Desde quando começou a trabalhar na magistratura italiana, em 1990, Giovanni Bombardieri, o atual procurador chefe do setor antimáfia da Calábria, no Sul da Itália, já sabia quem era Rocco Morabito. Naquela época, tratava-se de um traficante de drogas mediano, ligado à máfia que nasceu e que domina aquela região há décadas: a ‘Ndrangheta.
Com o passar dos anos, à medida que Bombardieri foi ascendendo na procuradoria italiana, o procurador foi percebendo que algumas investigações contra relevantes mafiosos da ‘Ndrangheta que compravam cocaína na América do Sul tinham um negociador italiano, que morava no Uruguai, em comum: Morabito.
Giovanni Bombardieri, procurador do setor antimáfia da Calábria
ReproduçãoDo começo dos anos de 1990 para cá, Bombardieri tinha o desejo de capturar o criminoso mais procurado da sua região de atuação e o segundo mais procurado de todo o país -atrás, apenas, de Matteo Messina Denaro, o principal líder de outra máfia, a Cosanostra, também foragido há décadas.
Com histórico de violência das máfias italianas contra procuradores e juízes que combatem as atuações dos grupos criminosos, Bombardieri teve de sacrificar sua vida. Desde maio de 2018, quando se tornou chefe da procuradoria antimáfia da Itália, sua rotina diária é de estar apenas em dois lugares: casa e escritório. No trajeto, há sempre dois policiais guiando seu veículo blindado.
Em entrevista exclusiva ao Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV, Bombardieri afirmou que, depois de 30 anos de magistratura, ao ver a prisão de Rocco Morabito, capturado pela PF (Polícia Federal) em João Pessoa (PB), na tarde de segunda-feira (24), seu sacrifício valeu a pena. “Toda a minha atividade que for para combater a ‘Ndrangheta, a organização que está no meu território, vale meu trabalho”, disse.
Rocco e Vicenzo após a prisão em João Pessoa
ReproduçãoRocco Morabito estava foragido desde junho de 2019, quando fugiu de uma prisão no Uruguai onde estava detido desde setembro de 2017. De lá para cá, ele passou por muitas mudanças, que incluíram não só o país de residência, mas, também, alterações feitas no rosto e no corpo com procedimentos estéticos. Mesmo assim, acabou detido em um flat de luxo, à beira-mar, em João Pessoa, que ele havia alugado um apartamento, no terceiro andar, havia um mês.
A prisão dele ocorreu pela PF em uma ação internacional, que envolveu a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), além da DEA e do FBI, dos Estados Unidos, e da polícia e procuradoria antimáfia da Itália. De acordo com todas as autoridades envolvidas, foi uma prisão histórica. Um mês atrás, as autoridades italianas compartilharam com as brasileiras informações de inteligência que apontavam onde Morabito poderia estar.
Ele passou, seguramente, por São Paulo, Campos do Jordão (SP), Rio de Janeiro e Santa Catarina antes de chegar a João Pessoa. Lá, não ofereceu resistência à prisão. Foi levado para a superintendência da Polícia Federal na Paraíba e, de lá, foi levado em um jatinho para Brasília. Na capital federal, está detido na penitenciária federal da capital, que também abriga, além de membros da cúpula do PCC (Primeiro Comando da Capital), outros italianos mafiosos que aguardam seus processos de extradição.
O Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV apurou com autoridades estaduais de São Paulo e federais que, antes de ser preso, Morabito havia marcado uma reunião com integrantes do PCC, sem data certa, em Campos do Jordão. Lá, um dos criminosos que estaria presente seria Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, apontado pela Promotoria paulista como o sucessor de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, à frente do PCC.
Em entrevista à RecordTV, Carlos Magno de Deus Rodrigues, coordenador de Análise de Redes Criminosas Transnacionais da Abin, afirmou que “foram trocadas muitas informações” com autoridades italianas, mas que, antes disso, a agência já acompanhava ações da máfia calabresa em território nacional. “Por ele ter sido preso no Uruguai com passaporte brasileiro, já suspeitava-se que ele poderia estar no Brasil”, afirmou.
O superintendente da Abin no Rio de Janeiro, Victor Felismino Carneiro, complementou que “ninguém trabalha sozinho”. De acordo com ele, a prisão ocorreu pela integração. “Nós temos 18 adidos em embaixadas no exterior em parceria com 95 países com seus respectivos serviços de inteligência. Essa prisão foi uma materialização dessa ação integrada, particularmente com a Polícia Federal e Interpol”.
Giovanni Bombardieri agradeceu às autoridades brasileiras. “Nos ajudaram prontamente, de verdade. Focamos em Morabito, soubemos que ele poderia estar em uma área do Brasil, e, com uma atividade coordenada investigativa, o Brasil agiu de maneira rápida e eficaz na atividade”, afirmou à RecordTV.
Com quatro condenações feitas por tribunais diferentes, do Norte ao Sul da Itália, Rocco Morabito foi incluso no rol de foragidos internacionais da Interpol em 21 de junho de 1995. Ao todo, ele é condenado, em definitivo, a 30 anos de prisão. Sem poder circular livremente na Itália, antes de ser colocado na lista da polícia internacional, ele decidir cruzar o oceano e construir sua vida entre o Brasil e o Uruguai.
De acordo com a Interpol, tendo como base a documentação das quatro condenações, o italiano, que hoje tem 54 anos, foi o responsável por organizar e distribuir centenas de quilos de cocaína, desde a América do Sul até a Itália, pelo menos nas últimas três décadas. O procurador Bombardieri é ainda mais contundente.
Segundo ele, “Morabito é um expoente da máfia ‘Ndrangheta, que, por sua vez, é uma organização criminosa da região da Calábria muito forte, com projeção, não só em toda a Itália, mas também em muitos países da Europa e fora da Europa. Dentro desse contexto, Morabito era o broker [negociador] mais forte. O broker do tráfico internacional mais potente da América do Sul para a Europa”.
Segundo autoridades brasileiras e italianas, Morabito era o responsável por negociar com facções criminosas locais a logística para levar a cocaína produzida em países produtores, como Colômbia, Bolívia e Peru, para a Europa e, de lá, para outros continentes. Para isso, o Brasil era uma das rotas preferenciais. Aqui, ele conseguiu boas parcerias com o PCC (Primeiro Comando da Capital), que ofereceu a ele, e à ‘Ndrangheta consequentemente, a rota marítima a partir do porto de Santos.
Ficha de Rocco Morabito na Interpol
ReproduçãoO jurista Wálter Maierovitch, autor do livro recém-lançado "Máfia, poder e antimáfia: um olhar pessoal sobre uma longa e sangrenta história", afirmou que Morabito pode ser considerado como o maior especialista nessa logística em todo o mundo. “Ele atua no eixo andino, onde estão os produtores de cocaína; de lavagem de dinheiro, no Uruguai; e Brasil, o corredor de passagem. Ele aproveita toda a estrutura portuária e aéreo-portuário do Brasil e da América do Sul”, disse.
O jornalista Silvio Lancelotti, que investigou a presença de Rocco Morabito no Brasil ainda nos anos de 1990, complementa: “Ele pererecou pelo mundo. Andava por Milão, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Peru, Colômbia, Caribe. Entre outras ‘habilidades’, ele foi o cara que iniciou a transmissão da droga com o cartel de Cali, na Colômbia. E ele não bebe, não fuma e não cheira. Ou seja, é o caso típico de um gângster que usa toda a bandidagem com os outros. Ou seja, é muito perigoso.”
Rocco Morabito morou no Uruguai entre 1994 e 2017, utilizando um passaporte falso e se dizendo um brasileiro de família italiana identificado como Francisco Antonio Capeletto Souza. Depois de 23 anos foragido, em 2017, ele foi detido em Punta del Este, no Uruguai. Enquanto aguardava processo de extradição, conseguiu fugir da prisão, em 2019. Com ele, também fugiram dois brasileiros e um argentino.
De acordo com relatório da Interpol, ao ser preso em 2017 que se descobriu que ele fingia ser um brasileiro. A suspeita é de que ele tivesse vindo ao Brasil porque tinha fortes vínculos com uma mulher portuguesa que vivia aqui. A mulher seria de Minas Gerais, mas seus laços teriam se estreitado no Rio Grande do Sul. Com a portuguesa, ele teve uma filha brasileira, que hoje tem 19 anos.
O advogado de Rocco Morabito, Leonardo de Carvalho e Silva, afirma que durante sua estadia lá, ele fugiu da Justiça por entender que sofria uma injustiça e perseguição. A defesa alega que ele foi condenado na Itália com base apenas em delações premiadas de uma pessoa que ele não conhecia. O advogado afirma que ele se mantinha no Uruguai com uma empresa agropecuária e que, depois, no Brasil, continuava se mantendo com esse serviço e com ajuda de familiares.
Carabinieri - Italia
ReproduçãoAqui no Brasil, a máfia italiana ‘Ndrangheta se articulou com o PCC. Para obter a cocaína produzida principalmente na Bolívia, Peru e Colômbia, a droga tem como principal rota, antes de chegar no Oceano Atlântico, o nosso país. Desde a fronteira, a cocaína chega aos portos por diversas rotas: aéreas, terrestres e fluviais.
Uma vez nos portos, a droga é exportada por meios de navios de carga. Para isso, os italianos contam com o PCC, que fornecem a logística e pagam propina a quem precisa para que o negócio não seja interrompido.
A jornalista italiana Cecilia Anesi, que investiga a relação das máfias no mundo, afirma que “a ‘Ndrangheta é formada por muitas famílias, mas todas elas estão conectadas. Por isso, muitos a chamam de ‘Ndrangheta Unitária, que significa que é uma organização criminosa. Nesse sentido, sempre todas estarão conectadas”.
O diretor Geral da Polícia Federal, Paulo Gustavo Maiurino,complementou que a ‘Ndrangheta é uma das maiores organizações da Itália e que tem como expertise o tráfico de drogas, armas, pessoas e lavagem de dinheiro. As investigações, do Brasil e da Itália, apontam que Morabito era o responsável por negociar, para a máfia italiana, a logística da remessa a partir do Brasil.
O delegado Bruno Samezima, chefe da Interpol no Brasil, acrescentou que havia “indicativos de ligação da organização que ele pertencia com organizações do Brasil. Então, há um indicativo de que ele também praticava ações criminosas aqui no Brasil”.
Há 30 anos, Morabito tem forte ligação, pessoal e corporativa, com o jordaniano Waleed Issa Khamayis, que foi detido na Turquia, ano passado, mas que age no Brasil desde os anos de 1990, também na articulação do tráfico internacional de drogas. Ambos são tidos como grandes fornecedores de cocaína para o mundo. O jordaniano foi preso na Europa depois de participar de um processo de falsificação de passaportes falsos na Macedônia. Agora, o Brasil requer sua extradição.
“Sabemos que, no passado, ele estava em contato no Brasil com o jordaniano Waleed Issa Khamayis. Sempre trabalharam juntos. E Khamayis também estava conectado com mafiosos sérvios, albaneses. Então, se crê que Morabito tinha muitos contatos com criminosos de diferentes países: Colombianos, venezuelanos e em toda a América Latina em uma carreira de mais de 30 anos como traficante”, afirmou a jornalista Cecilia Anesi.
Além do contato com o jordaniano, Morabito tinha contatos com os italianos Patrick e Nicola Assisi (filho e pai, respectivamente), que foram presos na Praia Grande em julho de 2019. Eles são apontados como líderes da ‘Ndrangheta no Brasil e aguardam processo de extradição na penitenciária federal de Brasília. “Também tinha contatos com mexicanos, ia ao Paraguai, falava com integrantes do PCC. Acreditamos que, em sua recente vida no Brasil, ele também mantinha contatos com o PCC”, complementou a jornalista.
No final de abril deste ano, Patrick Assisi e sua mulher foram indiciados pela Polícia Civil de São Paulo por lavagem de dinheiro. Segundo a polícia, eles adquiriram dois imóveis luxuosos em área nobre de São Paulo, mas não tinham como justificar as compras.
Com Rocco Morabito, também foi preso na segunda-feira o mafioso Vincenzo Pasquino, de 30 anos, que também figurava entre os criminosos mais procurados daquele país e que seria o braço-direito dos mafiosos italianos Patrick e Nicola Assisi.
Não se sabe o que Rocco e Vincenzo faziam em João Pessoa, mas as autoridades italianas acreditam que o encontro entre os dois, que são tidos como integrantes de clãs diferentes da ‘Ndrangheta, não tenha sido mero acaso. A suspeita é de que eles estavam a negócio, em prol do tráfico internacional de drogas da máfia calabresa.
“Vincenzo Pasquino é um traficante internacional. Alvo de um procedimento penal da direção setorial antimáfia de Torino, porque pertence ao clã da ‘Ndrangheta chefiado por Nicola e Patrick Assisi. Apesar de não ter condenação definitiva, há uma investigação contra ele em Torino”, afirmou o procurador italiano Bombardieri.
Ainda segundo ele, a troca de informações investigativas entre a Calábria e Torino demonstra que “o encontro entre Morabito e Pasquino não era casual: Se encontraram para negócios do tráfico internacional de drogas”.
De João Pessoa, ele foi transferido para Brasília na tarde de terça-feira (25). Condenado a 30 anos de prisão na Itália, sua extradição, dada como certa, será apreciada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) brasileiro. “Vamos tentar a extradição de Morabito para que cumpra sua sentença para eliminar a possibilidade de ele continuar sua atuação no tráfico internacional”, disse o procurador Bombardieri.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, delegado Anderson Torres, afirmou que o Brasil não tolerará membros de organizações criminosas e que intensificará cada vez mais o combate ao crime nacional e transnacional. “O Brasil age com o rigor da lei e que aqueles que devem, se vierem ao Brasil, não terão dias fáceis”, disse.
O advogado Leonardo de Carvalho e Silva, que presta serviços para Rocco Morabito, afirma que os processos contra seu cliente são antigos e que já deveriam estar prescritos. Ele afirmou que seu cliente admite que já teve contatos com mafiosos italianos no passado, mas que a afirmação de ele ser uma associado é “fantasiosa”.
“Vamos requerer que ele aguarde o processo de extradição em liberdade”, disse o advogado. Segundo ele, o fato de ele ter uma filha brasileira pode colaborar com a requisição de Morabito permanecer em território brasileiro. Silva reafirmou que Morabito se mantinha financeiramente por meio de uma empresa agropecuária que ele tem no Uruguai, além de receber pequenas quantias de dinheiro de familiares.
Prisão de onde Morabito fugiu no Uruguai
ReproduçãoReportagem: Luís Adorno
Colaboração: Márcio Neves
Coordenação: Thiago Samora
Chefe de Redação: André Caramante