de hélio. Mas, na Lua, onde não há atmosfera nem campo magnético, o hélio-3 proveniente de ventos solares consegue se fixar”, afirma. “Estima-se que a abundância no solo lunar seja tão alta que, uma área de dois quilômetros quadrados e profundidade de apenas três metros, contenha 100 quilos de hélio-3, volume esse suficiente para abastecer uma usina de fusão aneutrônica de 1 GW durante um ano.”
Ainda assim, em 2022, um estudo publicado pela revista Nature Geoscience por acadêmicos da Universidade da Califórnia, nos EUA, revelou que a presença do elemento em questão na Terra é mais comum do que se projetava.
“Ao analisar rochas do fundo do mar entre a Groenlândia e o Canadá, mais precisamente nos arredores da Ilha de Baffin, pesquisadores perceberam uma concentração muito maior do que aquela encontrada na atmosfera, que possui um átomo de hélio-3 para cada milhão de átomos de hélio-4, enquanto o grupo de pesquisadores mediu cerca de 10 milhões de átomos de hélio-3 por grama de rocha”, reporta Canal. “Essas medidas elevadas vindas do interior do planeta mostram que esse gás, que provavelmente veio da nebulosa solar durante a formação do nosso sistema solar, está melhor preservados na Terra do que se pensava anteriormente.”
Apesar do entusiasmo acerca das possibilidades energéticas-sustentáveis sobre o hélio-3, o isótopo ainda não pode ser encarado como uma solução viável para a urgente independência da sociedade em relação ao uso de combustíveis fósseis.
Gustavo Canal, inclusive, ilustra essa inviabilidade: “Existem vários desafios científicos envolvendo reações com hélio-3 que ainda não possuem solução. Por exemplo, reatores a fusão envolvendo deutério e trítio devem sustentar plasmas com temperaturas em torno de 150 milhões de graus Celsius, enquanto reatores a base de hélio-3 teriam que sustentar plasmas com temperaturas quatro vezes maiores”, pondera. “A transição energética envolve múltiplas tecnologias e fontes de energia. O hélio-3 poderia ser uma parte importante de um mix energético mais amplo. Mas, a sua extração e uso continuam em estágio embrionário de desenvolvimento.”
Além disso, a mineração de hélio-3 na Lua ainda não é economicamente viável, lembra Canal. “Os custos de transporte e a tecnologia necessária para a extração e o processamento do hélio-3 ainda precisam ser desenvolvidos e aprimorados”, aponta o docente.
“Pessoalmente, acho que, muito dificilmente, conseguiríamos trazer hélio-3 da lua em foguetes para produzir energia aqui na Terra e conseguir comercializar essa energia com valores competitivos. Faz muito mais sentido consumir o hélio-3 em usinas a fusão na própria lua para manter instalações lunares operando”, acrescenta.
As cores acima ajudam os cientistas a estudar a composição do solu lunar
Reprodução/Instagram/@nasaPara Canal, isso reforça que o hélio-3 não é o único objetivo das atuais missões em direção ao nosso satélite natural. “O minério de ferro é, com certeza, o maior propulsor para a exploração do solo lunar. Vários especialistas já vislumbram que, no futuro, a Lua servirá como um ponto de apoio para o lançamento de naves espaciais e viagens interplanetárias. Existem várias vantagens em utilizar o solo lunar como uma planta de fabricação de foguetes e naves espaciais”, garante. “Por exemplo, a baixa gravidade permite a movimentação de grandes massas, gastando bem menos energia do que aquela necessária aqui na Terra.”
O acadêmico também coloca o H2O lunar, já citada acima, no ranking de recursos indispensáveis para a presença humana no astro. “Visando a instalação de futuras usinas mineradoras em solo lunar, o segundo grande recurso é a água, que pode ser convertida em hidrogênio e oxigênio por meio de eletrólise utilizando painéis solares”, acrescenta.
Até a publicação deste texto, apenas EUA, Rússia (como União Soviética), China, Índia e, recentemente, o Japão, são os países que conseguiram pousar com sucesso em solo lunar — o que os coloca nas posições de destaque da atual corrida em direção ao satélite, a qual norteará possivelmente o futuro dos setores tecnológicos e econômicos.
Nesse contexto, como o Brasil, diante da falta de investimento, infraestrutura e cooperação governamental, poderia, ao menos, se posicionar em uma base de lançamento em direção à Lua? Para Gustavo Canal, nossa linha de partida aconteceria por meio de parcerias internacionais, investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias espaciais, e participação em projetos colaborativos, que visem a exploração lunar. “O fortalecimento de sua base científica e tecnológica também é essencial”, sugere.
Entretanto, em termos de hélio-3, ele não acredita que nosso país entre na busca pela aplicação do elemento. “Nem mesmo outras potências mundiais entraram ainda”, lembra. “O que existe no momento é uma corrida mundial no desenvolvimento de reatores a fusão utilizando deutério e trítio. Essa, sim, é uma corrida que o Brasil está entrando através da implementação de um Programa Nacional de Fusão Nuclear”, ressalta o acadêmico, sobre o projeto do qual ele é o primeiro autor. "O principal objetivo desse programa é definir diretrizes e ações de curto, médio e longo prazo que criem ao país as condições necessárias para incluir a fusão nuclear em nossa matriz energética, caso ela se mostre atrativa no futuro", finaliza.
Atualmente, cinco países conseguiram pousar com sucesso em solo lunar
Reprodução/Instagram/@nasaCanal lembra que, em dezembro de 2018, a área de fusão nuclear foi incluída "explicitamente" na Política Nuclear Brasileira. Além dele, a iniciativa conta com, os professores Ricardo Magnus Osório Galvão (o atual Presidente do CNPq) e José Helder Facundo Severo, do IFUSP, e os pesquisadores Gerson Otto Ludwig, Maria Célia Ramos de Andrade e Júlio Guimarães Ferreira, do INPE. "Os detalhes do programa foram apresentados para a comunidade científica atuante em fusão nuclear e para membros do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação durante o I Seminário Nacional de Fusão Nuclear", relata o docente da USP.
"Além disso, foram definidas também as ações básicas necessárias à implementação do Programa. (1) a construção de um laboratório de porte nacional para concentrar e coordenar esforços que levem ao desenvolvimento da fusão nuclear no país; (2) a capacitação de recursos humanos por meio de grupos nacionais de pesquisa atuantes na área de fusão nuclear; e (3) o envolvimento progressivo do setor privado nacional para que esse absorva e domine tecnologias associadas ao desenvolvimento da fusão nuclear", conclui Canal.
Reportagem: David Plassa e Filipe Siqueira
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Gabriel Marques Rodrigues
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza