A viagem de helicóptero é incômoda. Na aeronave, um Black Hawk HM-2, amontoava-se um grupo heterogêneo. Entre técnicos do Tribunal Regional do Estado do Amazonas, militares do 8º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro e policiais militares, estávamos nós, dois jornalistas do Núcleo Investigativo da RECORD. Fomos a primeira equipe a conseguir cobrir as eleições no interior da Terra Indígena Vale do Javari, a segunda maior reserva do país e berço da maior população de indígenas isolados do planeta.
Estávamos a três dias do primeiro turno das eleições municipais deste ano, quando sobrevoamos pela primeira vez uma das maiores áreas de floresta tropical para acompanhar a entrega das urnas eletrônicas em aldeias no Vale do Javari.
Técnico da Justiça Eleitoral leva urna eletrônica de helicóptero a local de votação em aldeia
Ciro Barros/Reprodução/RECORDDesde 2016, o TSE, o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas e o Exército Brasileiro oferecem aos indígenas do Vale a possibilidade de votar em suas aldeias. Nas eleições deste ano, foram disponibilizadas sete urnas eletrônicas, cada uma em um ponto do território, para atender os 1.880 eleitores cadastrados para as eleições.
A entrega das urnas é feita por meio de aeronaves devido às distâncias do Vale do Javari. Com uma superfície maior que países europeus como a Áustria e pouco menor do que Portugal, é simplesmente inviável chegar de barco — o único meio alternativo às aeronaves — aos locais de votação, alguns deles a quase mil quilômetros de distância do município mais próximo, Atalaia do Norte (AM). Uma viagem de barco levaria dias, talvez mais de uma semana, em um período em que a navegabilidade dos rios fica comprometida devido à estiagem amazônica.
Cabia a nós como repórteres a missão de documentar a votação em uma das áreas de mais difícil acesso no país. Do lado de fora da janela do helicóptero, o mar de árvores a perder de vista nos alertava para o tamanho do desafio de contar a história da votação em um local praticamente desconhecido da ampla maioria da população brasileira. Uma história sobre o esforço do Estado brasileiro para assegurar a cada cidadão o direito de participar do momento mais representativo da democracia e a luta indígena para ter e manter esse direito assegurado de forma satisfatória. Uma história repleta de desafios logísticos e culturais, que exige preparação física e mental para vencer as longas distâncias, o calor escaldante e a infraestrutura precária para a produção televisiva. Uma história sobre como se faz uma eleição quase sem energia elétrica, pouca água e comida disponível e à base de muita força de vontade de atores tão diferentes quanto militares, técnicos do TRE e populações indígenas de diversas etnias.
Essa é uma história sobre tudo que acontece para que a sirene da urna possa soar em uma das áreas mais isoladas do Brasil. Uma história sobre as coxias do maior palco da democracia brasileira, o dia de votação em um dos locais mais inacessíveis da Amazônia.
Exército brasileiro foi responsável por levar urnas a locais inóspitos da Amazônia
Ciro Barros/Reprodução/RECORDEnvio de urnas eletrônicas às aldeias aumentou a participação de indígenas nas eleições
Ciro Barros/Reprodução/RECORDA entrega das urnas no Vale do Javari foi uma conquista dos povos indígenas da região. Um marco dessa história foi o ano de 2012. Naquele ano, mais de mil indígenas das aldeias do Vale deslocaram-se para votar nas eleições municipais em Atalaia do Norte (AM). Na ocasião, houve um surto de diarreia e ao menos três crianças indígenas chegaram a falecer. “E aí o TSE encampou a ideia de colocar as urnas próximo de onde os eleitores residiam”, conta Emerson Nogueira da Silva, chefe do cartório da zona eleitoral de Atalaia do Norte (AM).
Emerson Nogueira, chefe do cartório da zona eleitoral de Atalaia do Norte (AM): 'TSE encampou a ideia de colocar as urnas próximo de onde os eleitores residiam'
Ciro Barros/Reprodução/RECORDO servidor do TRE-AM relata que houve muitas denúncias de compras de voto, pois alguns candidatos prometiam bancar as viagens dos indígenas aldeados em troca de votos. Outro problema era que muitos indígenas ficavam doentes ao ficarem concentrados em área urbana. Segundo Emerson, a chegada das urnas às aldeias ampliou exponencialmente a participação da população indígena, inclusive com a eleição de vereadores indígenas. “Sempre a gente está vendo nas eleições subsequentes um, dois ou três eleitores indígenas exercendo o cargo de vereador. [...] Cabe à legislatura fazer as leis, então ele pode ali tentar, colocar políticas públicas mais voltadas para a área indígena”, avalia Nogueira.
“A ida das urnas foi importante porque nós sentimos parte de querer fazer mudança. E a gente precisa votar, nós precisamos das políticas públicas levadas para a aldeia”, opina Jorge Marubo, liderança histórica da etnia Marubo, uma das sete etnias indígenas já identificadas no interior da Terra Indígena.
A entrada das urnas foi, inclusive, uma demanda do movimento indígena organizado na região. Em 2016, ela foi finalmente atendida. A partir do diálogo de uma série de órgãos que incluiu Exército, TSE, TRE do Amazonas e a Funai, foi iniciada a distribuição das urnas no Vale. Hoje, são sete seções eleitorais, sete urnas, no interior do Vale do Javari, que atendem a 1.880 eleitores.
Para assegurar, porém, o direito dessa população ao voto, é necessário um enorme esforço logístico por parte do Exército Brasileiro.
Eleições: helicóptero das Forças Armadas chega superlotado com pessoas e mantimentos para garantir votação
Ciro Barros/RECORDQuem ocupa o helicóptero sem bancos ou cadeiras precisa se encaixar não só entre as urnas, mas entre os mantimentos, malas de roupas e os demais ocupantes da aeronave, todos preparados para uma estadia de dias em áreas com baixíssima infraestrutura. O som ensurdecedor do helicóptero impossibilita a comunicação verbal e resta a mímica para avisar os colegas sobre uma perna dormente ou sobre a dor em algum lugar do corpo. Quando capta a mensagem, o interlocutor se ajeita para fazer qualquer movimento que permita ao colega esticar as pernas ou sair da posição incômoda. É assim ao longo de horas até o helicóptero pousar em alguma das aldeias.
Para a operação das eleições deste ano somente no Vale do Javari, o Exército empregou 857 homens de seu efetivo na operação das eleições e aproximadamente 20 horas-voo de helicóptero. A área indígena, porém, é apenas parte do esforço conduzido pela Força terrestre no apoio às eleições. Os números da Operação Eleições, como é batizada pelo Exército, são superlativos. Foram empregados 5.683 militares só na região da Amazônia Ocidental. Ao todo, uma frota de 218 viaturas, 66 embarcações e 18 aeronaves, sendo seis aviões e doze helicópteros, foram usadas para levar as urnas eletrônicas a 130 comunidades isoladas, em um total de 63 municípios.
Comandante do Comando Militar da Amazônia, general Costa Neves, exaltou operação: 'Nenhuma intercorrência'
Ciro Barros/Reprodução/RECORD“Nosso balanço é positivo, não tivemos nenhuma intercorrência, todo o pleito ocorreu de forma segura”, avaliou o comandante do Comando Militar da Amazônia, general Costa Neves. “Sem o apoio da aeronave não seria possível [a entrega das urnas], particularmente nesse momento de estiagem que nós estamos vivenciando. Se não tivesse o apoio da aeronave, ia ser muito difícil nós trazermos aqui a Justiça Eleitoral, as urnas, para essas localidades”, argumenta o comandante do 8º Batalhão de Infantaria de Selva, tenente-coronel Ribeiro Júnior.
Estiagem amazônica atrapalha tráfego de barcos pelos rios da região
Ciro Barros/Reprodução/RECORDA estiagem amazônica vem sendo particularmente intensa neste ano. No último mês de agosto, todos os municípios do estado do Amazonas foram declarados em situação de emergência ambiental e de saúde pública pela falta de chuvas. A seca abaixa o nível dos rios e prejudica em muito a vida dos municípios amazonenses, principalmente os mais distantes como Tabatinga e Atalaia do Norte, situados na região de fronteira com o Peru e a Colômbia.
Comandante do 8º Batalhão de Infantaria de Selva, tenente-coronel Ribeiro Júnior diz que helicópteros permitem entrega de urnas
Ciro Barros/Reprodução/RECORDÉ pelos rios que vêm os produtos mais básicos para a sobrevivência, como remédios e alimentos, nestes municípios. Com os rios mais baixos, os fretes encarecem e a população sofre com o aumento de preços. Quem também sofre são os pescadores e as comunidades ribeirinhas, que perdem rendimento em uma de suas principais práticas: a pesca.
“Essa é a pior seca que já vivemos. Hoje está vindo pouco peixe, e os preços estão ficando mais caros. O pessoal também começa a comprar menos”, lamenta Ozeias Moçambite, que se dedica à venda de peixes no mercado de Tabatinga há 18 anos. O transporte entre as cidades também fica prejudicado. “O trajeto que antes levava 40 minutos, agora está levando uma hora”, conta Adriano Ramires, responsável pela venda de passagens para as lanchas que saem de Tabatinga em direção ao município de Benjamin Constant (AM).
Urnas só chegam pelo ar à região amazônica por conta da estiagem
Ciro Barros/Reprodução/RECORDNo interior do Vale, a seca dificulta muito a locomoção para o voto. Eles enfrentam viagens de mais de quatro dias, passando por trechos sinuosos, sendo obrigados a cortar galhos com serra elétrica e dormir nas margens dos rios antes de chegar aos locais de votação.
Nesse cenário de seca, a entrega das urnas só pode ocorrer pelo ar. Acompanhamos o desembarque das urnas em três aldeias indígenas. Saímos na manhã do dia 3 de outubro, a três dias do primeiro turno, a bordo do Black Hawk do Exército. Em duas aldeias — Paraíso e Remansinho — fizemos apenas um desembarque rápido para acompanhar a entrega das urnas. A aeronave nem chega a desligar o motor. Cada minuto conta.
A próxima viagem é em direção à aldeia onde nossa equipe passaria seis dias: a Aldeia São Sebastião, distante 2 horas de voo em direção da floresta.
Mais de 1.800 eleitores estavam aptos a votar em aldeias indígenas da região de Atalaia do Norte (AM)
Ciro Barros/Reprodução/RECORDQuando o helicóptero levanta voo após nos deixar na aldeia São Sebastião, ele levanta uma enorme camada de poeira que encontra diretamente os nossos olhos. Aquele parece um alerta para o que nos aguardava. Tínhamos pela frente seis dias de uma realidade distante dos nossos padrões.
A aldeia organiza-se em “malocas”, construções caprichosas dos indígenas, que levam meses para serem construídas à base de madeira e palha. Lá dentro, grupos familiares (ou clãs) organizam-se separadamente ao redor de cada uma das construções, mas compartilham uma vida em comum. Cabe ao cacique da aldeia a organização de atividades coletivas como a pesca, a caça e o cultivo de roças.
Na aldeia, não há água potável e a pouca energia é à base de um gerador de alguns moradores. Para dormir, estendemos a rede na sede do pólo de saúde da aldeia. O peso no helicóptero é contado, então tivemos que trazer só o essencial, incluindo redes para nosso descanso noturno, algumas garrafas de água e muito repelente. Fora isso, algumas roupas e o equipamento de filmagem.
A dificuldade de infraestrutura atinge também os trabalhos para a eleição. “É importante que as pessoas vejam, pois elas não conhecem a realidade de muitos municípios do Amazonas. As pessoas acham que é só chegar e ligar a urna na tomada, mas aqui não é bem assim”, explica Mateus Felipe Nascimento da Silva, técnico de transmissão do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas. Enquanto dava entrevista, Mateus esperava a bateria da urna carregar antes do dia das eleições. A energia que carregava a bateria da urna vinha de um gerador à gasolina que um indígena Marubo gentilmente cedeu à equipe do TRE.
Marilene Rufino Reis foi mesária no 1º turno das eleições
Ciro Barros/Reprodução/RECORDVestindo pulseiras e colares típicos da etnia Marubo nos tornozelos, joelhos e atravessados sobre o peito, Marilene Rufino Reis exibe com certo orgulho o crachá de segunda mesária junto aos adornos nativos.
É dia de eleição. Marilene é a primeira a chegar na escolinha que servirá de local de votação quando o presidente abre as portas para iniciar os trabalhos de abertura da mesa eleitoral. Confere documentos, assina planilhas e supervisiona a instalação da urna. Interage com os demais membros da mesa preparando o local para a receber os eleitores.
Alguns locais de votação ficam 1.000 km do município mais próximo, Atalaia do Norte (AM)
Ciro Barros/Reprodução/RECORDEla também será a primeira a votar. Seu voto simboliza a abrangência da democracia alcançando os lugares distantes do Brasil, mas também expressa a participação igualitária e política da mulher nas decisões que orientam o futuro das aldeias enraizadas na floresta.
Ela se orgulha dos feitos alcançados por meio da participação política das mulheres indígenas. “Uma alegria para mim por que estou sendo exemplo das mulheres, mulheres indígenas. Hoje em dia, nós, no Vale do Javari, brigamos para que tenhamos a escola para a educação”, afirma.
Também vislumbra um futuro promissor por meio da aprendizagem que participar das eleições traz consigo. “Nós, indígenas, [de] política não entendemos quase nada, mas sei que com essa nossa participação a gente vai aprender. Que a gente possa entender o sistema da política para a gente trabalhar e conquistar o que nós queremos para nossas aldeias”, reflete a indígena.
Presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia diz: 'Somos igualmente brasileiros, temos o direito de votar'
Luiz Roberto/Divulgação/Secom/TSE – 22.10.2024Na outra ponta da cadeia das eleições, outra mulher, a presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, autoridade máxima responsável pelo pleito, comemora a participação das populações indígenas na votação. “No Vale do Javari, o indígena ter, na sua aldeia, a urna, o mesário, exatamente como o empresário tem na avenida Paulista, significa que somos um povo em ser para melhor. E é isso exatamente que a Justiça Eleitoral tem a obrigação de fazer”, reflete a ministra.
“Somos igualmente brasileiros, temos igualmente o direito de votar. E se vê que, depois de as urnas terem ido para perto das comunidades, nós tivemos uma representação maior deles, porque acende em cada um a possibilidade que ele vê tanto para ser candidato, quanto para ser eleitor”, completa.
Indígenas dizem que novas necessidades só podem ser resolvidas com participação nas eleições
Ciro Barros/Reprodução/RECORDMesmo com todas as dificuldades, os indígenas marcaram presença. Além dos próprios indígenas Marubo, que já residem na aldeia São Sebastião e algumas aldeias no entorno (são 300 ao todo), uma grande população de indígenas Mayoruna, uma outra etnia do Vale, atracou na São Sebastião para fazer valer o seu direito ao voto.
“Precisamos melhorar a nossa educação, melhorar com o nosso professor e avançar com nossos filhos adolescentes para estudar, e é isso que nós viemos aqui fazer”, afirma o agente de saúde Lázaro Mayoruna. Ele explica que, entre as principais reivindicações, estão melhores condições de transporte e as condições de saúde e educação na aldeia.
“Na época do verão [como é chamada o período de chuvas na Amazônia], sofremos muito com diarreia, malária”, relata. A preocupação é fazer valer sua voz para trazer melhorias ao estilo de vida indígena. “Precisa também tratar a água, mas limpa a água, né? A nossa aldeia não precisa beber água suja, né?”, afirma Cristiano Mayoruna, indígena da mesma etnia, reclamando das condições de saneamento básico de sua comunidade.
Em entrevista concedida no idioma Marubo, o cacique Saide Reis, responsável pela Aldeia São Sebastião, também cobra melhores condições de educação, lamentando o fato de os jovens indígenas terem que sair de suas aldeias para continuar os estudos na cidade quando atingem certa idade.
Cacique cobra melhores condições de educação
Ciro Barros/Reprodução/RECORDPara Jorge Marubo, nascido na Aldeia São Sebastião e liderança histórica dos indígenas do Vale do Javari, a necessidade de participação nas eleições foi criada a partir do contato com a cultura não-indígena. “Nossa vida mudou a partir do momento que nós tivemos o contato com a sociedade nacional. Quando uma cultura migra para outra cultura, possivelmente tem impacto negativo, é o que a gente vive hoje, nós do Vale do Javari”, argumenta. Marubo explica que o contato com a sociedade não-indígena trouxe uma série de novas necessidades e que é impossível abrir mão delas. “A gente também criou essa necessidade. A gente precisa de motor de luz lá, a gente precisa de comunicação lá, e nós temos jovens estudando na cidade, nas universidades, aqui no município de Atalaia”, explica.
A fala de Marubo sintetiza a importância do voto no Vale do Javari, realça o que faz valer todo o esforço feito por diversas instituições para assegurar o direito dos indígenas ao voto. A participação política, que, em grande medida, se dá pelo voto, é a única ferramenta disponível para os indígenas assegurarem sua voz em um mundo que não é mais o que seus antepassados conheceram.
É isso o que justifica todo o esforço do Estado brasileiro para levar a eles o direito ao voto, mesmo que para isso seja necessário longos voos nas hélices de um helicóptero.
Acompanhe o transporte das urnas eletrônicas às comunidades mais remotas da Amazônia:
Diretores de Jornalismo: André Basbaum, Clovis Rabelo, Rafael Perantunes e Thiago Contreira
Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
Produção e reportagem: Ciro Barros, Lumi Zúnica e Ana Albini
Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo