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Por Romeu Piccoli, do Jornal da Record

Disponível com exclusividade aos assinantes do PlayPlus, o documentário Filhos do Açaí revela a situação da população ribeirinha do Pará que se dedica à colheita do fruto, em especial, crianças, ainda na primeira infância. A seguir, você acompanha um relato exclusivo do repórter do Jornal da Record, Romeu Piccoli, que esteve à frente da produção e revela bastidores da reportagem.

O açaí também é conhecido como "ouro negro" da Amazônia (Reprodução/PlayPlus)

O açaí também é conhecido como "ouro negro" da Amazônia

Reprodução/PlayPlus

"Fraturas múltiplas de coluna lombar e pelve. Sequela permanente. Paraplegia de membros". Na cama de um barraco, sob o calor da Floresta Amazônica, um homem de pernas afinadas por falta de movimento faz uma fisioterapia improvisada, em um equipamento construído por ele com uma corda, uma roldana pendurada no teto e uma garrafa plástica cortada em forma de sapatilha para encaixar no pé. É assim que Thiago se recusa a aceitar o veredito assinado no laudo médico. E foi assim que nós o conhecemos, no quarto dos 15 dias de viagem ao interior do Pará, de onde sai a maior parte do açaí consumido no mundo. Naquele momento, tivemos a certeza de que havia muita história que precisava ser contada sobre esse mercado.

Thiago faz fisioterapia improvisada na cama de um barraco na Floresta Amazônica (Reprodução/PlayPlus)

Thiago faz fisioterapia improvisada na cama de um barraco na Floresta Amazônica

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Das janelas nas paredes de madeira, atrás e ao lado da cama de Thiago, vemos palmeiras que chegam a 15, 20 metros de altura. São açaizeiros. Foi de uma dessas árvores que Thiago caiu, há seis meses. O mesmo fruto, que sempre garantiu o sustento da família, também tirou a capacidade de trabalhar do homem de 38 anos. É latente essa dualidade na produção do açaí.

Açaizeiros chegam 15, 20 metros de altura (Reprodução/PlayPlus)

Açaizeiros chegam 15, 20 metros de altura

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O ouro negro da Amazônia não pode ser "criminalizado". Pelo contrário, o açaí mudou e muda a vida de muita gente para melhor. Inclusive, no início cadeia produtiva. Faz entrar dinheiro nas comunidades ribeirinhas, onde sempre faltou. Mas a massa roxa, consumida às toneladas, das periferias amazônicas aos bairros requintados em todo o país, ainda vem carregada de desigualdade. O objetivo do nosso documentário, desde que saímos de São Paulo, sempre foi mostrar essa realidade, sem maniqueísmo, sem ideias preconcebidas.   

O objetivo do nosso documentário, desde que saímos de São Paulo, sempre foi mostrar essa realidade, sem maniqueísmo, sem ideias preconcebidas

Romeu Piccoli

O caso de Thiago não é isolado. Ele é um peconhoneiro, nome dado à pessoa que, com uma faca na cintura e sem equipamentos de segurança, sobe nas palmeiras para retirar os cachos de açaí. O termo vem da peconha, uma espécie de corda, feita, geralmente, com a folha do açaizeiro, para firmar o pé na hora de trepar na árvore. É a função que envolve mais riscos. O próprio Thiago, antes da queda, já havia perdido a visão de um olho e tem o corpo desenhado por cicatrizes. 

Sem equipamento de segurança, peconheiro sobe na palmeira para retirar cachos de açaí (Reprodução/PlayPlus)

Sem equipamento de segurança, peconheiro sobe na palmeira para retirar cachos de açaí

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O último acidente explicita uma situação recorrente nos açaizais, o trabalho infantil. Desde que ele parou de andar é o filho de 15 anos quem sustenta a casa, colhendo açaí.

Thiago diz que o filho tem sido seu herói. O garoto não aceita o elogio. Sem nenhum traço de rebeldia, afirma não sentir orgulho do que faz. É peconheiro porque precisa ser. Gostaria de ser goleiro ou professor. Com a queda de Thiago, os dois sonhos foram abalados. Devido ao acidente do pai e a consequente necessidade de ficar mais tempo no açaizal, o adolescente jogou menos futebol e faltou mais à escola. Thiago largou a escola quando era dois anos mais novo que o filho, justamente para se dedicar ao trabalho.

A maioria dos peconheiros não quer que os filhos sigam o mesmo caminho (Reprodução/PlayPlus)

A maioria dos peconheiros não quer que os filhos sigam o mesmo caminho

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A história dessa família foi a chave para entender a engrenagem do trabalho infantil no açaí. Todos os peconheiros adultos que entrevistamos deixaram a escola prematuramente e começaram a trabalhar ainda na infância. A maioria não quer que os filhos sigam o mesmo caminho. Mas nem sempre a vulnerabilidade social permite que o ideal se torne real.

É preciso separar o que é uma atividade que faz parte da cultura local do que é efetivamente trabalho infantil. Para uma criança que cresce rodeada por açaizeiros é normal subir em duas ou três árvores por dia, para se divertir ou levar um pouco do fruto para casa. O que não pode ser normalizado é se essa mesma criança passa a subir em 20, 30 árvores por dia, por necessidade. O trabalho rouba a infância.

No período da safra, de agosto até o fim de novembro, os professores da região percebem o aumento do número de faltas e a queda no rendimento dos alunos, que chegam cansados do trabalho. Como agravante, o tronco da palmeira é fino e quanto mais alta a árvore maior o risco de quebrar. As crianças são mais leves que os adultos e tornam-se mão de obra valorizada para alcançar os cachos de difícil acesso.

No período da safra, de agosto até o fim de novembro, os professores da região percebem o aumento do número de faltas e a queda no rendimento dos alunos (Reprodução/PlayPlus)

No período da safra, de agosto até o fim de novembro, os professores da região percebem o aumento do número de faltas e a queda no rendimento dos alunos

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No período da safra, de agosto até o fim de novembro, os professores da região percebem o aumento do número de faltas e a queda no rendimento dos alunos, que chegam cansados do trabalho

Romeu Piccoli

Nossa equipe de campo, formada pela produtora Mariana Soares, pelo repórter cinematográfico Leopoldo Moraes, pelo auxiliar Reinaldo Mota e por mim, na reportagem, percebeu que, principalmente em famílias sem estrutura ou marcadas por acidentes como o de Thiago o trabalho infantil se torna mais presente.

Em uma das comunidades ribeirinhas que visitamos, encontramos um peconheiro de nove anos. Ele já perdeu o pai e, no ano passado, também o padrasto. Coincidentemente ou não, foi reprovado na escola no mesmo ano. Ele colhe açaí para ajudar a mãe a sustentar a casa. Quando chegamos, a geladeira estava praticamente vazia. Eram 10h30 e eles não haviam comido nada. A família chega a ficar três dias se alimentando apenas com mingau.

O menino gosta da escola e sabe da importância de estudar. Mas é difícil cobrar que uma criança com fome não troque o caderno pela peconha. Ou ainda, exigir conscientização da família, num quadro de tamanha vulnerabilidade.

Hermógenes de Sá Oliveira, do Instituto Peabiru, que acompanha a situação do trabalho infantil na Amazônia, alerta para o risco de o poder público apenas "entrar e proibir (a atividade), não vai resolver o problema, as famílias vão continuar vulneráveis e algum outro intermediário vai ganhar mais às custas delas". É fato. Mas onde trabalhadores adultos se acidentam e são encostados sem nenhum tipo proteção social e crianças trocam a escola e a brincadeira pelo trabalho, falta a presença do Estado.

É esse abandono escondido nas tigelas do cultuado superalimento, cada vez mais consumido longe da Floresta Amazônica, que Filhos do Açaí revela.

Filhos do Açaí mostra como crianças e adolescentes são expostos a vários riscos na colheita do fruto. Assista ao documentário completo no PlayPlus:


Diretor Editorial e Projetos Especiais: Thiago Contreira
Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
Texto: Romeu Piccoli
Coordenadores Transmídia: Bruno Oliveira e Juliana Lambert
Analistas Transmídia Jr.: Giovane Felix e Larissa Yafusso