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Eduardo Marini, do R7

Natan Juvêncio, pernambucano, 48 anos, metalúrgico de profissão, vendedor por opção, mora na Vila Guilherme, um dos mais agradáveis e bem localizados bairros de classe média da zona norte de São Paulo.

Divide seu espaço com o filho Thiago, de 21 anos, e Sansão, gato de movimentos calmos e pelo impecavelmente limpo, fofo e bem cuidado (assista filme sobre Juvêncio nesta reportagem). Vez por outra, Sansão recebe a visita do amigo Bolsonaro, gato malhado em preto e branco batizado por Juvêncio com o nome do presidente da República, cujo dono o próprio dono do pedaço desconhece.

Juvêncio gosta de cozinhar. Costuma receber a namorada após a jornada de trabalho de ambos, para jantar e curtir a noite. No final da tarde de visita da reportagem do R7 Estúdio, aromas atraentes escapavam das panelas com feijão e cozido de carne mexidas pelo chef do pedaço. A namorada, que segundo ele chegaria dali a pouco, deve ter jantado bem.   

Natan Juvêncio mora na rua. Com Thiago e Sansão.

Mais exatamente numa barraca de lona montada na sombra do corredor de árvores que separa o Córrego Carandiru da Avenida Moysés Roysen, um dos acessos ao shopping Center Norte, onde o filho realiza trabalhos.

Separado, longe há dez anos da casa em que vivia com a ex-mulher em Mogi das Cruzes, sem qualquer dependência de cigarro, álcool ou droga, Natan engrossa, com o filho, uma legião de brasileiros turbinada a índices preocupantes nos últimos cinco anos, pelos efeitos da crise econômica: a de moradores e pessoas em situação de rua.

As várias motivações que levam um indivíduo a viver numa calçada, esquina, beira de córrego ou nos espaços hostis de pontes, viadutos e até cemitérios urbanos levaram os serviços públicos de assistência social a ampliar o conceito de morador da rua. Hoje, a definição adotada é a de pessoas em situação de rua, algo que engloba várias realidades.

Desemprego motivado pela crise fez aumentar a população em situação de rua (Edu Garcia)

Desemprego motivado pela crise fez aumentar a população em situação de rua

Edu Garcia
Falta de opção

A primeira delas é a do morador de rua tradicional, que faz de teto o céu por quatro motivações básicas: desentendimentos com a família, conflito familiar motivado por dependência de droga, falta de dinheiro para custear espaço para viver e, em menor escala, opções pessoais em função de decisões e visões individuais de mundo.

A esses casos, somam-se aqueles em que a pessoa tem lugar para morar, mas sai de casa e passa longos períodos, às vezes semanas, dormindo nas ruas – sobretudo em cidades grandes e médias. Na quase totalidade dos casos, isso ocorre por falta dinheiro para se alimentar e pagar passagens diárias de ida e volta para casa.

Deixam seus lares em busca de emprego ou de trabalhos esporádicos e passam dias se alimentando graças a projetos sociais, doações de ONGs ou de particulares.

“Uso um pouco de droga e paro. E volto, e paro... Mas vou parar de vez, moço”

Luis Antônio Barbosa da Silva, 46 anos

Como Luis Antônio Barbosa da Silva, 46 anos, em situação de rua nos arredores do Mercado Municipal da Cantareira e freguês assíduo das quentinhas distribuídas gratuitamente há 30 anos no bonito trabalho da equipe dos paulistanos Kaká Ferreira e José Amato, da ONG Núcleo Assistencial Anjos da Noite.

A convite da ONG, a reportagem do R7 Estúdio acompanhou uma distribuição, na madrugada de um sábado. “Uso um pouco de droga e paro. E volto, e paro... Mas vou parar de vez, moço”, prometeu Silva como se quisesse falar para ele próprio ouvir.

Há também o morador de outras localidades que desembarca num determinado lugar para passar um tempo e, por um motivo ou outro, fica sem recurso e opta pela vida na rua até decidir voltar à cidade natal.

O metalúrgico Natan Juvêncio mora com o filho Thiago e o gato Sansão (Arte R7)

O metalúrgico Natan Juvêncio mora com o filho Thiago e o gato Sansão

Arte R7

Os dois últimos são casos típicos dos mais recentes moradores em situação de rua incorporados ao universo de tentativa de proteção. Na prática, suas necessidades ligadas à alimentação, saúde, proteção contra temperaturas altas e baixas e higiene são, do momento em que acordam ao que dormem, as mesmas de quem vive nos cantos de calçada sem teto ou alguém à espera em algum ponto. Por isso, a ação atualizada dos serviços sociais na área envolve todas essas situações.

Em 2018, os agentes sociais do município de São Paulo fizeram contato com 105,3 mil pessoas nas ruas da cidade, informa a página da Prefeitura na internet. Entre eles, 260 estrangeiros, nascidos em outras cidades paulistas e migrantes vindos principalmente da Bahia, de Minas Gerais, de Pernambuco e do Paraná. Um número 66% maior do que o de 2016 e 88% acima do total de 2015.

Desemprego estrutural

Os assistentes sociais notaram uma mudança importante em 2018. Os desentendimentos e enfrentamentos familiares, tradicionalmente os principais fatores de geração de pessoas em situação de rua, foram ultrapassados pelos efeitos da crise econômica e do alto desemprego, citados como as explicações mais frequentes pelas pessoas abordadas nas ruas da capital paulista.

“Questões econômicas, emocionais, familiares e individuais costumam se combinar nesses casos, mas fica claro que o aperto econômico dos últimos anos aumentou o volume e alterou o perfil majoritário de motivação das pessoas nas ruas. São Paulo é uma cidade caríssima e 60% das pessoas em situação de rua sequer completou o fundamental. Essa combinação, em um momento desses, diz muita coisa”, identifica a coordenadora de Políticas para a População em Situação de Rua do município de São Paulo, Giulia Patitucci.

Além do desemprego estrutural, ativo principalmente sobre indivíduos com extrema dificuldade para retornar ao mercado ou, quando voltam, conseguir vagas semelhantes às ocupadas no passado, Giulia destaca outros pontos negativos no cenário.

Próximo relatório está prometido para 2020 (Arte R7)

Próximo relatório está prometido para 2020

Arte R7

“Hoje, vemos nas ruas de São Paulo e do País um crescimento muito grande, fora da média, da população LGBT, por um misto de questões financeiras e falta de aceitação familiar. Além disso, a crise passou a levar famílias inteiras, e não apenas indivíduos, às calçadas. Grupos familiares inteiros, com crianças, bebês e até animais. Há também o envelhecimento nas ruas, pessoas com mais de 15 anos sem teto, o que também é grave”, enumera a coordenadora.  

O Brasil tinha 101.854 pessoas vivendo em situação de rua em 2015, atesta o mais recente levantamento nacional, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Com a crise econômica e o aumento do desemprego, o total de 2019, ainda não apurado oficialmente, será certamente maior.

Lava Afago: lavanderia e atendimento social
Lucas Brant: um abraço no bairro de Campos Elíseos (Divulgação/SP/Instituto Ninho Social)

Lucas Brant: um abraço no bairro de Campos Elíseos

Divulgação/SP/Instituto Ninho Social

O paulistano Lucas Caldeira Brant de Tolentino é filho de família de classe média alta criado no bairro das Perdizes, em São Paulo. Aos 29 anos, numa metade de madrugada fria de 2013, ‘invadiu’ o quarto da mãe à procura de mais um cobertor para segurar a onda de uma noite do inverno paulistano que, como bem se sabe, costuma mandar pesado.

Caldeira Brant levou da mãe um leve sermão por não ter se preparado corretamente. E também pela necessidade de reconhecer, e de ser eternamente grato, por poder se agasalhar a contento em casa.

Dois dias depois, ele ouviu dela própria, no sofá da sala, a leitura de uma chamada de primeira página de jornal que viria a mudar definitivamente sua trajetória: “Frio mata quatro moradores de rua na noite em São Paulo”. A noite em questão era exatamente aquela em que Caldeira Brant buscara o segundo cobertor no quarto da mãe.

Instituto Ninho Social: apoio psicológico, jurídico e assistência social (Divulgação/Andy Costa)

Instituto Ninho Social: apoio psicológico, jurídico e assistência social

Divulgação/Andy Costa

A partir daquele dia, ele seguiu um caminho que o levou a ser reconhecido como um dos mais ativos e premiados agentes sociais do Brasil. Primeiro, idealizou, com amigos, o projeto Entrega por SP, que durante anos promoveu ações de alimentação, apoio psicológico, jurídico, de assistência social profissional gratuitos a moradores e pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo.

O Entrega por SP evoluiu para a ONG Instituto Ninho Social, projeto que, segundo ele, nasceu para “quebrar barreiras sociais entre os que possuem e os que não possuem um teto, garantindo uma cidade mais humana para todos, em que pessoas em situação de vulnerabilidade social extrema tenham voz, dignidade, direitos respeitados e não sejam consideradas invisíveis”.

Lucas Brant exibe o prêmio Creator Awards (Divulgação/SP/Instituto Ninho Social)

Lucas Brant exibe o prêmio Creator Awards

Divulgação/SP/Instituto Ninho Social

A sede do Ninho Social fica no número 699 da Alameda Cleveland, centro de São Paulo. É lá que Caldeira Brant e seu time lançarão, em fevereiro próximo, a próxima cartada dessa sequência elogiável: o Projeto Lavanderia.

Será um espaço com cinco lavadoras e secadoras industriais, doadas por empresas sensibilizadas com a iniciativa, que terão funcionamento liberado para qualquer pessoa em situação de rua lavar, higienizar e secar suas roupas e tecidos gratuitamente das 7h30 às 18h. À noite, no contra turno, o maquinário será usado em serviços comerciais para empresas e particulares. A renda será toda revertida no sustento do projeto.

Ação social Entrega por SP (Divulgação/Andy Costa)

Ação social Entrega por SP

Divulgação/Andy Costa

Não é só. “Além do serviço de lavanderia, eles poderão tomar banho e vestir suas roupas limpas em um dos oito banheiros que estão sendo construídos no espaço e, assim, seguir para o trabalho ou qualquer outro compromisso com dignidade”, empolga-se Caldeira Brant. “Teremos ainda cursos de facilitação profissional em marcenaria, costura, pintura e outras atividades. E assistência psicológica, social, jurídica e profissional. Tudo sem custo para essa turma que sofre sem teto nas ruas e calçadas”, acrescenta o empreendedor.

A adaptação da sede do Ninho para a instalação do Projeto Lavanderia é liderada pela engenheira e projetista Natália Souza. A reforma segue princípios sustentáveis, com tijolos não preparados em forno a carvão e outros materiais ecológicos.

Capacitação profissional é um dos  ideais (Divulgação/SP/Instituto Ninho Social)

Capacitação profissional é um dos ideais

Divulgação/SP/Instituto Ninho Social

Um dos desejos de Natália e Caldeira Brant é o de utilizar contêineres na montagem dos banheiros e pontos de atendimento. Estão à procura de grupos que possam doar as peças ou empresas que queiram fornecê-las ao projeto. “Não é preciso temer: os contêineres ficam lindos e completamente seguros quando instalações e adaptações são feitas com responsabilidade e competência – e a Natália é especialista na utilização desses espaços”, garante ele.

“Além disso, são sustentáveis porque evitam o trabalho equivalente em alvenaria. Por isso, torcemos para que apareçam parceiros sensibilizados com a causa das pessoas que dormem e vivem na rua”, espera Caldeira Brant. A página do projeto é facebook.com/projetolavanderia. Uma ação que só trará honras a todo parceiro.

Dados divergentes

O último censo municipal sobre o tema em São Paulo, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) com dados de 2015, registrou 15.905 indivíduos em situação de rua na cidade (leia quadro nesta reportagem).

Importante ressaltar que o censo municipal paulista é realizado a cada quatro anos. A próxima edição deveria, em tese, ser concluída ainda em 2019, mas o cronograma atrasou. O Instituto Qualitest, vencedor da licitação, fará o censo.

“Pode anotar e publicar sem pudor: a cidade de São Paulo tem pelo menos 40 mil pessoas em situação de rua”, afirma o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, ele mesmo um ex-ocupante das calçadas no centro da capital paulista.

O número oficial de pessoas abordadas pelos agentes e o de consideradas oficialmente moradores de rua são sempre diferentes. Em 2015, ano dos 15.905 registrados pelo último censo municipal paulistano, os assistentes entraram em contato com 56,1 mil pessoas nas ruas.

Os números da população de rua só crescem (Arte R7)

Os números da população de rua só crescem

Arte R7

No próximo relatório, os agentes certamente encontrarão o perseverante, educado e afável Natan Juvêncio e seu filho Thiago. O pernambucano contará, entre outras coisas, que só consegue dormir todos os dias após a uma da manhã, por causa do barulho dos carros passando ao seu lado e ao nível de seus ouvidos quando se deita.

Dirá também que levanta às cinco da manhã, mas permanece na barraca de plantão até dez da manhã, atento e forte na proteção de Sansão, da barraca, do colchão, do fogareiro e das latas com sal, tempero, grãos, macarrão e a indispensável farinha.

“Se saio antes, não encontro nada quando volto: o pessoal do rapa da Prefeitura reboca tudo”, conta. Como ele próprio disse e se adiantou, é vendedor – do que consegue recolher nas ruas e rebocar, como diz, a ferros-velhos e depósitos para trocar por um troco.

Natan Juvêncio tem uma vizinha. O pedaço à sombra das árvores do corgão de Julia (nome fictício a pedido da entrevistada), 45 anos, fica logo à frente, um pouco mais próximo da Marginal do Tietê. Adotada e criada por uma família em Itapevi, na região metropolitana de São Paulo, ela optou pela rua há 11 anos.

Julia vive em situação de rua há 11 anos (Edu Garcia)

Julia vive em situação de rua há 11 anos

Edu Garcia

Julia vive de faxinas caprichadas em casas e apartamentos das redondezas, pouco frequentes neste momento. Luta contra a fumaça dos carros e a papelada trazida pela ventania para manter seu pedaço de chão em padrão de higiene próximo ao oferecido às patroas.

Pede para não ser identificada por temor de ser criticada pelo par de filhos – é mãe de uma moça de 23 e um rapaz de 21 anos, que não vivem com ela.

Apesar dos panos, toucas e disfarces para não ter o rosto inteiro revelado à primeira vista, Julia oferece biscoito aos visitantes e pede ao repórter fotográfico Edu Garcia um tempo para lavar o rosto “e a foto ficar bonita".

Levanta a garrafa plástica com água limpa e derrota o suor da face com a dignidade feminina em grau máximo diante da dupla de homens sensibilizados. Mulher é mulher em qualquer canto e situação – inclusive a de rua.

Fernando divide com seis colegas o espaço de um galpão embaixo de um viaduto (Arte R7)

Fernando divide com seis colegas o espaço de um galpão embaixo de um viaduto

Arte R7

As esquinas e ruas guardam também histórias de menor teor de lirismo. Como a de Fernando Gonçalves de Moraes, 40 anos, morador com mais seis colegas de um galpão embaixo do viaduto que divide os bairros da Barra Funda e Pacaembu, desocupado recentemente por uma empreiteira. Acima do teto, o movimento de carro na pista corre solto.

Moraes era traficante. Em 2003, foi preso por ter feito o serviço (“apagado, sabe como?”) em um elemento que teria lhe roubado droga.

"Quem não é visto não é percebido, tá ligado?"

Fernando Gonçalves de Moraes, 40 anos

Não explicou em que circunstância desapegou-se do xilindró, mas perseguido por grupos que desejavam “acertar as contas daquela parada”, perambulou por Brasília, Goiânia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, até desembocar em São Paulo e se instalar na comunidade da Barra Funda.

“Aqui a gente conserva tudo limpo, cuida na moral. E depois, quem não é visto não é percebido, tá ligado?”. Opa, totalmente ligado, irmão. Totalmente...

Manter os (poucos) pertences é o maior desafio para quem mora na rua (Edu Garcia)

Manter os (poucos) pertences é o maior desafio para quem mora na rua

Edu Garcia
O desconfiado do Minhocão

No centro de São Paulo, um jovem de olhos verdes, deitado entre as pilastras do Minhocão, excrescência de concreto armado sobre a Rua Amaral Gurgel, uma das mais simbólicas da região, tenta explicar porque veio de Minas Gerais quando é interrompido pela namorada que, irritada, pede para que ele interrompa a conversa.

Contaminado pela valentia da companheira, o rapaz provoca: “você pensa que sou um qualquer só porque estou embaixo desse viaduto? Sei que você me conhece”. O repórter pede desculpas mas insiste, com sinceridade absoluta, não saber de quem se trata. O rapaz não se conforma: “está vendo? Jornalista gosta de enganar. Mas você vai ver só quando eu estourar, vai ver...”.

Nos despedimos rapidamente do casal desejando sucesso ao moço no futuro. A pressa era justificada: àquela altura, tornava-se certeza a desconfiança de que um grupo de jovens que nos observava atento da calçada cultivava a intenção de, digamos assim, confiscar o equipamento fotográfico de Edu Garcia.

Na saída, Edu ainda teve calma e habilidade para alertar um casal de turistas que fotografava placidamente o movimento e os grafites da Amaral Gurgel.

A rua não está para peixe.

Julia é faxineira, mas as oportunidades ficaram cada vez mais escassas (Arte R7)

Julia é faxineira, mas as oportunidades ficaram cada vez mais escassas

Arte R7

Reportagem: Eduardo Marini
Edição: Tatiana Chiari
Fotos: Edu Garcia
Arte: Sabrina Cessarovice
Apoio: Cleide Oliveira
Vídeo: Márcio Neves
Sonorização: Luciano Gonçalves