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Tony Chastinet, Thiago Samora, André Azeredo, Érika Rodrigues*, da RecordTV

No começo deste ano, autoridades do Porto de Hamburgo, na Alemanha, ficaram espantadas com a apreensão de 16 toneladas de cocaína que estavam em cinco contêineres vindos do Paraguai. Nunca uma quantidade tão grande da droga havia sido apreendida de uma só vez na Europa. A carga, que foi embarcada no Porto de Buenos Aires e passou pelo Brasil, estava avaliada em R$ 3,4 bilhões — assista ao especial completo no PlayPlus.

Os volumes de cocaína cruzando o oceano Atlântico explodiram nos últimos dez anos. Nesse período, foi registrado aumento de 334% nas apreensões da droga, segundo dados do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA), órgão que monitora o tráfico de drogas na Comunidade Europeia.

Em 2019, foram apreendidas 207 toneladas de cocaína, mas as estimativas das autoridades europeias é que cheguem ao continente anualmente entre 500 e 800 toneladas. No ano passado, o Brasil desbancou a Colômbia e o Equador como os principais pontos de origem da droga apreendida em portos europeus, segundo Laurent Laniel, analista da EMCDDA.

Para Laniel, o mercado da cocaína na Europa está em alta. “O mercado da cocaína, talvez porque a produção tenha aumentado tanto na América do Sul, parece estar cada vez mais aberto porque há muita demanda”, analisa.

Mas como explicar essa quantidade expressiva de cocaína sendo movimentada entre a América do Sul e a Europa? Quais organizações estão por trás desse mercado ilegal bilionário?

A resposta parece ter saído de um roteiro de filme, envolvendo a máfia italiana, veteranos da guerra da Bósnia, cartéis de droga da Bolívia e da Colômbia e organizações criminosas brasileiras, incluindo aí o Primeiro Comando da Capital (PCC).

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EFE/Rodrigo Sura
Origem

No fim da década de 70 e início da década de 80, era da disco music, a cocaína popularizou-se nos Estados Unidos. Foi nesse período que o colombiano Pablo Escobar ficou conhecido. Ele fez fortuna traficando o pó da Colômbia para os EUA. Cresceu demais, desafiou o Estado colombiano, matou autoridades, arquitetou atentados terroristas e acabou morto após uma caçada que mobilizou forças colombianas e norte-americanas.

O fim do poderio de Escobar deu lugar aos cartéis mexicanos, famosos pela violência. Eles assumiram as rotas de distribuição da droga para a América do Norte. Com o mercado americano dominado, para onde crescer? Foi então que os grandes traficantes da América do Sul voltaram os olhos para um mercado tão próspero quanto o dos Estados Unidos: a Europa.

“O que aconteceu foi o seguinte: os cartéis bolivianos experimentaram uma expansão muito grande na produção de cocaína. Entretanto, eles não podem exportar para os Estados Unidos, país que é o melhor e o maior mercado consumidor. Porque, para fazer isso, eles iam ter como obstáculo os cartéis mexicanos e os colombianos, que têm o monopólio da venda da droga nos Estados Unidos”, explica o procurador de Justiça Criminal Márcio Christino, de São Paulo.

Na avaliação do procurador, foi nesse cenário que o PCC entrou na história. A facção criminosa, que já tinha contato com os bolivianos para abastecer os pontos de venda de drogas em São Paulo, viu uma grande oportunidade para entrar no tráfico internacional de cocaína, que gera lucros astronômicos.

“A outra rota de mercado para a cocaína é o mercado europeu. Eles precisavam, portanto, criar essa rota, investir nessa rota, para que ela saísse da Bolívia e fosse em direção à Europa. Para isso, eles buscaram quem era o maior distribuidor de cocaína do Brasil. Quem era que tinha a maior capacidade, o maior território, a maior força, o domínio do tráfico interno? Era o PCC”, explica.

No início dos anos 90, a Europa vivia o boom das drogas sintéticas. Ecstasy, metanfetamina e outros comprimidos eram as drogas mais usadas no continente. De baixo custo e fácil fabricação, esse tipo de entorpecente tinha a distribuição pulverizada em diversos grupos criminosos, o que impedia que alguma organização sobressaísse nesse mercado. Por quase 20 anos, as sintéticas eram as drogas mais populares na região. Foi aí que entrou a máfia italiana na história.

“Graças à geoestratégia e à geopolítica montada pela criminalidade transnacional, pelas máfias, as drogas sintéticas saíram de cena, principalmente porque era duro ter um monopólio, um controle por essas organizações mafiosas, porque droga sintética se faz em fundo de quintal, e qualquer um faz. Então, eles começaram a colocar na droga sintética componentes a mais para dar sempre problema e sempre mortes. Daí, a preferência acabou recaindo na cocaína, que hoje tem um mercado totalmente controlado pelas internacionais criminosas”, explica Walter Maierovitch, juiz aposentado especializado em máfia italiana.

A abertura do mercado europeu não aconteceu por acaso. As organizações criminosas italianas já tinham conexões antigas com os cartéis produtores de cocaína na América do Sul. Nesse momento, os cartéis bolivianos tinham o produto e os mafiosos tinham os clientes. Eles só precisavam de uma maneira de movimentar toneladas do pó branco entre os dois continentes. E como fazer isso? Como todo o comércio internacional de produtos faz há centenas de anos: cruzando o oceano.

Para isso, era necessário estabelecer uma logística que envolvia transportar a cocaína produzida na Bolívia até o embarque em um navio em algum porto da América do Sul e a posterior retirada em algum porto europeu.

Segundo o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, o PCC aproveitou a oportunidade, mas para beneficiar apenas a cúpula da facção.

Você não enxerga o lucro do tráfico internacional porque ele não vai, não retorna em prol da própria organização.

Ruy Ferraz Fontes, delegado-geral da Polícia Civil de SP

“Aproveitando essa logística que eles tinham, os líderes, independentemente da organização, traziam droga também para vender para o seu próprio lucro, e essa droga era vendida para o exterior, abrindo caminho, através dos portos, de forma geral no Brasil inteiro”, analisa.

O delegado explica que esse lucro não aparece na contabilidade da organização criminosa.

“Nós apreendemos no passado, e até em passado recente, a contabilidade da organização. Você não enxerga o lucro do tráfico internacional, porque ele não vai, não retorna em prol da própria organização. Quando você apreende esses grupos de líderes que se encarregam de mandar a droga para fora, você apreende em poder deles helicópteros, lanchas, aviões e outros bens caríssimos, mansões, mas todos destinados ao uso deles, e não destinados ao bem da organização criminosa”, ressalta.

Porto de Antuérpia, na Bélgica (Reprodução)

Porto de Antuérpia, na Bélgica

Reprodução
Os portos

Os portos no mundo inteiro são estruturas gigantescas por onde circula parte significativa da economia. Milhões de contêineres diariamente são carregados e descarregados com produtos de todo tipo que saem do país ou chegam a ele. Nesse cenário, o PCC, por estar baseado em São Paulo, inicialmente escolheu o Porto de Santos, o maior porto do Brasil, para despachar a cocaína produzida nos países andinos para os compradores europeus.

Para isso, era necessário contar com profissionais que já tinham o conhecimento do porto, de seu funcionamento e de como acessar os navios que partiam do Brasil para a Europa. Fontes que participaram de investigações no passado explicam que já existiam quadrilhas que contavam com estivadores que atuavam no contrabando de todo tipo de produto, incluindo cocaína, que naquela época era traficada em quilos.

Esses grupos passaram a trabalhar em parceria com o PCC, que acionou criminosos ligados à facção que já cuidavam do tráfico local na Baixada Santista para a missão. Quem se opôs foi morto ou teve que deixar a região. Essa ascensão sobre a operação do tráfico internacional no Porto de Santos logo passou a refletir nas apreensões de cocaína pelas alfândegas dos portos brasileiros e europeus.

A maioria das apreensões tem como destino o Porto de Antuérpia, acredito que é o número um, e a seguir o de Roterdã.

Richard Neubarth, delegado da Receita Federal

Entre 2013 e 2020, foi registrado aumento de 1.181% nas apreensões no Porto de Santos. Em 2019, foi feita apreensão de 27 toneladas, recorde até o momento. Do lado de lá do oceano Atlântico as coisas não foram muito diferentes. No Porto de Antuérpia, na Bélgica, um dos principais destinos da droga que é despachada na América do Sul, o aumento das apreensões nesse mesmo período foi de 1.293%.

“A maioria das apreensões tem como destino o Porto de Antuérpia, acredito que é o número um, e a seguir o de Roterdã. São portos centralizadores de carga, ou seja, são portos onde a carga chega e de lá segue para outros portos europeus e para outros continentes também. Então eles têm uma importância logística muito grande. Mas, além desses portos, há grandes apreensões em outros portos europeus, como portos da Itália, Espanha, Portugal e Alemanha”, explica Richard Fernando Amoedo Neubarth, delegado da Alfândega da Receita Federal do Porto de Santos.

Segundo o relatório da United Nations Office on Drugs and Crime (Undoc), já foi detectada mudança de rota com aumento de apreensões nos portos de Pontevedra, Valência e Bilbao, na Espanha; Livorno, na Itália; e Bremerhaven e Rostock, na Alemanha. No Brasil, a Receita Federal registrou no ano passado as maiores apreensões nos portos de Santos, Paranaguá e Salvador.

Contêiner é transportado no Porto de Santos (Amanda Perobelli/REUTERS-23/09/2019)

Contêiner é transportado no Porto de Santos

Amanda Perobelli/REUTERS-23/09/2019
Embarque

O grande salto nas apreensões no Porto de Santos aconteceu em 2016. Nesse ano foram apreendidas 10,6 toneladas de cocaína, quase dez vezes mais do que no ano anterior. Por coincidência, foi nesse mesmo ano que o PCC consolidou a presença no Paraguai, com a execução de Jorge Rafaat.

Rafaat, segundo a polícia, era um traficante que dominava o tráfico de cocaína na fronteira do Brasil com o Paraguai. Como ele teria resistido a fazer negócios apenas com o PCC, acabou morto em uma ação violenta no centro de Pedro Juan Caballero. Depois da morte de Rafaat, a facção dominou o tráfico na região de fronteira.

A fronteira do Brasil com o Paraguai é estratégica para a movimentação da cocaína que sai da Bolívia em direção ao Brasil, porque é onde ficam fazendas que integram o plano logístico da organização criminosa.

Traficantes operam uma rede logística complexa para escoar a droga para a Europa (Reprodução)

Traficantes operam uma rede logística complexa para escoar a droga para a Europa

Reprodução

Os aviões com cocaína que saem do país vizinho evitam sobrevoar o espaço aéreo brasileiro por causa do risco de ser abordados pela Força Aérea Brasileira e, em última instância, até abatidos. Então, os pilotos seguem até o Paraguai, onde a droga é descarregada em fazendas próximo à fronteira. Depois, a cocaína é colocada em caminhões, carros ou helicópteros e geralmente segue até o Brasil.

A apreensão recorde de cocaína relatada no início da reportagem mostra que a cocaína saiu do Paraguai. A carga seguiu por rio até Buenos Aires e de lá até a Europa. É uma rota incomum, mas que vem aumentando. As autoridades paraguaias mantêm silêncio sobre essa história. No entanto, especialistas no assunto suspeitam que o PCC esteja por trás desse carregamento.

“Neste momento nós, como país, somos a principal plataforma da logística dos envios de cocaína para a Europa, mas também para o Brasil e para a Argentina. Há algum tempo que o PCC e outros grupos, mas sobretudo o PCC, tem instalado o seu centro logístico aqui no país devido à falta de controle, principalmente do espaço aéreo”, assinala o professor Juan Alberto Martens Molas, do Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales del Paraguay.

Drogas - Porto de Santos - Operação (Divulgação/PF)

Drogas - Porto de Santos - Operação

Divulgação/PF

Segundo investigações recentes da Polícia Federal, quando a cocaína chega ao Brasil, geralmente fica armazenada em cidades perto dos portos de onde será embarcada para a Europa. Quando há sinalização de que o contêiner e o navio já foram selecionados, a carga é levada até a região do porto, onde é colocada no navio de várias maneiras — a mais comum é a conhecida como rip-off: o contêiner é aberto, a droga é colocada em mochilas junto da carga e depois o contêiner é fechado com outro lacre.

O Brasil é o principal escoador, a principal plataforma de remessa de drogas, principalmente a cocaína, que é produzida nos países vizinhos aqui da América do Sul, produto que é remetido para a Europa via portos e com a estrutura de logística do Brasil.

Luís Flavio Zampronha

"Então, ao longo dos anos a Polícia Federal vem adquirindo conhecimento, vem mapeando a forma de atuação dessas organizações criminosas, e cada vez mais nós conseguimos entender a lógica comercial, a estrutura de logística e as pessoas envolvidas nessa atividade ilegal”, explica o delegado Luís Flávio Zampronha de Oliveira, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal.

Com tanta cocaína sendo movimentada do Brasil para Europa e tanto dinheiro entrando nas contas da facção, era natural que alguns nomes de expressão se destacassem. A vida de luxo começasse a ser exibida por meio de iates, helicópteros e mansões, e fortunas aparecessem da noite para o dia. Da mesma forma, o dinheiro e o controle da exportação da cocaína já provocaram mortes e racha na organização criminosa. É o que vamos contar na parte 2 da reportagem.

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Vice-presidente de Jornalismo: Antonio Guerreiro
Diretores de Jornalismo: Aline Sordili, Clovis Rabelo, Rogério Gallo, Thiago Contreira e
Marcelo Trindade
Diretora de Planejamento Transmídia: Bia Cioffi
Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo
Reportagem (textos e vídeos): Tony Chastinet, Thiago Samora e André Azeredo
Estagiária: Erika Rodrigues
Imagens: Mario Falcon e Jorge Oliveira
Edição de Texto (vídeo): Leandro Caló
Editoras-executivas Fala Brasil: Juliana Godoy, Aline Dallago e Renata Cornet
Apoio: Márcio Neves
Chefe de redação: Claudia Marques e André Caramante