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Kaique Dalapola e Márcio Neves, do R7

Cercada por canaviais e a quase 500 quilômetros de São Paulo, a pequena área urbana do município de Florínea, na região de Assis, abriga cerca de 2.600 moradores, conforme a estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) para este ano.

A oito quilômetros em uma linha reta da pracinha central, outros 1.800 homens, conforme a SAP-SP (Secretaria de Administração Penitenciária), são cercados por muros altos e olhares atentos no presídio local.

Os presos da Penitenciária de Florínea dividem com a população da cidade a mesma delegacia de polícia e o mesmo hospital. E isso preocupa apenas uma das partes: a gestão municipal.

Pelo que disse à reportagem, por parte do presídio, não há receio nenhum. "O tamanho do município é indiferente para questões penitenciárias", afirmou Carlos Tiago Vidal, diretor da unidade.

O presídio de Florínea é considerado um "seguro". Isso significa que recebe apenas membros de facções rivais ao PCC (Primeiro Comando da Capital) ou presos que, por algum motivo, não podem ficar em presídios dominados pela facção paulista.

Para a população, faz pouca diferença quem domina a unidade prisional. Desde o período de construção da penitenciária, inaugurada em fevereiro de 2016, inevitavelmente a cidade sofre grandes impactos. Positivos e negativos. Nas ruas e nos sentimentos.

"No início, o povo ficava meio assustado do presídio ter vindo para cá. Mas hoje não tem muita diferença para cidade aqui, só povoou mais. Antes tinha aquele medo de ter assalto, ter isso ou aquilo, mas não teve nada disso", diz o professor aposentado Mário Leme Goulart, 62 anos.

Após a implantação do presídio, alguns familiares de presos alugaram casas no município para facilitar a ida para as visitas nos finais de semana. Outros viajam para a região e ficam hospedados em Florínea ou em municípios vizinhos.

Quem vem morar aqui também é um povo sofrido. Ninguém quer um familiar preso

Mário, professor aposentado

A convivência dos antigos com os novos moradores diminuiu muito o medo criado durante a construção do presídio. Segundo o servidor público aposentado Valmir Moreira Santos, de 68 anos, "graças a Deus está indo bem" o relacionamento. "A gente vê as pessoas de fora, família de presidiários e ex-presidiários, morando aqui na nossa cidade, mas está comportando bem. Nossas autoridades estão sendo competentes para ver tudo isso e nossa saúde está indo", afirma Valmir.

Os dois moradores falam com propriedade. Sempre moraram na cidade. O professor nasceu apenas três anos depois de a cidade ser fundada e o servidor público chegou na terra antes mesmo da emancipação. Mário acredita que o comércio local e a locação de imóveis melhoraram muito por causa da chegada dos novos moradores. Já Valmir faz uma ressalva: "Mas é um presídio, né!?"

O servidor público destaca que por melhor que seja a relação e que o histórico demonstre que os familiares dos presos não levam perigo ao município, existe involuntariamente "um pouquinho de medo, porque não se sabe se tem uma rebelião ou uma coisinha ou outra no presídio".

Antes da chegada da penitenciária, não existia nenhuma possibilidade de dilema. A pacata cidade não soltava nem faíscas para qualquer tipo de discussão ou dor de cabeça aos moradores.

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'Quando eu cheguei aqui, isso tudo era mato'

A emancipação de Florínea aconteceu no final de 1953. Antes disso, a vila batizada como "Pântano" recebia uma população rural que via a movimentação na estrada que dá acesso à Londrina, no Paraná.

Com uma colher de pedreiro na mão e muita história para contar, Valmir constrói a casa da filha, que vai expandir ainda mais a cidade, e relembra sua infância nas fazendas da região, na década de 1950.

"Quando cheguei aqui tinha muitos fazendeiros. Todas as fazendas com colônias, e tinha as igrejas, os campos de futebol. Isso era tudo mato. Aos domingos era muito bacana, porque os caras que gostavam de jogar se reuniam. E no sábado era o bailão, com o forrozão que todo mundo gostava", lembra Valmir.

Na época, sequer sabiam o que era rua pavimentada. Não existia rede de esgotos e a coleta de lixo era feita com "uma mulinha com a carrocinha", conforme relata o servidor público. De acordo com ele, a população local da época era bem maior do que a atual.

As grandes fazendas com colônias concentravam muitas pessoas. A criação do Estatuto da Terra, em 1964, no entanto, causou uma reestruturação na cidade. Forçados a se submeter aos direitos da população, os fazendeiros não poderiam mais ter colônias à disposição.

Com isso, a população de Florínea começou a diminuir. Os moradores migravam das fazendas florinenses para outras regiões maiores em busca da sobrevivência. E o município passou a ter organização e autonomia política.

Atualmente, o município está estabilizado com a pequena população e consolidada com o que tem a oferecer para os visitantes, seja para ir ao presídio ou para desfrutar as riquezas naturais da região.

Para Mário, a cidade é ideal para quem busca sossego e deseja viver em um local com clima familiar, onde todos se conhecem.

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Arte/R7

As recomendações do prefeito Paulo Eduardo Pinto, o Duda, são os quatro condomínios e o Centro Social de Cabos e Soldados da Polícia Militar que ficam na cidade. O lazer ganha destaque por ser margeado pelo rio Paranapanema.

"A gente recebe muitos turistas, de outros países e outros Estados, principalmente relacionados às pescas esportivas. Quem gosta de estar à beira do rio, aqui é o local", diz Duda.

Valmir ajuda na construção da casa da filha (Márcio Neves/R7)

Valmir ajuda na construção da casa da filha

Márcio Neves/R7

Estou há 68 anos neste município e só tenho alegria

Valmir, servidor público aposentado

O celeiro de inimigos
Penitenciária fica à margem de rodovia (Márcio Neves/R7)

Penitenciária fica à margem de rodovia

Márcio Neves/R7

Embora tenha apenas três anos de existência, a Penitenciária de Florínea já coleciona algumas histórias. A primeira foi logo depois do término de sua construção. Inesperadamente os poços artesianos secaram e o presídio precisou ficar parcialmente inabitado.

A volta gradativa coincidiu com a explosão de uma guerra entre facções criminosas nas ruas e no sistema carcerário, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste do país. As batalhas, que colocavam PCC e CV (Comando Vermelho) para medir forças, preocupavam as autoridades de todo país. Os Estados se mobilizavam para encontrar formas de impedir rebeliões em seus presídios.

Em São Paulo, o Ministério Público e a Secretaria de Administração Penitenciária usaram o presídio de Florínea como um dos escudos para se proteger da guerra entre as facções paulista e carioca.

"Fizemos uma seleção de presos que estavam em São Paulo e que se declaravam do Comando Vermelho ou os que eram oriundos do Rio de Janeiro e corriam risco por conta disso. Para evitar um banho de sangue aqui no Estado, separamos esses presos e isolamos em Florínea", explica o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, responsável pelas investigações de facções criminosas no Estado.

Esses presos ficaram na Penitenciária de Florínea até o governo paulista fechar negócio com o Governo do Rio de Janeiro para trocar os detentos. Os possíveis membros do PCC detidos em presídios fluminenses eram mandados para São Paulo e os supostos integrantes do CV voltaram para o RJ.

Para Gakiya, esse cenário diminui o risco de possíveis tentativas de resgates dos detentos de Florínea. No entanto, aumenta a chance de possíveis confrontos entre presos, porque "é muito comum os inimigos acabarem se encontrando lá dentro".

Os gestores do presídio e da cidade tentam andar juntos para que essas inimizades e possíveis confrontos fiquem restritos aos muros da penitenciária.

Relação parceira
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Arte/R7

Tanto a administração da penitenciária como a gestão do município classificam a relação entre as duas partes como parceira. Mesmo o discurso, algumas vezes, não estando muito alinhado.

O diretor da unidade afirma que "a relação com a prefeitura municipal e a polícia da cidade é excelente". Vidal ressalta que sempre que a penitenciária precisa dos serviços da cidade é "muito bem atendida".

Esse bom atendimento, no entanto, pede socorro. De acordo com Duda, a cidade trabalha com dois policiais por turno e, quando a penitenciária solicita apoio do município, desloca os servidores.

A penitenciária costuma pedir ajuda à prefeitura quando algum preso vai ser atendido no hospital. Além de obrigatoriamente disponibilizar o hospital, os policias precisam fazer a escolta do detento — juntamente com agentes penitenciários.

"Nesse momento [da escolta] a sensação não é das melhores. Então a gente espera que logo a Secretaria de Segurança Pública resolva esse problema e invista um pouco mais no policiamento dentro do município", afirma o prefeito.

A SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) afirma que a área é atendida pela terceira companhia do 32º Batalhão do Interior e, quando necessário, recebe o apoio do oitavo Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) e da Força Tática.

Ainda em resposta à preocupação do prefeito, a pasta da Segurança disse que "as escoltas de presos são previamente agendadas e realizadas por viaturas específicas, sem qualquer prejuízo ao policiamento local". E quando é uma escolta emergencial, o patrulhamento no município é realizado por outras equipes.

Por outro lado, Vidal afirma que "não há fatores provenientes do município de Florínea que afetem a segurança desta unidade prisional". O diretor relativiza o fato de o presídio ter dois presos para cada três moradores da cidade e diz que o andamento da unidade independe do tamanho do município.

A parceria forte mesmo entre Duda e Vidal acontece, sobretudo, nas conversas informais. "Sempre existe aquela conversa de esquina, que diz que aconteceu alguma coisa no presídio, pergunta se é verdade que tem uma rebelião ou escapou um detento e a gente liga para o diretor, que prontamente atende", diz Duda.

Saúde
UBS do município (Márcio Neves/R7)

UBS do município

Márcio Neves/R7

Os florinenses esperavam que a única participação direta do presídio fosse a presença dos familiares vivendo na cidade. Mas a construção da penitenciária faz com que o atendimento aos presos atropele os munícipes.

O diretor da Penitenciária de Florínea, no entanto, não consegue enxergar esses impactos na rotina do município. Em entrevista por e-mail (única forma como aceitou responder às questões), Vidal diz desconhecer "qualquer episódio que tenha afetado a população florinense".

Um dos pontos que mais evidencia a interferência acontece dentro da única unidade de saúde de Florínea. O prefeito relata que a população sob os cuidados do município praticamente dobrou (somando os presos), mas o repasse para a cidade não sofreu as alterações no mesmo ritmo.

"Então isso aí pesa para o orçamento, tendo em vista que é um município pequeno, com orçamento baixo. Isso que é a maior dificuldade, tendo em vista que nós não recebemos nada por essa população carcerária", explica Duda. 

A unidade hospitalar tem apenas uma médica, a doutora Beatriz Belavenuti Delantonia, que fica responsável por examinar a população florinense e a carcerária. É preciso se desdobrar muito para isso.

"Nós temos um leito na sala de emergência e a nossa demanda dos munícipes acaba comprometendo. Por vezes, a penitenciária chega com emergência e o leito já está ocupado e isso dificulta um pouco o nosso trabalho, o monitoramento e assistência ao paciente", diz Beatriz.

Os presos que chegam para ser atendidos têm que ter prioridade total. Isso significa que, mesmo se alguém estiver sendo atendido, precisa interromper para o preso ser examinado.

Essa preferência também não altera em nada a paciência dos moradores. Está tudo bem. No entanto, principalmente pela falta de conhecimento, o medo de entrar no hospital saudável e sair com alguma doença é o que incomoda os florinenses.

"A maioria dos pacientes tem receio de fazer inalação aqui, com medo de a máscara usada nele seja a mesma usada em um setenciado, receio das agulhas. A população leiga não sabe como é feita a esterilização do material", afirma a médica.

A preocupação dos moradores tem números. Os dados levantados pela Prefeitura de Florínea, aos quais o R7 teve acesso, apontam que a penitenciária tem 11 presos com tuberculose, além de 67 com HIV em tratamento e outros cinco ainda sem tratamento.

Segurança
DP do município (Márcio Neves/R7)

DP do município

Márcio Neves/R7

As duas viaturas — uma da Polícia Militar e outra da Civil — que passam de vez em quando nas ruas do município mostram que a segurança está longe de ser um problema para os cidadãos.

Os policiais se dividem entre Florínea e as cidades vizinhas. Mas é tranquilo, dificilmente acontece algum crime por lá. Quando se trata de homicídio, a média é de uma vítima a cada seis anos.

Entre 2001 e 2019, dados disponibilizados pela SSP-SP, uma pessoa foi assassinada no município em outubro de 2009, duas em uma mesma ocorrência de 2013 e, a mais recente, em maio deste ano.

O diretor da penitenciária também diz estar tranquilo quanto à segurança da unidade. Vidal afirma que o presídio tem "seus mecanismos e estrutura, voltados para qualquer porte de cidade, seja pequena, média ou grande". Por isso, não existe temor de a falta de estrutura municipal apresentar um risco de ataque à unidade carcerária.

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Arte/R7

Uma autoridade local, que prefere o anonimato, explica sobre o homicídio que aconteceu no município neste ano: "a cidade aqui é tranquila, não tem nada de crime, mas se matam alguém lá dentro do presídio, tem que ser registrado aqui e cai para a estatística da cidade".

Ele disse que, além da morte que aconteceu em maio, um outro caso segue sendo apurado para saber se é outro homicídio, suicídio ou mortes de causas naturais.

Segundo o prefeito do município, o sentimento dos moradores é dividido em três períodos: antes da ideia de Florínea ter uma penitenciária, o período de construção e a atualidade.

"A gente tinha uma sensação de segurança muito maior antes do presídio. Durante a construção, no primeiro e segundo anos, aquela sensação de que a qualquer momento você poderia ter uma surpresa, com uma rebelião. Com o tempo, a população foi se acostumando e adequando e hoje muito pouco a gente tem essa sensação", pontua Duda.

Mesmo com a superação do sentimento inicial, o prefeito afirma que a cada notícia de qualquer problema nas penitenciárias vizinhas, imediatamente vem o medo de também acontecer em Florínea.

O misto de sentimentos nunca teve nada que justificasse efetivamente. Nunca houve nenhum grande crime no município por causa da penitenciária. E Duda não consegue encontrar explicações lógicas para o fato de criminosos não terem ido à cidade. "Não vêm por Deus".

São com essas dificuldades e tranquilidade de uma cidadezinha do interior que Florínea vai tocando a rotina ao lado de quem tenta retomar às rotinas nas ruas. Não há dúvidas sobre a adaptação dos moradores — ou, pelo menos, a tentativa de demonstrar que estão adaptados.

Mas quando força um pouco para saber se está tudo bem mesmo e dá aos moradores a opção de poder voltar no tempo, não hesitam em dizer que não é uma boa ideia levar uma penitenciária tão grande para o município.

O prefeito dá o tom: "Jamais um município de 2.600 habitantes tem a capacidade de receber um presídio, independente do número de detentos. Porque, querendo ou não, mexe muito com a cultura do povo e é uma sensação que demora bastante tempo para as pessoas se acostumarem."

Florínea vista de cima (Márcio Neves)

Florínea vista de cima

Márcio Neves

Reportagem: Kaique Dalapola e Márcio Neves
Edição: Tatiana Chiari
Arte: Matheus Vigliar
Vídeo: Márcio Neves, Edimar Sabatine, Luciano Gonçalves de Souza