Em tempos de Olimpíadas, os atletas ganham os holofotes. Nas piscinas, nas quadras, nas traves, passamos a acompanhar a performance de cada movimento milimetricamente calculado, que pode garantir a tão sonhada medalha. Fortes, ágeis, precisos, determinados, as imagens desses atletas nos confundem e, às vezes, a sensação é que estamos assistindo a um filme ou lendo uma história em quadrinhos. Mas, diferentemente da ficção, os atletas não têm superpoderes e até para eles foi difícil entender isso.
“Foi uma loucura. Eu era muito novinha e não entendia o que estava acontecendo comigo. Fui para a semifinal e, em poucas horas, já estava na final. A minha vida virou do avesso, muitas entrevistas, fotos…Todo mundo muito feliz pela minha medalha e eu não entendia, na minha cabeça, qual era o peso das Olimpíadas. Vocês veem uma parte da competição, mas, às vezes, não veem o nervosismo. Você está lá, mas com muito medo de jogar uma manobra. Depois da Olimpíada de Tóquio, que mudou tudo, eu comecei a fazer terapia, e isso vem me ajudando bastante a superar meus medos, meus próprios desafios”, afirma Rayssa Leal, a mais jovem medalhista olímpica do Brasil, que levou a prata no skate em 2021, quando tinha apenas 13 anos.
“A minha transição de carreira poderia ter sido extremamente mais leve, mais harmoniosa. Eu não precisaria ter entrado em depressão. Tem vários aspectos que, hoje, eu analiso, de toda a minha trajetória, que poderia ter sido mais leve. Mas não tinha esse foco na mente. A gente esquece que as peças por detrás de qualquer resultado, seja no esporte, nas empresas, nas escolas, é o ser humano. Tem um ser humano ali e precisa ser cuidado, precisa ser olhado como ser humano e não como máquina”, afirma Fernando Scherer, o Xuxa, ex-nadador e medalhista olímpico.
A busca por resultados e a pressão para se tornar o número um podem impactar no rendimento desses atletas, que passaram a perceber a importância de cuidar da saúde mental. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, o assunto ganhou uma dimensão mundial por conta de Simone Biles, ginasta norte-americana sete vezes medalhista olímpica, que desistiu da competição para focar nas questões psicológicas.
Katia Rubio, psicóloga do esporte e pesquisadora dos estudos olímpicos, explica que a terapia focada nos esportes não é novidade e existe historicamente desde antes mesmo de a psicologia ser profissão.
“A seleção de futebol campeã do mundo de 1958 contou com o psicólogo João Carvalhaes, mas a profissão só foi reconhecida em 1962. Quem diz que a psicologia do esporte é uma coisa nova, não tem a menor noção do que seja. Mas esse fazer da psicologia era muito restrito a questão do psicodiagnóstico e especificamente ao futebol, que era a modalidade com mais recursos e maior visibilidade”, relata a especialista.
“A psicologia do esporte era como um campo indefinido, onde muita gente dava pitaco sem conhecimento técnico. Isso dificultou a presença efetiva da psicologia do esporte, porque virou terra de ninguém. Na década de 1990 é que começam as ações a ponto de transformar a psicologia do esporte em uma especialidade”, completa.
O ex-nadador Xuxa é a prova de que a psicologia profissional passou a fazer parte da rotina dos atletas só depois de muito tempo. “Na minha época, não tinha um trabalho mental. Eu conversava com meu técnico, a gente montava um planejamento, mas era uma coisa muito pré-histórica, vamos dizer assim, comparada com hoje em dia”, diz o ex-nadador, que teve dificuldades de lidar com as próprias conquistas e a expectativa criada sobre ele.
“Quando os resultados foram se tornando maiores, a pressão externa também aumentou, e a pressão interna se tornou ainda maior que a externa. Eu tinha que cumprir a necessidade do olhar dos outros, e isso se tornou um peso para mim. Eu me envolvi numa máquina de performance, quando só o resultado importa e você só se preocupa com o futuro.”
Quem também começou a cuidar da saúde mental nos últimos quatro anos foi o judoca Rafael Silva, o Baby, que tem duas medalhas olímpicas e vai disputar sua última Olimpíada, agora em Paris. O atleta conta como trabalhou esse lado emocional ao longo da carreira.
“No começo, eu não tinha essa preparação mental, eram os professores de judô aconselhando. Desde que comecei a fazer esse trabalho, senti diferença, principalmente para lidar com a rotina fora do tatame. Para mim, me permitir descansar mentalmente sempre foi difícil — e é um pouco ainda — mas a terapia me ajudou bastante nisso.”
Depois do caso de Simone Biles, Rayssa Leal e a ginasta Rebecca Andrade, que conquistaram medalhas nas suas modalidades pelo Brasil nas Olimpíadas de 2021, também falaram publicamente sobre a importância do acompanhamento psicológico para suas vitórias. O posicionamento das duas e de outros atletas ajuda a desmistificar o tabu da terapia, segundo especialistas.
“Os atletas são o melhor cartão de visitas do trabalho psicológico. Quando a gente tem atletas se posicionando sobre autocuidado, interfere na representação social da psicologia não para doentes, mas para pessoas que querem estar bem. Isso é uma coisa recente, porque atletas carregam a identidade de superpoderosos. Agora, eles começam a perceber que admitir a fragilidade é muito melhor do que se afirmar todo-poderoso. Isso mostra o quanto esse trabalho tem que ser a longo prazo”, avalia Katia Rubio.
“Foi o auge quando a Simone apresentou a questão da saúde mental. Isso expôs de uma maneira muito intensa o assunto. Eu espero que esse ano seja importante nessa questão da saúde mental, serão os primeiros Jogos Olímpicos depois de Tóquio. Acho que a gente vai ter repercussões importantes nesse sentido de saúde mental”, acrescenta Paula Teixeira Fernandes, coordenadora do Gepen (Grupo de Estudos em Psicologia do Esporte e Neurociências) da Faculdade de Educação Física da Unicamp.
Uma pesquisa, desenvolvida pela Unicamp em maio deste ano, analisou a saúde mental de 148 atletas e 106 treinadores brasileiros de alto rendimento no Brasil. Os números acendem um alerta e reforçam a importância do cuidado e tratamento contínuo com a psicologia, não só às vésperas de grandes competições, como as Olimpíadas. Segundo os dados, 30% dos entrevistados relataram sintomas leves ou moderados de depressão, enquanto 24% dos participantes disseram já ter pensado em cometer suicídio.
“As pessoas costumam achar que quem tem boa saúde mental não tem depressão, ansiedade. Isso é um equívoco muito grande, porque as pessoas podem ter algum transtorno, mas sabem lidar com isso. Elas controlam com medicação, fazem terapia… Elas têm estratégias para lidar melhor com isso. Acho que essa é a grande questão”, afirma Paula, da Unicamp, que reforça que o objetivo da pesquisa é justamente ajudar os atletas a desenvolverem métodos para não sofrerem com a pressão e até melhorar o desempenho.
Xuxa teve depressão depois que se aposentou das piscinas. O atleta conta que, na ocasião, sentia que não valia mais a pena viver sem ser um nadador. A força mental que ele adquiriu no período em que competia ficou para trás. “Eu tinha saúde, dinheiro, minha filha com saúde, meus pais vivos, meus irmãos… Tudo o que seria o suporte emocional e financeiro. Só que, ao mesmo tempo, não tinha paz interior de saber quem eu era”, relembra.
Ao longo dos últimos anos, com a questão mental em evidência, a maioria dos esportistas e associações do esporte passou a contar com uma equipe focada no treinamento da parte psicológica. No Comitê Olímpico Brasileiro não é diferente. Eduardo de Cillo, coordenador de psicologia esportiva do COB, explica que o trabalho é feito tanto com atletas de desenvolvimento esportivo — apostas para o futuro —, quanto com aqueles que já se tornaram realidade no alto rendimento.
“Nós realizamos avaliações de rotina, preparação psicológica e saúde mental. Essas avaliações são solicitadas, às vezes, pelos próprios atletas ou pelas confederações e equipes técnicas. Participamos de eventos em que ministramos palestras sobre o assunto. São diversos tipos de ação visando não só os Jogos Olímpicos, mas competições e treinamentos envolvidos em um ciclo olímpico, mesmo para aqueles atletas que ainda não estejam no ponto.”
O coordenador de psicologia esportiva do COB diz que, desde as Olimpíadas de Tóquio, as ações do trabalho mental, que já aconteciam no comitê há 10 anos, aumentaram. Eduardo conta que, na época, a preparação já tinha sido diferente devido à pandemia de Covid-19, mas trouxe mais mudanças depois que atletas falaram publicamente sobre suas fragilidades e dificuldades.
“Houve uma consolidação dos serviços de preparação mental do COB naquele momento da reta final dos Jogos Olímpicos do Japão, que nós trouxemos de uma forma ainda mais aprimorada para os Jogos Olímpicos de Paris, na medida em que falar sobre saúde mental virou uma rotina”, explica.
Atualmente, em Paris-2024, o Comitê Olímpico Brasileiro tem 17 profissionais de psicologia, um psiquiatra do esporte, além de manter contato com os profissionais de saúde das confederações, e os profissionais particulares dos atletas e das equipes.
O desempenho de um atleta de alto rendimento pode variar levando em consideração diversos fatores, sendo os principais a preparação física e a questão nutricional. Especialistas reforçam que tão importante quanto os dois primeiros é o preparo mental. Para o judoca Baby, é essa força emocional que vai diferenciar um atleta do outro.
“Acho que todo mundo consegue se preparar bem fisicamente. Mas como o atleta vai lidar com aquela pressão que é estar em uma Olimpíada faz diferença. O preparo mental pode ajudar a trazer o resultado ou não. Eu acredito muito nessa questão mental no dia a dia também, que é o que faz construir a sua confiança para chegar bem no dia das Olimpíadas. Como o atleta lida com esses treinos, como encara as derrotas ao longo da preparação olímpica, como consegue trabalhar esse objetivo a longo prazo”, opina o judoca.
Katia Rubio complementa que, assim como os treinos físicos, o trabalho mental tem de ser continuo e a longo prazo para, de fato, trazer o resultado esperado. “Todo trabalho psicológico é um processo. Ele pode ser um pronto-socorro em caso de alguma crise? Pode, mas vai servir mais ou menos como uma aspirina para dor de cabeça. Se você não souber o que causa essa dor, vai ficar tomando aspirina a vida inteira.”
Reportagem: Camila Juliotti
Edição: Carla Canteras
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Arte: Aldo Silva
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