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Luciana Mastrorosa, do R7

É impossível pensar numa vida sem o fogo. Para o antropólogo Richard Wrangham, autor de “Pegando Fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos”, o controle desse elemento foi o responsável por modificar a nossa espécie, transformando-nos no gênero Homo. “Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e nossas vidas sociais”, afirma o autor em sua obra.

Na nossa cultura, o uso do fogo sempre esteve associado não apenas ao preparo de refeições, mas também ao convívio social. Basta pensar nas fogueiras festivas e nas noites frias aquecidas com churrasco, bebidas e bate-papo em torno das chamas.

Embora seja algo presente em todo o mundo, o hábito de assar carnes no fogo, em pedaços pequenos ou gigantes, como um animal inteiro, tem sido associado geralmente aos homens. Basta lembrar: quantas vezes você foi convidado para um churrasco na casa dos amigos e a pessoa pilotando a churrasqueira era mulher? Poucas, provavelmente.

Porém, em menos de uma década, esse cenário vem mudando. E as mulheres passaram a protagonizar o manejo de facas, churrasqueiras, labaredas e fumaça, desbravando esse território culturalmente masculino não apenas em suas casas mas, também, no mercado de trabalho. E, hoje, são muitas profissionais, chefs de cozinha e amantes das carnes a dominar técnicas, cortes e práticas que mudaram – e ainda estão mudando – a cara do churrasco, não só no Brasil, mas no mundo.

Churrasco de mulher para mulher

A gaúcha Clarice Chwartzmann, criada em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, foi uma das pioneiras a levar o churrasco para mãos femininas. Aos 55 anos e publicitária de formação, ela se define hoje como uma chef assadora, levando conhecimento das técnicas, cortes e modos de fazer o churrasco para permitir que outras pessoas tenham acesso a esse conhecimento, em particular o público feminino.

“Cresci como uma boa gaúcha, grudada na churrasqueira, minha mamadeira era um osso de costela”, brinca a chef. “No Sul, o churrasco é algo passado muito de pai para filho. Como nós somos em quatro irmãs, meu pai sempre me ensinou e compartilhou o conhecimento comigo, então eu sempre fiz churrasco, desde muito nova”, conta. Lá, uma das técnicas mais difundidas é a do fogo de chão, uma das várias maneiras de preparar os assados dominadas pela chef.

Clarice foi uma das primeiras mulheres assadoras do Brasil (Divulgação/Arquivo Pessoal)

Clarice foi uma das primeiras mulheres assadoras do Brasil

Divulgação/Arquivo Pessoal

Embora o churrasco sempre estivesse presente em sua trajetória, Clarice diz que isso só se tornou uma profissão, de fato, em sua vida a partir de 2014. “Naquela época, ainda não tinha começado esse ‘boom’ do churrasco. Eu não tinha conhecimento do mercado de carne, não tinha toda essa estrutura, então comecei dando cursos”, diz ela.

Clarice criou, na época, um curso pioneiro, com foco nas mulheres. “Eu desmistificava esse reduto masculino, o fazer do churrasco, para a mulher protagonizar isso e usufruir dessa gastronomia que é tão boa para reunir as pessoas.”

De fato, a partir desse momento, o próprio universo do churrasco começava a adquirir novos contornos por aqui, muito influenciado pelas técnicas argentinas e uruguaias, da “parrilla”, e também pelos norte-americanos, com o “american barbecue”, com seus defumadores e modos de fazer o churrasco de maneira lenta, transformando cortes duros em iguarias suculentas.

Rainha da brasa

Nesse meio tempo, firmou-se a figura do assador, geralmente homens de barbas longas, muitas tatuagens e “cara de mau”. Enquanto esse cenário se desenrolava, mudando o fazer do churrasco por aqui, as mulheres conquistavam cada vez mais espaço nessa cena, aprendendo as técnicas e aplicando-as em aulas, cursos, eventos e, também, nos restaurantes.

Assim como Clarice, Paula Labaki foi uma das pioneiras nesse cenário. Aos 50 anos, ela se declara uma ‘pit master’ (mestre churrasqueira em inglês), mantendo um longevo serviço de catering na capital paulista e prestando consultoria a diversos restaurantes no país.

“Participo de festivais de BBQ (do inglês, barbecue) no Brasil e ao redor do mundo, sempre mostrando diferentes técnicas de fogo e cocção”, conta a chef. Nascida em uma fazenda no interior de São Paulo, Paula sempre esteve envolvida com a cozinha, prezando por uma comida fresca e pela qualidade dos produtos.

Paula Labaki conquistou rapidamente o apreço dos colegas homens do churrasco (Divulgação/Arquivo Pessoal)

Paula Labaki conquistou rapidamente o apreço dos colegas homens do churrasco

Divulgação/Arquivo Pessoal

“Comecei muito cedo. Hoje, tenho mais de 30 anos de carreira na gastronomia e fui uma das primeiras assadoras brasileiras. Sempre tive o respeito e o carinho dos homens, já que este meio, até muito pouco tempo atrás, era muito masculino”, diz ela.

Paula conta que, apesar de a presença feminina, inicialmente, ser pequena no comando das churrasqueiras, ela nunca teve problemas por ser mulher. “Acho que meu trabalho sempre foi minha maior porta de entrada. Quando você faz um trabalho bem feito, as pessoas respeitam e acabam querendo estar ao seu lado. Os próprios homens me intitularam ‘Rainha da brasa’”, lembra.

“Tenho o mesmo respeito por eles e acredito que não existe sexo ou gênero para ser cozinheiro, e sim, muito trabalho e amor pelo que faz.”

Técnicas, equipamentos e modos de fazer o 'novo churrasco' (Arte/R7)

Técnicas, equipamentos e modos de fazer o 'novo churrasco'

Arte/R7

“Hoje todo mundo é assador, assadora, virou a gastronomia do momento. Mas tem muito pouca gente que conhece, de fato, as técnicas e as domina. Mesmo esse ‘personagem’ barbudo e tatuado, de assador, também é da moda. O Rio Grande do Sul é o lugar onde o churrasco tem uma grande importância e em São Paulo também houve muita mudança. De modo que essa imagem do homem tatuado, de barba, com cara de mau, não é mais o único ícone. Isso diversificou, a entrada de mulheres foi acontecendo de maneira natural”, avalia Clarice.

Para ela, o público feminino foi conquistando seu espaço no mundo das facas, fogo e carnes especiais pela qualidade do trabalho.

“Acho que a gente está num momento onde o machismo não é o principal quando se fala de mulher no churrasco. Quando comecei a falar sobre o tema com outras mulheres, isso fazia muito sentido. O trabalho de desbravar esse meio foi superimportante. Mas, hoje, a mulher já mostrou que faz o churrasco muito bem, tem suas particularidades de trabalhar com vários sabores, de ter mais paciência ao lidar com o fogo”, acredita a assadora.

“Não se trata de ser melhor ou pior por ser homem ou mulher. São estilos diferentes, preferências de cortes e técnicas… Hoje, as mulheres já estão dominando desde o fogo de chão até o churrasco americano com maestria”, define Clarice.

Preconceito, defumação e amor

Núbia Signorini, de 39 anos, é um pouco mais jovem que as companheiras citadas nesta reportagem, mas está no mundo do churrasco desde o último ano de sua faculdade de gastronomia. Agora, ela comanda a parrilla e a cozinha do Meatbox, mix de loja e restaurante focado nos amantes do churrasco.

Quando cursava o final da faculdade, para cumprir as horas complementares, Núbia começou a fazer eventos com o BOS BBQ, considerada a primeira “BBQ House” do Brasil (casas que oferecem carnes preparadas ao estilo do churrasco norte-americano). “Acabei me apaixonando pelo processo de defumação, o que me levou a buscar outras formas de cocção de carne e entrar de cabeça e coração no mundo do churrasco”, conta ela.

No começo, Núbia diz que chegou a sentir preconceito por ser mulher, principalmente quando começou na carreira.

Núbia Signorini mostra um de seus preparos no Meatbox (Edu Garcia)

Núbia Signorini mostra um de seus preparos no Meatbox

Edu Garcia

“Não havia muitas mulheres nesse meio, antes. Em uma determinada situação, um cliente veio até a estação em que eu estava trabalhando com um ajudante e perguntou sobre o processo de defumação da carne. Quando fui explicar, ele disse que queria falar com o churrasqueiro e não comigo, insinuando que, por eu ser mulher, não poderia ser a responsável pelo preparo da carne. Simplesmente levantei a cabeça e disse que ele poderia tirar as dúvidas com o meu ajudante e saí”, lembra a chef.

Episódios como esse, porém, têm ficado no passado. “Hoje em dia, isso tem acontecido com menos frequência. Acho que o que mais espanta as pessoas é o fato de eu não ser gaúcha, e, ainda assim, fazer churrasco! Mas provo minha competência quando lhes entrego a carne no ponto que foi pedido”, diverte-se.

Como outras mulheres que passaram a se dedicar ao churrasco, especialmente aquele preparado com cortes especiais e o uso de diferentes técnicas de cocção, Núbia se preparou para enfrentar o mercado “estudando bastante, tratando o alimento com respeito e profissionalismo e mostrando que o gênero não determina a capacidade profissional.”

“O mercado amadureceu muito e o que define um bom assador é sua qualidade profissional e não o fato de ser homem ou mulher”, diz ela. “Como estou há bastante tempo nesse meio, adquiri respeito e nos tratamos como iguais, pois é isso que somos”, defende Núbia.

“O churrasco me trouxe bons amigos, colegas de profissão que eu respeito e o amor da minha vida”, diz ela. Aqui, Núbia refere-se a seu marido, Anderson Amar, da SMK BBQ, que fornece equipamentos personalizados para defumar carnes com lenhas frutíferas, como de macieira e de pecã, cada vez mais usadas pelos profissionais do churrasco no país para trazer um sabor diferenciado aos cortes bovinos, suínos, pescados e aves.

Todos os fogos, o fogo

Assim como Núbia, Priscila Deus, de 37 anos, começou na cozinha profissional desde os 23 anos, na época em que cursava a faculdade, tendo passado por diversas experiências internacionais. Hoje, ela comanda toda a gastronomia do grupo Pobre Juan, especializado em carnes premium e um dos pioneiros a trazer o churrasco tradicional argentino para o Brasil.

A chef passou um tempo trabalhando na Europa, em lugares com várias estrelas do Guia Michelin, a prestigiosa publicação francesa que elege os melhores restaurantes do mundo. Para ela, a pressão por ser mulher numa cozinha profissional, seja no churrasco ou na alta gastronomia, foi até maior no exterior do que aqui. “A cozinha exige muita dedicação, tem uma hierarquia muito forte, passei por cozinhas bem militares, mas aprendi a ter respeito pelo alimento e consegui provar o valor do meu trabalho”, lembra ela.

“Você tem a necessidade, como mulher, de mostrar seu trabalho. Quando fui para Londres, trabalhei num restaurante com aproveitamento total do animal e me colocaram como uma cozinheira do time, desconsiderando o meu passado de trabalho especializado com carnes. Eu precisei me mostrar, realmente. Tive que me provar e mostrar meu trabalho”, conta Priscila.

“Um dia, cheguei ao restaurante e não tinha ninguém pra me ajudar na parrilla. Havia 200 reservas. Fiz tudo sozinha. Naquele dia, foi minha prova de fogo mesmo. Depois disso, eles enxergaram o que eu, de fato, era”, diz a chef.

Priscila Deus comanda o Pobre Juan e tem fascínio pelo fogo (Edu Garcia)

Priscila Deus comanda o Pobre Juan e tem fascínio pelo fogo

Edu Garcia

No Brasil, depois de estagiar e trabalhar com o chef Erick Jacquin, Priscila praticamente começou sua vida de trabalho no Pobre Juan, em contato direto com as parrillas, cortes diferenciados e o fogo, que é uma grande inspiração para ela.

Agora, na coordenação de toda a gastronomia da empresa, nos fins de semana ela monta churrascos ao ar livre, com técnicas como a do varal.

“Para mim, o fogo é mágico, ele transforma, hipnotiza a gente. Essa conexão com o fogo é imensa, eu tenho uma paixão muito grande por ele. Começa com a chama forte, vai se transformando… Isso para mim é uma conexão não só com a comida, mas com a vida, mesmo.”

Priscila Deus comanda a gastronomia do grupo Pobre Juan (Arte/R7)

Priscila Deus comanda a gastronomia do grupo Pobre Juan

Arte/R7

Edição e reportagem: Luciana Mastrorosa
Arte: Lucas Martinez
Fotos: Edu Garcia e arquivo pessoal
Captação de imagens (vídeo): Luis Felipe Silveira
Reportagem (vídeo): Homero Augusto
Edição de texto (vídeo): Pedro Veloso
Edição de imagens (vídeo): Giovanna Santos e Yu Teh Huang