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Tony Chastinet, Thiago Samora, André Azeredo, Érika Rodrigues*, da RecordTV

Barcos de luxo, carros esportivos, mansões cinematográficas, helicópteros, relógios de grife e outros bens exclusivos para quem tem muito dinheiro passaram a figurar entre os objetos apreendidos nas sucessivas operações da Polícia Federal que miram os narcotraficantes que enviam cocaína para a Europa. A fortuna dá a dimensão de quanto dinheiro as organizações criminosas estão ganhando com o negócio — assista ao especial completo no PlayPlus.

Nomes que antes eram restritos aos meios policiais que investigam o tráfico de drogas ganharam o noticiário. Milionários em muito pouco tempo, em todos os casos, chama atenção o padrão de vida que levavam, ostentando um cotidiano de luxo e requinte. Ainda que os traficantes tenham uma complexa engrenagem para esconder e lavar o dinheiro, a ostentação já levou muitos para a prisão ou a morte.

“Esse acúmulo de capital também é uma grande fragilidade dessas organizações criminosas. Fragilidade que pode ser explorada de forma estratégica pelos órgãos de repressão. Porque o dinheiro deixa rastro. O dinheiro deixa vestígio”, explica o delegado Luís Flávio Zampronha de Oliveira, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal.

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Divulgação/ Polícia Civil
Disputa

Gilberto Aparecido dos Santos, conhecido como Fuminho, foi preso no ano passado em Maputo, capital de Moçambique, em uma operação conjunta da Polícia Federal com a DEA (Drug Enforcement Administration) — a polícia antidrogas dos Estados Unidos — e autoridades moçambicanas. Os policiais descobriram que Fuminho levava uma vida de luxo, viajando constantemente entre a América do Sul e a África.

Fuminho era considerado um dos maiores traficantes do país, responsável por fornecer cocaína ao PCC e pelo envio de cocaína para a Europa. Ele tomou o posto de traficante mais procurado pela polícia depois da captura de Luiz Carlos da Rocha, conhecido como Cabeça-Branca, em 2017.

Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho (Reprodução)

Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho

Reprodução

Segundo policiais que investigam Fuminho há muitos anos, ele fez fortuna em pouco tempo com o envio de cocaína para a Europa, negócio que comandava a partir da Bolívia, onde tinha conexões com os cartéis produtores da droga. Ele agia como parceiro, fornecedor do PCC, ligado diretamente ao líder da facção, Marcos Williams Herbas Camacho, o Marcola.

Quando foi preso, Fuminho era procurado por mandar matar dois líderes da facção no Ceará, em 2018. A morte de Rogério Geremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, trouxe à superfície um racha na facção em razão da fortuna que estava entrando com as remessas de cocaína a partir do Porto de Santos e outros portos brasileiros.

Segundo a polícia, Gegê e Paca saíram da cadeia e estavam levando uma vida de milionário em Fortaleza. Isso teria provocado suspeitas de que os dois estariam desviando dinheiro da facção. No entanto, havia outro motivo para o crime. Eles queriam mudar o esquema de envio de cocaína para a Europa, consolidado há anos pelo PCC e comandado por Fuminho.

Policiais ouvidos pela reportagem explicam que eles queriam implantar uma espécie de “taxa de exportação” para o uso da logística do PCC por Fuminho ou outros parceiros que estão envolvidos no tráfico internacional, mas que não integram a facção criminosa. Para não perder o comando do esquema nem muito dinheiro, Fuminho teria arquitetado o plano para matar Gegê e Paca.

Onde você encontra um território que rende muito dinheiro, você vai encontrar disputa. Essa disputa provocou uma série de mortes, seja do lado A da facção, seja do lado B

Ruy Fontes, delegado-geral da PC-SP

Para o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, a interferência nos negócios internacionais da facção pode ter relação com o crime e as mortes que ocorreram em retaliação.

“Já foi detectado, claramente, com a morte do Gegê do Mangue e do Paca, que eram líderes da organização e que estavam atrás do seu quinhão, nesse lucro gigantesco que era produzido por alguns líderes da organização que já estavam na rua antes dos dois. Obviamente que, onde você encontra um território que rende muito dinheiro, você vai encontrar disputa. Essa disputa provocou uma série de mortes, seja do lado A da facção, seja do lado B”, avalia.

A execução de Gegê do Mangue e Paca foi comandada pelo gerente de Fuminho na Baixada Santista, responsável por operacionalizar os embarques do pó, Wagner Ferreira da Silva, conhecido como Cabelo Duro. Ele levava uma vida de milionário. Mansões, barcos de luxo e festas exclusivas faziam parte do cotidiano do traficante. Cabelo Duro foi executado dias depois de comandar a morte dos líderes da facção.

O crime provocou um mal-estar interno no PCC, já que o suposto mandante, Fuminho, era homem próximo a Marcola, o líder da organização. Então, a dúvida era se o chefe tinha concordado com esse plano. No final, a história que prevaleceu foi a de que Gegê e Paca estariam desviando dinheiro do tráfico para a Europa, e Fuminho prosseguiu nos negócios até ser preso.

“A movimentação financeira é tamanha que, por exemplo, um líder já consegue em alguns momentos dividir o dinheiro que ele tem como pessoa física e o dinheiro que ele tem como integrante da facção criminosa no posto onde ele atua. É aí que nós começamos a assistir, na nossa rotina processual penal, a esses homicídios dentro da própria facção”, analisa a desembargadora Ivana Davi, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Lancha de André do Rap, apreendida em Angra (Polícia Civil do Estado de São Paulo)

Lancha de André do Rap, apreendida em Angra

Polícia Civil do Estado de São Paulo
Lancha

A compra de uma lancha de 60 pés avaliada em R$ 6 milhões levou a Polícia Civil de São Paulo até uma luxuosa mansão em Angra dos Reis, refúgio de milionários no Rio de Janeiro. Na manhã de 15 de setembro de 2019, policiais prenderam André de Oliveira Macedo, conhecido como André do Rap. Considerado um dos maiores traficantes do país, responsável pelo tráfico de cocaína para a Europa, André constava na lista de procurados da Interpol.

Além da embarcação, naquele momento os policiais apreenderam dois helicópteros, um deles avaliado em R$ 7 milhões. Tudo em nome de laranjas. O nome de André do Rap surgiu em 2013 durante as investigações da Operação Oversea, da Polícia Federal, que desvendou um esquema de envio de cocaína para a Europa por meio do Porto de Santos, em que foram apreendidas quase 4 toneladas de cocaína.

André de Oliveira Macedo, o André do Rap (Reprodução)

André de Oliveira Macedo, o André do Rap

Reprodução

Segundo a polícia, André do Rap comandava o tráfico na Baixada Santista e passou a articular as remessas de cocaína do PCC para a Europa.

“Ele era originário de Santos e a profissão dele era, obviamente, dedicada ao tráfico. Ele, em determinado momento, teve um contato com dois italianos, pai e filho, e iniciou um canal, um meeting com essas pessoas. Como estava dentro do PCC e mantinha uma ligação muito estreita com os líderes, ele encomendava com os líderes que providenciassem a logística para trazer a droga até Santos e dali iria pra Europa, e ele se encarregava operando isso”, explica o delegado-geral Ruy Ferraz Fontes.

Na Operação Oversea, a Polícia Federal já tinha apontado a ligação de brasileiros com mafiosos italianos da ’Ndrangheta — organização criminosa da Calábria. A polícia suspeita que a ligação de André do Rap com a máfia italiana era Nicola Assisi e o filho dele Patrick Assisi. Ambos foram presos em Praia Grande, cidade vizinha a Santos, em julho de 2019, acusados pelo governo italiano de integrar a organização criminosa da Calábria e organizar o envio da cocaína da América do Sul para a Europa.

Nicola e Patrick aguardam presos o julgamento do processo de extradição para a Itália que está no Supremo Tribunal Federal (STF).

No ano passado, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu habeas corpus para André do Rap responder em liberdade. Na manhã de 10 de outubro, ele deixou a Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. A decisão foi revogada horas depois pelo ministro Luiz Fux, que mandou André do Rap de volta para a cadeia, mas já era tarde demais. Ele segue foragido.

Rocco Morabito ao ser preso no Brasil (Reprodução)

Rocco Morabito ao ser preso no Brasil

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Outro mafioso italiano ligado à ’Ndrangheta foi preso em maio pela PF em João Pessoa, na Paraíba. Rocco Morabito era um dos traficantes mais procurados do mundo. De acordo com a Polícia Federal, ele também tinha ligações com André do Rap no esquema de envio de cocaína para a Europa. Morabito já havia sido preso no Uruguai em 2017, mas fugiu e veio para o Brasil.

Para o juiz aposentado Walter Maierovitch, especialista em máfias, Morabito escolheu o Brasil para se esconder em razão dos negócios estreitos entre o PCC e as organizações criminosas italianas.

“Basta ver, por exemplo, o último membro que era o corretor da ‘Ndrangheta no Brasil e que já esteve no Uruguai, onde foi preso com mais de quase cem celulares, em hotel cinco-estrelas. Ele fugiu espetacularmente da prisão e veio para onde? Ele veio paro Brasil, que é exatamente no corredor”, assinala Maierovitch.

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Bálcãs

Em 2017, a Polícia Federal deflagrou a Operação Brabo, que desvendou a atuação de uma quadrilha responsável por enviar 8 toneladas de cocaína para a Europa. O esquema envolvia o PCC, a máfia italiana e organizações criminosas da região dos Bálcãs, sobretudo a máfia sérvia. Mais de 100 pessoas foram presas.

“São oriundos das guerras iugoslavas. São ex-militares sérvios. E, com o fim das guerras, criaram os clãs e começaram a praticar crimes pelo mundo inteiro. Alguns deles vieram para o Brasil, constituíram família, tiveram filhos e continuaram praticando crimes, desta vez no território nacional”, explica o delegado da Polícia Federal Fabrizio Galli, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da PF em São Paulo.

As organizações criminosas da região dos Bálcãs, no Leste Europeu, entraram no negócio como intermediários, operadores que vêm ao Brasil para organizar e operacionalizar com o PCC o envio da cocaína para a Europa.

Sérvios, montenegrinos, albaneses, croatas e macedônios já foram flagrados em esquema de tráfico internacional para a Europa em diversas ações da Polícia Federal, como as operações Sofia (2007), Niva e Deserto (2009), Medusa (2010), Monte Polino (2014) e Brabo (2017).

“As informações que a gente tem, o contato que tivemos com outras agências internacionais é que eles dominam os portos na Europa, principalmente em Antuérpia e Roterdã. Então, eles são extremamente necessários para essa ponte entre o Brasil e a Europa”, ressalta Galli.

Tanto na Operação Niva quanto na Operação Brabo, os criminosos do Leste Europeu identificados e presos eram ligados ao Clã Saric. A organização criminosa era uma das mais ativas e violentas da Sérvia, mas perdeu força com a prisão do líder Darko Saric em 2014.

A editora Ivana Jeremic, do portal investigativo Balkan Insight, explica que esse grupo era muito ativo há 20 anos e foi o pioneiro no contato com as organizações criminosas da América do Sul. “O grupo dele [Saric] foi o responsável por fazer essas conexões entre os criminosos dessa área e criminosos da América do Sul”, diz.

Para a jornalista, outros clãs dos Bálcãs já podem estar atuando no Brasil. “Estão trabalhando como uma organização internacional com boas relações e com bons parceiros na Europa e no resto do mundo, o que inclui a América do Sul, que é de onde eles conseguem trazer as drogas e onde as drogas são produzidas e transportadas por diferentes canais pelos portos da Europa, da África e outras partes do mundo também”, assinala.

Major Sérgio Roberto de Carvalho segue foragido (Reprodução)

Major Sérgio Roberto de Carvalho segue foragido

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O major

No ano passado, a Polícia Federal deflagrou a Operação Enterprise, uma das maiores já realizadas no país, que desvendou um esquema de tráfico internacional de cocaína para a Europa. Em três anos, foram apreendidas cerca de 50 toneladas da droga ligadas à organização criminosa no Brasil e no exterior. Também foram confiscados mais de R$ 400 milhões em bens da quadrilha.

Mas o que chamou atenção foi que o líder da organização, Sérgio Roberto de Carvalho, ex-major da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, comandava as operações a partir de Portugal.

Carvalho, que já estava na mira das autoridades europeias, chegou a morar na Espanha e forjou a própria morte para escapar do cerco da polícia. Durante as buscas da Operação Enterprise em Lisboa, os policiais acharam um carro na garagem do prédio onde ele morava com 12 milhões de euros em espécie. Era o carro da fuga. O ex-policial segue foragido.

“Ele já estava num nível tal dentro da traficância internacional que ele mesmo acabava colocando uma boa parte da droga que traficava, distribuindo em território europeu. Então até daí a gente vê a capacidade financeira e logística desse grupo”, explica o delegado da Polícia Federal Sérgio Luís Stinglin de Oliveira, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Superintendência do Paraná.

O papel do PCC termina no momento em que ele entrega a droga

Márcio Christino, procurador do MP-SP

A presença de membros de organizações criminosas brasileiras na Europa já havia sido detectada pelo Ministério Público Paulista na Operação Echelon, em 2018. Em uma interceptação telefônica, foi mencionado um membro do PCC que estaria na Espanha. Mas nada comparado com a atuação de Carvalho.

Para o procurador de Justiça Márcio Christino, do Ministério Público de São Paulo, não há espaço para o PCC ou outra organização criminosa brasileira operar em solo europeu. “O papel do PCC termina no momento em que ele entrega a droga”, analisa.

Para Christino, as quadrilhas europeias seriam uma barreira natural à expansão da facção para o continente europeu.

“Na Europa, esse mercado já está estratificado. Você já tem os territórios, você já tem os seus respectivos "donos", as suas lideranças, suas associações criminosas. Então não tem abertura para o PCC. Até porque o sistema de lá não vai querer pagar, dividir lucro para um terceiro que está chegando de fora”, explica.

O outro lado

Os advogados Anderson Domingues e Áureo Tupinambá, que representam André do Rap, disseram que, no momento oportuno, a inocência do cliente será devidamente comprovada, sendo certo que os processos continuam em andamento nos tribunais superiores. No mesmo sentido, serão demonstradas as nulidades ocorridas na Operação Oversea. Vale destacar que o cliente não tem nenhuma sentença condenatória definitiva em seu desfavor.

Os advogados de Nicola e Partrick Assisi informaram que as respectivas ações penais estão sub judice e em grau de apelação; por ora, essa defensoria técnica nada tem a esclarecer sobre as teses de direito e factuais sustentadas.

As defesas de Rocco Morabito, Fuminho e Darko Saric foram procuradas, mas não se manifestaram.

O advogado de Luiz Carlos da Rocha diz que não existe, nos autos da Operação Spectrum, nenhuma comprovação de que ele atuava no tráfico para a Europa.

No sistema da Justiça Federal do Paraná, não consta advogado na defesa do ex-major no processo da Operação Enterprise. A reportagem procurou advogados que atuaram em outros processos para o ex-oficial, mas eles não se manifestaram.

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Reportagem (textos e vídeos): Tony Chastinet, Thiago Samora e André Azeredo
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