Quando deixou o funcionalismo público para fugir com o circo aos 19 anos, a empresária e dona do Circo Spacial, Marlene Querubin, não imaginava que ficaria conhecida como a “rainha do circo brasileiro”. Sua história, como a de tantos que optaram pela vida nômade, demonstra a dedicação à arte e a luta constante por incentivo público, melhores condições de trabalho e valorização de uma tradição milenar.
Apresentação do Circo Spacial, em São Paulo
DivulgaçãoPara ela, tudo começou por acaso, quando foi assistir ao espetáculo do Circo Vostok com uma amiga, em Cascavel, no Paraná. “Quando entrei no circo e vi todas as artes reunidas em um só espaço, no picadeiro, fiquei encantada, me apaixonei e falei: quero ir embora, vou fugir com o circo”, relembra. Com experiência em teatro e direção de peças, ela disse aos pais que viajaria com a trupe apenas durante as férias do trabalho que exercia na prefeitura.
“Estou de férias até hoje”, brinca, aos 65 anos, após ter percorrido toda a América Latina se apresentando e dirigindo espetáculos, e criar sua própria companhia, o Spacial, que deu origem a uma nova geração de artistas circenses.
Já o título de rainha foi concedido por Beto Carreiro, em 2002, durante o Troféu Picadeiro, em reconhecimento à militância da empresária em prol do circense. “Todo mundo aplaudiu e eu senti que tinha muita responsabilidade”, revelou.
Além dos esforços diários como presidente da União Brasileira de Circos Itinerantes, Marlene desempenhou um papel crucial durante a pandemia de Covid-19, participando da aprovação da Lei Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo, iniciativas que ajudaram artistas a sobreviver em um período sem bilheteria e renda fixa.
Na mesma época, uma família circense instalada em Votuporanga, no interior de São Paulo, também lutava para preservar a longa tradição dos Robatini.
“A gente não tem nem vergonha de falar, o pessoal levava doações, levava cestas básicas, porque realmente a gente ficou um ano e meio sem trabalhar, a nossa fonte de renda é a bilheteria e não tinha isso. Então a gente se virou da maneira que deu, ia vender maçã do amor na rua, coisas de comer do circo, brinquedos... Mas o pessoal ajudou muito a gente, foram muito solidários”, diz Giovanna Robatini, artista e influenciadora digital, em entrevista ao R7.
Giovanna Robatini, artista e influenciadora digital
DivulgaçãoGiovanna, como milhares de jovens ao redor do mundo, começou a gravar vídeos no TikTok durante o isolamento social. Sua rotina incomum morando em um trailer despertou a curiosidade dos internautas, que logo a apelidaram de “a menina do bambolê” por suas apresentações de dança com os aros. Hoje, aos 20 anos, a jovem acumula mais de cinco milhões de seguidores na plataforma, e o Circo Encantado, fundado por seus antepassados, ficou conhecido como o Circo da Gi Robatini.
A história da artista mostra a capacidade do circo de se reinventar. A mesma arte que hoje atrai o público por meio das redes sociais já foi representada em pinturas rupestres e até utilizada como estratégia política durante o império romano, conhecida como pão e circo. “É justamente o que os imperadores precisavam para dominar, dar esse entretenimento popular, e tendo comida eles não se revoltavam e, portanto, o império estava mantido”, explica Walter de Sousa, pesquisador e presidente da Associação dos Amigos do Centro de Memória do Circo.
Além de ser uma forma popular de entretenimento, o circo também se tornou um espaço de sociabilidade. Entre 1930 e 1960, o Circo do Piolin era uma alternativa de lazer acessível em São Paulo, atraindo migrantes do interior que trabalhavam em casas de famílias na região de Higienópolis. Ali, eles encontravam um ambiente onde podiam se expressar e rir livremente. “Eles iam ao circo também para poder rir alto e abrir a válvula de pressão social que viviam”, conclui o especialista.
O palhaço, uma das figuras mais icônicas do circo, também possui uma história ancestral e universal, que começa durante as caravanas medievais, quando artistas de rua passaram a colocar palha nas roupas e a pintar o rosto com farinha para parecerem espantalhos e atrair a atenção dos camponeses. Atualmente, a presença do personagem vai muito além do picadeiro: ele está nas telas da TV, nas ruas, no teatro e até em filmes de terror.
Roger Souza: 'Nasci para ser palhaço'
DivulgaçãoPara o artista Roger Souza, 34 anos, a função do palhaço de circo é fácil de ser explicada: fazer o público rir. Trabalhar com humor, no entanto, é um desafio. “Essa é a maior dificuldade da minha profissão. Conseguir dividir, porque tem aquele dia que você não está bem, está triste, ou com contas, coisas do dia a dia, coisas do mundo. E tem que ter profissionalismo, tentar dividir o profissional do pessoal”, afirma.
Esse é um dos motivos pelos quais ele acredita que ser palhaço não é algo que se ensina; é um dom que nasce com a pessoa.
No seu caso, esse talento se revelou ainda na infância, aos 9 anos, quando se apresentou pela primeira vez como palhaço no Circo Spacial, substituindo um artista que estava machucado. Ainda criança, ele já estava familiarizado com o picadeiro. Roger cresceu em trailers e lembra de já ter entrado no show montado em um elefante, quando ainda era permitido animais no circo.
“Mas e a escola?” Assim como Roger, Giovanna Robatini também nasceu no circo e, como muitas crianças desse meio, é frequentemente questionada sobre a educação itinerante. “Eu nunca estudei um ano inteiro em uma escola só, eu nem sei como é”, revela a jovem, que perdeu a conta de quantos colégios frequentou, mas acredita que foram mais de 200.
Giovanna Robatini, artista e influenciadora digital
DivulgaçãoSegundo ela, seus pais sempre a matricularam em escolas que seguissem o sistema educacional Objetivo. Dessa maneira, em qualquer região do Brasil onde estivessem, ela podia acompanhar o mesmo cronograma de ensino, utilizando as mesmas apostilas e uniformes. Hoje, formada no ensino médio, ela considera a possibilidade de iniciar uma graduação online em áreas que possam ampliar suas funções no circo, como marketing ou produção de figurinos.
Apesar de ter crescido nesse ambiente, a influenciadora explica que não há pressão familiar para permanecer no circo. Inclusive, alguns parentes próximos já deixaram a lona para seguir outras profissões. Do ponto de vista materno, Marlene, que criou dois filhos, admite que já se sentiu culpada pela rotina da profissão, que muitas vezes a levava para viajar sem eles. No entanto, ela sempre priorizou a felicidade dos filhos, mesmo que isso significasse que eles deixassem o circo.
Roger também afirma que, quando sua filha de 2 anos atingir a maioridade, ela poderá escolher o caminho que desejar, sem a expectativa de que siga a profissão dos pais. “Tudo bem, filha, pode fazer o que você quiser. Mas o papai vai continuar aqui embaixo da lona, no picadeiro, fazendo as palhaçadas dele”, diz ele.
Além da saudade da família e dos amigos, mudar de cidade com tanta frequência é mais complicado do que parece. A comunidade circense pede frequentemente por soluções práticas para questões burocráticas e por terrenos adequados para montar o circo, afinal, esse é o seu lar.
Marlene reconhece que ainda há muito para ser feito para melhorar as condições de trabalho dos artistas e manter a arte viva. Para ela, um dos passos mais importantes é o reconhecimento do circo como patrimônio imaterial.
Marlene Querubin, dona do Circo Spacial
DivulgaçãoDe acordo com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), um patrimônio imaterial pode ser definido como: “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados –, que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.”
No Brasil, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconhece manifestações como a roda de capoeira, o frevo e o samba de roda como imateriais. A inclusão do circo nesse grupo, para Marlene, defenderia a linguagem circense, preservaria a arte e, consequentemente, traria melhorias nas condições de trabalho, principalmente facilitando tantas burocracias.
“O principal é reconhecer dentro do patrimônio imaterial que nós somos itinerantes, que nós somos nômades. Isso facilitaria bastante”, afirma.
“Tem muita gente que não dá valor e que trata a gente de uma forma diferente. Tem pessoas que acham que sabem como é a nossa vida”, complementa Giovanna sobre os julgamentos pela vida nômade.
Em meio a tantas dificuldades, desvalorização e crescimento do mundo digital, há de se questionar o futuro do circo. Para os artistas, a resposta é unânime: o circo nunca vai morrer, ele sempre se reinventa.
Um exemplo é a estratégia das companhias de incluírem personagens populares do cinema e da internet nos shows, para chamar a atenção das crianças. Assim, artistas vestidos de princesas e super-heróis entram no picadeiro, mesmo que precise diminuir o tempo da apresentação do palhaço e do mágico.
Roger acredita que não adianta lutar contra o interesse das crianças nos personagens. “É uma luta desleal, no sentido de que eles têm mais notoriedade”, afirma. Dessa forma, sua função é tentar equilibrar as apresentações, criando um número tão cativante, que a lembrança que prevalecerá será as palhaçadas do seu personagem.
“Vou apresentar um show tão bom que a criança não vai conseguir lembrar da personagem da princesa, mas ela vai lembrar do palhaço que caiu de cara no bolo, que fez o pai dela pagar mico no bom sentido, que fez ele participar do show”, ressalta.
A mesma situação acontece com as câmeras durante o espetáculo. Embora os circos tenham passado muito tempo insistindo no slogan “é proibido filmar”, hoje, o palhaço enxerga as filmagens como uma forma de marketing orgânico.
O pesquisador Walter Sousa ainda destaca que, desde a chegada do circo ao Brasil, se fala sobre o fim da arte e a concorrência com outros meios de comunicação. Inclusive, cita como exemplo a história da substituição do programa do palhaço Carequinha pelo programa da Xuxa Meneghel.
“Na década de 90, a TV Manchete contratou o palhaço Carequinha para fazer um programa de circo, só que o Carequinha já tinha mais de 70 anos, ele foi se cansando. Em dois anos, ele não quis mais fazer o programa e a diretora decidiu substituí-lo por uma apresentadora jovem, loira e bonita, que se chamava Xuxa Meneghel. Essa produtora era a Marlene Mattos”, afirma o pesquisador.
Fato é que, mesmo com tantos meios de entretenimento, o circo sobreviveu ao longo dos séculos, resistindo aos tempos de rádio, televisão, e agora, da internet.
“O circo é eterno, têm essa magia e está ligado a memória afetiva das famílias. Eu acredito que ele tem um futuro muito maravilhoso, porque sempre os artistas estarão inventando novos truques e a direção do espetáculo sempre traz uma temática diferente”, fala a dona do Spacial, que também aproveita para aconselhar novos artistas: “Cara, coragem e muita disposição. Eu recomendo que todo mundo que queira entrar no circo se capacite, porque o circo exige que você seja muito profissional”.
Reportagem: Amanda Pio, estagiária do R7
Edição: Ana Vinhas
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Sabrina Cessarovice e Gabriela Lopes
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza
Produção Audiovisual: Ellen da Silva e Julia de Caroli
Operação de Captação Audiovisual: Guilherme Cabral
Edição e Finalização: André Ayres