Poderia ser a cena de um pesadelo, mas não é. Tentar se comunicar e não ser compreendido. Precisar sempre da ajuda de outra pessoa para falar com alguém, frequentar a escola, a universidade, ir ao médico ou fazer compras. É assim, praticamente em isolamento e sem privacidade, que vive uma parcela importante dos 2,1 milhões de brasileiros surdos.
Além de causar sentimentos de solidão e de angústia, a dificuldade de interação devido à surdez ou à perda auditiva parcial também pode representar um risco de vida, como aconteceu com o metalúrgico José Luiz, 56 anos, de Diadema, vítima de latrocínio em 27 de junho.
Ele foi baleado por um assaltante porque demorou a entregar o carro. José Luiz não tentou resistir à ação: ele apenas não foi capaz de entender o que o outro queria porque tinha a audição comprometida.
Foi uma situação extrema, mas que está entre os medos reais das pessoas que não ouvem ou têm alguma dificuldade para isso. Também estão nesse conjunto hipóteses como ser atropelado e não conseguir explicar a própria condição ao socorrista ou ser abordado pela polícia e não se fazer compreender.
Ana Laura Vendrame nasceu com surdez e paralisia cerebral
Edu Garcia/R7 - 29.06.2023Pelo menos é isso que conta Ana Laura Rocha Vendrame, 24 anos (na foto acima), que nasceu surda e com paralisia cerebral. Ela se comunica por meio de Libras, a língua brasileira de sinais, com a qual teve contato a partir dos 4 anos, quando começou a estudar em uma escola para surdos, na região de Pirituba, em São Paulo. Em sua casa, todos se esforçaram para aprender a nova língua com ela.
"Minha mãe e meu irmão mais velho usam bastante Libras para se comunicar comigo, já o meu pai usa pouco, o que dificulta nossa comunicação", conta.
Paulo Sérgio Gonçalves dos Santos, 36 anos, diagnosticado com surdez profunda aos 3 anos, também frequentou escola especializada, a EMEBS (Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos) Profª Vera Lúcia Aparecida Ribeiro, na zona oeste de São Paulo, e fala Libras, mas dificilmente consegue ser atendido nos lugares aonde vai. Se precisa fazer um exame médico, a mulher dele, Fabiana Conceição dos Santos, 45, tem de ir junto para falar com atendentes e especialistas.
A situação, que se repete em bancos, supermercados e padarias, faz Paulo Sérgio se sentir desconfortável: depende sempre da companhia da mulher ou de outro conhecido para resolver questões cotidianas.
Fora do ambiente familiar, os dias de Ana Laura e de Paulo Sérgio costumam ser marcados por incompreensão, isolamento e constrangimento, por conta das dificuldades de interação. A mesma língua que dá a eles a possibilidade de entender coisas que não podem ouvir, além de expressar suas ideias, sentimentos e opiniões, também faz com que, muitas vezes, se sintam como estrangeiros no próprio país. Mesmo rodeados de gente, ficam excluídos porque poucas pessoas sabem ou tentam conversar com eles.
"Seria muito bom se as pessoas ouvintes conhecessem Libras e eu pudesse ter esse contato com elas, ter mais possibilidades de comunicação. Meu dia a dia seria mais fácil, e eu não me sentiria tão mal por sempre depender da minha esposa para fazer as coisas. Quando saio sozinho, mesmo se eu tento escrever o que preciso, as pessoas não entendem", conta Paulo Sérgio.
Ele falou com a reportagem do R7 com a ajuda de Fabiana e de Cristiane Nogueira Pereira, que é professora da educação infantil e de Libras e também intérprete da língua de sinais. Aliás, foi graças a Cristiane que Paulo e Fabiana se aproximaram e começaram a namorar. Eles são pais de Mariana, de 3 anos, que é ouvinte e está aprendendo Libras e português.
O mal-estar que Paulo Sérgio sente se deve ao fato de a mulher precisar faltar no trabalho para ir com ele ao médico, por exemplo. Fabiana diz que não se incomoda e que, felizmente, tem uma chefe muito compreensiva, que a ajuda a adaptar seus horários. "Mas, dependendo do lugar, o atestado ou comprovante de comparecimento não é aceito pela empresa e fica bem complicado", diz ela.
A pessoa que está ao lado de Ana Laura em todos os momentos é a mãe, Irani, 64 anos, capitã da Marinha. "Ela sempre me apoiou, é uma mulher muito forte e maravilhosa. Quando eu fiz 15 anos, começou a me preparar para andar de transporte público, porque eu moro em Pirituba e ia fazer o ensino médio em uma escola no Tatuapé", lembra.
Apesar da dedicação e do amor que recebe da família, assim como Paulo Sérgio, a jovem diz se sentir excluída na sociedade. "Eu queria que as pessoas ouvintes entendessem a importância e a felicidade de aprender Libras para conseguir se comunicar com os surdos. Que acabasse essa divisão. Em todos os lugares a que eu vou, as pessoas sempre fogem de mim."
Na opinião de Ana Laura, falta coragem às pessoas para acolherem e incluírem a população surda. Os motivos? Além do preconceito, que afeta todos os que têm alguma deficiência, a maioria da população não sabe quase nada sobre Libras, uma das línguas oficiais do Brasil, que é completamente diferente do português.
Como toda língua de sinais, a Libras é visual-espacial, e não oral-auditiva, como o português, o alemão, o espanhol e o inglês, por exemplo. "Na comunicação, são usados o corpo, as mãos e as expressões faciais, e não a voz e os ouvidos", diz Ronice Müller de Quadros, professora do curso de graduação em letras-Libras da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
"A Libras é a língua usada nas comunidades surdas brasileiras, principalmente nos centros urbanos, onde há maior concentração de surdos. Isso quer dizer que, nas cidades que têm associações ou pontos de encontro de surdos, eles normalmente utilizam a língua brasileira de sinais", afirma.
A especialista explica que a Libras tem uma estrutura gramatical própria, que vem sendo estudada por vários pesquisadores, do país inteiro. "Cada nação tem a sua língua de sinais, até mais de uma, o que é o caso do Brasil", diz. Ela se refere a línguas de sinais de povos indígenas, como a Ka'apor, do povo Urubu-Ka'apor, que vive no Maranhão, e a língua terena de sinais, usada por parte da população que está em Mato Grosso do Sul.
"Como essas línguas não têm os recursos auditivos e orais, elas priorizam o uso do corpo na composição das produções, ou seja, os aspectos espaciais e visuais", explica Ronice.
Em vez de palavras, a Libras tem sinais. O uso das mãos associado a movimentações do corpo e expressões faciais compõe a forma e o significado de cada sinal. "Os sinais combinados constituem frases, sentenças que têm um sentido e um tipo de entonação específico da modalidade visual-espacial", diz a professora.
Ela afirma que muitos movimentos do rosto têm função gramatical nas línguas de sinais, podendo até ser responsáveis por diferenciar sinais parecidos. "A gente tem que seguir a estruturação própria da língua quando faz uma pergunta, por exemplo. Existem marcas muito peculiares, que incluem movimentos específicos da boca, mais associadas à formação do sinal, assim como a parte dos olhos e da sobrancelha podem influenciar mais na estrutura das frases."
Ronice explica que são os movimentos na parte mais alta do rosto que indicam se uma sentença é uma pergunta ou negação. Já para expressar o diminutivo, a ideia de alguma coisa pequena, o usuário da Libras associa ao sinal o movimento da boca: "É gradual, quanto menor é o objeto ou a ideia, mais fechadinha é a boca".
É importante esclarecer que a Libras não é mímica, não tem uma correspondência direta com o português nem é uma linguagem; ela é uma língua natural, que surgiu de maneira espontânea e se desenvolveu ao longo do tempo, de acordo com as necessidades comunicativas da comunidade surda.
Hoje, ela é ensinada nas escolas especializadas na educação de surdos, que devem ser, preferencialmente, bilíngues: em termos cognitivos, uma criança que tem surdez severa ou profunda tem mais vantagens quando aprende a Libras como primeira língua (língua materna) e o português como segunda — como indicam as pesquisas da própria professora Ronice.
Além disso, com acesso às duas línguas, as pessoas surdas podem ter uma formação realmente inclusiva, com condições de continuar estudando em nível superior, por exemplo.
O ensino de Libras é obrigatório nos cursos de formação de professores, em nível médio e superior, e nos cursos de fonoaudiologia, tanto nas instituições de ensino públicas quanto nas privadas. Estão incluídos nessa regra todos os cursos de licenciatura, normal superior, normal de nível médio, pedagogia e educação especial.
Em outros cursos superiores e na educação profissional, a Libras deve ser oferecida como disciplina optativa, conforme estabelece o decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, documento que regulamenta a lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, conhecida como Lei de Libras, pela qual a língua brasileira de sinais foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão. É, portanto, uma das línguas oficiais do país.
Assim, instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de saúde devem garantir atendimento adequado às pessoas que não ouvem. Os surdos também devem ter acesso a processos seletivos, atividades e conteúdos curriculares de todos os níveis, além de etapas e modalidades de ensino das instituições federais — desde a educação infantil até a superior.
Com isso, os estabelecimentos precisam, inicialmente, ter à disposição desse público tradutores-intérpretes de Libras, para tornar possível a comunicação com os responsáveis pelos atendimentos. Instituições de ensino também têm a obrigação de oferecer cursos de língua portuguesa como segunda língua a pessoas surdas.
A professora Ronice é filha de pais surdos, o que na comunidade surda é chamado de coda (abreviação da expressão em inglês child of deaf adults, filho de adultos surdos). Trata-se de pessoas ouvintes que vivem entre a comunidade surda e o mundo dos falantes e, geralmente, ajudam os pais a se conectarem às duas realidades.
Emilia Jones, em cena do filme 'No Ritmo do Coração (Coda)', de 2021
DivulgaçãoUm pouco dessa realidade pode ser vista no filme No Ritmo do Coração (Coda), da diretora Sian Heder, o grande vencedor do Oscar 2022, que conta a história de Ruby (Emilia Jones, na foto acima), uma adolescente ouvinte, com pais e irmão surdos. Além de ser estrelado por atores surdos, o longa mostra os personagens se comunicando em ASL, a língua de sinais do inglês americano.
Ronice foi uma das responsáveis pela criação do primeiro curso superior de formação em letras-Libras do Brasil, na UFSC, oferecido inicialmente na modalidade a distância, em 2006, em conjunto com outras oito universidades do país. "Foi um oferecimento especial, com financiamento do MEC [Ministério da Educação e Cultura] e da Seed [Secretaria de Educação a Distância]. A UFSC liderou o processo porque foi a primeira universidade a aprovar esse curso, passou por todo o processo burocrático para isso."
Hoje, já são mais de 40 cursos em universidades públicas, além do oferecimento em algumas instituições particulares. "A gente tem pelo menos uma universidade federal em cada estado brasileiro com o curso de letras-Libras. Em alguns, como o Rio Grande do Sul, há mais de uma, como a UFRGS [Universidade Federal do Rio Grande do Sul], em Porto Alegre, e a UFPel [Universidade Federal de Pelotas]", diz Ronice.
Na UFSC, há dois cursos presenciais de letras-Libras e um na modalidade a distância. Os presenciais têm duas turmas anuais, com 30 vagas cada um: uma de licenciatura, que forma professores de Libras, e uma de bacharelado, que forma tradutores-intérpretes de língua de sinais.
"O curso na modalidade a distância tem polos em universidades de outros estados, selecionadas a partir de editais, para atender a uma demanda emergencial. Normalmente, são escolhidos três polos a cada edital", esclarece a professora. Ela destaca a importância de formar professores para ensinar Libras como primeira língua a pessoas surdas. E também de ensinar Libras como segunda língua a ouvintes.
Para Ronice, a Libras é uma importante ferramenta de inclusão social, que poderia ser usada por uma parcela maior da população, o que aumentaria a participação dos surdos na sociedade e ajudaria a reduzir a circulação de mitos e falácias sobre as línguas de sinais.
A falta de conhecimento sobre a Libras faz com que falsas crenças sobre essa língua se espalhem pela sociedade. Veja o que é verdade e o que é mentira sobre a língua de sinais brasileira:
Não. A mímica é uma maneira de expressar ideias e pensamentos com imitações ou por meio de gestos que fazem referência direta a elementos da realidade. Na Libras, apenas alguns sinais representam a forma real dos objetos e podem ser comparados com alguma possibilidade de mímica.
Arte para Estudio R7 sobre Libras - Mitos - Libra é uma linguagem
Arte / R7Não. Libras é uma língua natural, assim como as línguas orais, como o português. Da mesma forma que o português é língua portuguesa, e não linguagem portuguesa, a Libras é língua de sinais, e não linguagem de sinais. Ela tem vocabulário e estrutura gramatical próprios e complexos. Linguagem é um conceito mais amplo e trata de diferentes manifestações usadas na comunicação, como a pintura, a música e a dança; as línguas são apenas uma possibilidade, uma das formas de linguagem.
Não. Apesar de muita gente achar que as línguas de sinais só podem ser usadas para compor frases simples, a Libras e todas as outras línguas visuais-espaciais têm recursos suficientes para expressar emoções, pensamentos, ideias abstratas e opiniões. Elas podem ser usadas em apresentações de trabalhos acadêmicos, peças teatrais, poesias e outras formas de produção textual, inclusive piadas e músicas.
Não. Quem não conhece Libras pode ter a impressão de que se trata de uma versão do português feita com as mãos, que segue a mesma estrutura de formação de frases e composição de textos, mas isso é falso. A língua de sinais tem funcionamento diferente. Como acontece com o alemão e o mandarim, tem uma estrutura gramatical própria, que não coincide com a do português.
Não. Elas são línguas naturais, que emergiram espontaneamente nas comunidades surdas para atender a necessidades comunicativas dos indivíduos que não ouvem ou que têm perda severa de audição. Como primeira língua, elas são adquiridas na infância, da mesma maneira que acontece com as línguas orais, o que é comprovado por meio de estudos antropológicos e linguísticos.
Não. Tanto as línguas orais como as de sinais são desenvolvidas ao longo do tempo por diferentes povos. Estão relacionadas à cultura local e expressam a identidade de cada comunidade. Quando um brasileiro vai aos Estados Unidos, ele dificilmente consegue se comunicar em português, porque a língua daquele país é o inglês. Com as línguas de sinais acontece o mesmo: uma pessoa surda que vive no Brasil e usa Libras, se for aos EUA, não será compreendida pelos surdos que usam a ASL (American Sign Language, língua de sinais americana, em português).
Não. Ele é um dos recursos da Libras: representa as letras usadas na escrita da língua oral, o português. Conhecido na comunidade surda como datilologia, o uso do alfabeto manual ocorre em situações específicas, quando é preciso soletrar o nome de pessoas ou de lugares ou expressar as palavras que não tenham um sinal conhecido.
Não existe idade mínima ou máxima para aprender Libras ou qualquer outra língua adicional (que não é a língua materna). Para as crianças que têm a surdez detectada nos primeiros anos de vida, é indicado que sejam expostas à Libras o mais cedo possível, para que desenvolvam plenamente suas possibilidades de comunicação em língua materna. Para elas, aprender a língua de sinais é um processo natural, que acontece da mesma maneira que se dá o aprendizado de línguas orais por crianças ouvintes.
Não é verdade, muito pelo contrário: a língua de sinais ajuda o surdo que quer aprender a falar porque a oralização é um processo de aprendizado de uma segunda língua. Aprender a língua de sinais contribui para o desenvolvimento cognitivo da criança, que depois vai poder aprender quantas línguas quiser, orais ou de sinais.
(Fontes: Ines, Unifesp, UFSC, IFSC, PPGLetras Uerj, Blog Unintese, Site Por Sinal)
Mesmo com as dificuldades de interação, Paulo Sérgio diz não ter encontrado problemas no mercado de trabalho: está há nove anos em uma empresa brasileira do setor de produtos cosméticos. Atua na unidade de Cajamar, onde é um dos responsáveis, no período noturno, pela conferência de produtos. Antes desse emprego, ele passou por outras três empresas.
E conta que conquistou a vaga depois de se inscrever na página da empresa na internet. "O processo de seleção foi tranquilo, pude solicitar a presença de um intérprete, o que me ajudou a explicar o que eu sabia fazer", afirma Paulo Sérgio.
Nos primeiros anos, ele trabalhou em São Paulo. O espaço, adaptado à inclusão, contava com profissionais com deficiência visual e auditiva e oferecia cursos de Libras.
Depois de um tempo nessa unidade, Paulo Sérgio foi promovido e transferido. Mas, no novo local, seus colegas não sabem se comunicar em Libras.
Felizmente, os desafios funcionam como impulso para sonhos e planos futuros: "Tenho muita vontade de estudar teologia e de fazer faculdade de tecnologia. Quero aprender muitas coisas, evoluir na carreira e deixar de ter um trabalho braçal."
Diferentemente de Paulo Sérgio, Ana Laura dá os primeiros passos na vida profissional. Há sete meses começou na função de jovem aprendiz, na mesma empresa onde sua mãe trabalha, graças a uma parceria com o Espro (Ensino Social Profissionalizante), uma associação sem fins lucrativos que promove a inclusão de jovens em situação de vulnerabilidade.
Ela participa de um programa que estimula o pensamento crítico, o exercício da cidadania e a prepara para as práticas na empresa.
"O Espro é a certificadora da parte teórica. Uma vez por semana o jovem frequenta nossa unidade, o que conta como um dia de trabalho. Ele passa quatro dias da semana na empresa e um dia conosco", explica Maísa Aparecida Luiza Rigoli, 41 anos, psicóloga, coordenadora de aprendizagem da entidade.
Os contratos duram entre 15 e 23 meses e são voltados, preferencialmente, aos jovens de 14 a 24 anos em situação de alta e altíssima vulnerabilidade que precisam entrar no mercado de trabalho. As inscrições podem ser feitas pelo site do Espro.
Mas esse trabalho é só o começo, diz Ana Laura, que conta ter outros objetivos para a carreira. "Quero ser escritora e, de alguma forma, estou me preparando para isso. Não vou escrever agora, quero fazer um curso de letras primeiro e também preciso contratar um professor particular para desenvolver e melhorar na língua portuguesa, que é minha segunda língua. Eu leio bastante, mas não consigo entender 100% do conteúdo", explica. Seu livro preferido é O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, publicado em 1943.
A partir de 2005, com a regulamentação da Lei de Libras, houve um aumento da demanda por tradutores e intérpretes da língua de sinais no mercado de trabalho, principalmente nas instituições públicas de ensino. Com isso, também cresceu o interesse pela formação em Libras e a oferta de cursos de formação, como contou a professora Ronice Quadros, da UFSC.
Para a maioria da população, o trabalho desses profissionais ficou mais conhecido recentemente, durante a pandemia da Covid-19, por causa das lives, as transmissões ao vivo, via internet, de entrevistas, conversas entre personalidades e apresentações musicais. Anteriormente, os intérpretes eram vistos com maior frequência em pronunciamentos oficiais de integrantes do governo ou nos vídeos de campanhas eleitorais.
Com a popularidade da profissão, alguns intérpretes ganharam destaque e atraíram muitos seguidores nas redes sociais, interessados em saber mais sobre seu trabalho. Um deles é Nilton Câmara, 25 anos, de Eusébio, no Ceará. Ele é professor, com formação em letras, e também traduz e interpreta músicas em Libras para quem não escuta.
"Quando comecei, em 1997, 1998, ainda não existiam os decretos e leis sobre a Libras, e a gente não tinha nenhum parâmetro de como iria funcionar a inclusão na sociedade, muito menos sobre a relação da Libras com música. Parecia muito contraditória a proposta de fazer música para quem não escuta", lembra Câmara.
Ele conta que usou um pouco da própria intuição para adaptar a musicalidade para a estrutura da Libras, de modo que pudesse ser compreendida pelos surdos. "Sempre acreditei no surdo como um ser completo, um ser musical, um ser cultural. Tive que desaprender coisas que sabia, reaprender outras, desafiar meus colegas, e fui bastante criticado, mas vejo que consegui construir algo bom", diz.
"Quando comecei a me interessar pela Libras não foi fácil, porque minha família foi contra, não tinha trabalho na área, ninguém conhecia essa língua. Aliás, ela nem se chamava Libras ainda, aqui se falava 'mímica manual'. Era uma época em que não era respeitado o lugar de fala do surdo, era como se ele não existisse para a sociedade. Hoje, com a língua reconhecida, o surdo pode falar por si mesmo, mostrar sua cultura e identidade, e o intérprete é uma ponte entre ele e o mundo dos ouvintes", afirma Câmara, que também faz interpretação de peças de teatro, atividade pela qual é apaixonado.
Para quem acha que fazer a tradução de teatro e música é mais fácil do que a de uma palestra, por exemplo, o professor diz que é o contrário e, além disso, é preciso ter um bom condicionamento físico.
"Mostrar uma música é um grande desafio, não é só traduzir o que diz a letra, é preciso expressar também o ritmo, a melodia, a gente precisa musicalizar o corpo, entender que o corpo fala", explica.
"A maioria [das letras] é bem metafórica, e uma tradução direta pode não ter muito sentido para o surdo; então, é preciso transpor o significado para a realidade dele. Isso exige um estudo prévio da música, a interpretação do sentido, do que o compositor quis dizer."
Ana Laura Vendrame, que aparece no início desta reportagem, dá um ótimo exemplo: "Na época em que a música Ai se Eu te Pego, de Michel Teló, foi lançada e fez muito sucesso, apareceram muitos vídeos na internet de pessoas fazendo interpretações em Libras, mas eram todas muito ruins, não faziam sentido para os surdos".
Ela conta que a maioria fazia um tipo de tradução literal, um português sinalizado, e não uma verdadeira interpretação da música. "Na Libras, o sinal de pegar não tem o significado que tem em português na música. O mais adequado seria usar outro sinal, o de laçar para perto, que é a ideia que a letra transmite", explica.
Para os intérpretes que, como Câmara, querem que o surdo tenha a experiência musical mais próxima possível à de um ouvinte, existem outras preocupações: "Em um show, sei que não posso chamar mais atenção do que o artista, e também preciso ter um certo cuidado para não me empolgar em algum momento e entregar mais dança do que sinais".
A cada mil bebês, um ou dois nascem surdos. Estima-se que, atualmente, o total de brasileiros que não ouvem seja de 2,1 milhões, incluídos os que perderam essa capacidade ao longo da vida, segundo dados do grupo de Implante Coclear do HCFM-USP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Esse número confirma o levantamento da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde), realizada pelo IBGE em 2019, sobre a existência de mais de 2 milhões de surdos no país, que representavam 1,1% de toda a população com idade a partir dos 2 anos. Fazem parte desse grupo apenas os indivíduos que têm muita dificuldade ou que não conseguem ouvir de jeito nenhum.
Os tipos de perda auditiva podem ser classificados de diferentes maneiras, considerando suas causas ou as características dos sons que a pessoa não consegue ouvir. O primeiro critério é o tipo de má-formação ou mal funcionamento do sistema auditivo, relacionado a bloqueios ou lesões que impedem a comunicação dos sons do exterior com as estruturas internas do ouvido, neurônios ou cérebro.
Outras duas características dizem respeito às medidas dos sons, que são a intensidade e a frequência. A intensidade é o volume, indicado em dB (decibéis), e a frequência, medida em Hz (Hertz), mostra quando um som é grave ou agudo. Veja como a surdez é classificada:
Nem toda pessoa surda usa a língua de sinais. Existem surdos oralizados, que falam português, geralmente aqueles que passaram por cirurgias e têm um nível satisfatório de audição.
Outros têm perdas auditivas de menor intensidade, usam aparelhos e continuam a ouvir a maioria dos sons, mantendo a capacidade de interação oral. E existem, ainda, os que desenvolvem a habilidade da leitura labial e/ou da escrita em português e usam esses meios para se comunicar.
A PNS de 2019 foi o primeiro estudo que investigou o uso da Libras. Entre as pessoas de 5 a 40 anos com surdez profunda ou severa (que têm muita dificuldade ou que não conseguem ouvir de modo algum), 22,4% sabiam usar Libras. Considerando o mesmo grupo etário, mas somente os indivíduos que não conseguem ouvir nada (surdez severa), o percentual dos que usavam a língua de sinais subia para 61,3%, o que correspondia a 43 mil brasileiros.
Ainda segundo a pesquisa, dos brasileiros que apresentam perda auditiva leve ou moderada, ou seja, os que têm alguma dificuldade de ouvir, apenas 1,8 % sabe se comunicar em Libras.
Das pessoas que nascem sem ouvir, que têm sudez severa ou profunda, a maioria pode se beneficiar da cirurgia de implante coclear, um procedimento para toda a vida que restaura a função da audição com a ajuda de um sofisticado equipamento eletrônico.
Uma parte desse equipamento é implantada na cóclea do paciente, estrutura que fica no ouvido interno. Nos ouvintes, é nesse local que as células sensoriais, estimuladas pela vibração do som captado do exterior, convertem a informação sonora em sinais elétricos, que são enviados para os nervos auditivos, e deles para o cérebro.
Durante a cirurgia de implante, um feixe de eletrodos é colocado dentro da cóclea, para estimular os nervos auditivos do paciente. Conectado a ele há um receptor, que é implantado por baixo da pele, atrás da orelha.
O equipamento só funciona quando o paciente acoplar a ele o processador de som, a parte externa do implante, que capta os sons e os envia como sinais elétricos para os eletrodos — que levam esses estímulos auditivos até o cérebro, substituindo totalmente o ouvido de pessoas surdas.
Coordenador do grupo de implante coclear do HCFM-USP, Robinson Koji Tsuji diz que cerca de metade das crianças que nascem surdas é submetida a esse tratamento e informa que o procedimento é coberto pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Talvez tenha passado batido, ou você pode não ter dado muita atenção, mas o Portal R7 tem, no canto direito da tela, um símbolo com duas mãozinhas brancas em um fundo azul-escuro. Viu agora? Ele mostra que o site é acessível em Libras. Clicando nesse ícone, uma janela é aberta e aparece a Maya, tradutora virtual da Hand Talk, empresa que desenvolveu essa funcionalidade. Com a tradução ativada, ao acessar um texto do portal, o leitor tem a opção de ver o conteúdo traduzido em Libras na hora.
A tecnologia, um plugin que pode ser incluído em qualquer página da internet, funciona com inteligência artificial e é um dos produtos da empresa dos alagoanos Ronaldo Tenório, Carlos Wanderlan e Thadeu Luz, criada em 2012. Em dez anos, eles acumulam prêmios e são donos da maior plataforma de tradução automática para línguas de sinais do mundo.
"O Carlos [Wanderlan] me procurou quando fez um curso de desenvolvimento de aplicativos. Eu tinha muita imaginação, e ele estava querendo fazer algo legal, algum aplicativo relevante. Daí eu me lembrei de uma ideia que tive quatro anos antes, que estava guardada, e decidimos colocar em prática. A gente só precisava achar uma pessoa que fosse muito boa em 3D, para criar um personagem", conta Ronaldo Tenório, CEO da Hand Talk, que é publicitário e especialista em comunicação estratégica.
O terceiro cofundador, Thadeu Luz, entrou para o time nessa época, pois estava voltando de uma temporada no Canadá, onde foi estudar efeitos especiais em três dimensões e animação gráfica.
Personagens Hugo e Maya, tradutores dos prdutos da Hand Talk
Nenhum deles conhecia alguém surdo ou tinha familiaridade com a comunidade surda. A Libras apareceu na história em 2008, em um desafio acadêmico. "Eu precisava fazer um trabalho e queria unir duas paixões: comunicação e tecnologia. Comecei a pesquisar sobre o que as pessoas com deficiência precisavam e caí no mundo da comunidade surda. Vi a barreira de comunicação que existia ali."
Ele diz que ficou intrigado com o fato de os surdos dependerem tanto da presença de um intérprete para terem acesso a informações em português. "Pensei: será que não dá para fazer algo? Achei que poderia fazer alguma coisa para ajudar. Minha especialidade era comunicação, mas eu tinha feito três anos de faculdade de ciência da computação, e os pontos se uniram ali."
Para entender as dificuldades que os surdos enfrentavam, visitou associações e começou a aprender Libras. Depois, com os sócios, na pesquisa de mercado, verificou que não existia nenhum sistema parecido com o que queriam criar, um aplicativo social de tradução de língua de sinais.
"Quando a gente chegou, era tudo mato", brinca o presidente da Hand Talk. "Era como se a gente estivesse no meio da floresta, tentando criar nossa trilha sem bússola, porque não tínhamos referências. Precisamos desenvolver nossa própria metodologia."
Tenório lembra que os desafios técnicos, tecnológicos e linguísticos eram enormes e que surgiam tantos problemas que tinham de escolher um para resolver de cada vez. "Tudo melhorou quando a gente entendeu que a Libras é uma língua em construção e que qualquer língua é viva, muda, tem novas palavras entrando a todo momento."
Para criar o conteúdo da tradução feita pela Maya e pelo Hugo, o outro personagem, os empresários consultaram linguistas, intérpretes e integrantes da comunidade surda, que os ajudaram a entender o que era preciso produzir e a colocar isso dentro do aplicativo e do plugin.
Em 2023, faz exatamente dez anos que o Hand Talk entrou nas lojas de aplicativos. Até o início de julho, a empresa já contabilizava mais de 6 milhões de downloads. "Nós temos mais de 300 mil usuários ativos por mês, são pessoas que confiam no aplicativo, e a nossa responsabilidade é ter uma base de dados sólida lá dentro", diz Tenório.
O plugin, que faz a leitura dos sites, foi lançado em 2014. "Ele é nossa ferramenta plus size, tem um público mais variado, que é quem navega pela internet e precisa de acessibilidade. As empresas não tinham opções para a acessibilidade dos surdos. Teve gente que duvidou, não enxergou essa dor do público com perda auditiva. Eu tive que fazer um trabalho educativo muito forte, mostrar que existia uma barreira de comunicação, que os surdos tinham dificuldade de entender a escrita em português", conta.
Com o tempo, conforme perceberam a importância da ferramenta, os empresários aderiram ao tradutor. "Hoje, os sites das maiores organizações de cada setor têm o Hand Talk."
O executivo conta que, só em junho, o plugin instalado no R7 foi usado para traduzir 800 mil palavras. "Esses números são simbólicos, mostram o impacto desse tipo de ferramenta", conclui.
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Produção e reportagem: Mariana Botta
Edição: Vivian Masutti
Fotografia: Edu Garcia
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Sabrina Cessarovice
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Produção Audiovisual: Julia de Caroli e Matheus Mendes
Edição e Finalização: Fabricio Oliveira
Coordenação de Vídeo e Produção de Conteúdo: Danilo Barboza
Gerência de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu