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Fabíola Perez, do R7
Jornalista se aglomeram para ouvir a sentença  (TJ-RS)

Jornalista se aglomeram para ouvir a sentença

TJ-RS

As câmeras posicionadas por todos os lados logo na entrada do Foro Central I, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, aguardavam ansiosamente a chegada dos quatro réus para um dos julgamentos mais esperados do país. Às 9h07 do dia 1º de dezembro, o produtor de shows Luciano Bonilha deu os primeiros passos em direção ao saguão de entrada do prédio. O homem de mochila de couro rasgado, All Star vermelho, calça jeans e camiseta escura caminha sobre o piso molhado de uma garoa fina, acompanhado dos seis advogados que fariam sua defesa pelos dez dias seguintes.

“Eu não sou assassino”

Luciano Bonilha, produtor da banda

Ao subir a escada rolante que separa a cidade do julgamento que decidiria sua vida, Luciano dá o tom que marcaria o clima de tensão no júri da boate Kiss: “Eu não sou assassino”, grita. A vermelhidão da pele, a resistência para entrar e o choro indicavam o nervosismo a ser enfrentado. No segundo dia de julgamento, uma faixa estampava o rosto dos 242 mortos no incêndio que atingiu a casa noturna em Santa Maria, em janeiro de 2013.

A movimentação nas proximidades do prédio convidava qualquer um que passasse no local a comentar o caso: “mas, bah, tinha que ter muitas outras pessoas no banco dos réus”, “deve estar um clima muito pesado lá dentro”, “não acho que esses guris tiveram culpa” eram algumas das frases ouvidas.

O pequeno restaurante Forun’s, localizado no quarteirão atrás do Foro Central, viu o movimento aumentar 40% em razão da busca de familiares das vítimas, testemunhas e jornalistas por almoços rápidos. Um motorista de aplicativo resumiu a identificação coletiva quase nove após a tragédia: “é que quase todo mundo aqui tem alguma ligação com o incêndio, perderam amigos, familiares ou tinham conhecidos da Kiss.”

Familiares colocam faixa em homenagem às vítimas da Kiss (Fabíola Perez/R7)

Familiares colocam faixa em homenagem às vítimas da Kiss

Fabíola Perez/R7

Passada uma semana do mais importante julgamento do estado do Rio Grande do Sul e um maiores do país, um legado de peso fica para o sistema de justiça brasileiro. Se para os familiares das vítimas a ideia de que a “justiça foi feita” prevaleceu, para especialistas em Direito Penal a condenação dos réus por homicídio doloso abre precedentes perigosos para acusações.

Na sexta-feira (10), enquanto o juiz, Orlando Faccini Neto lia a sentença de Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann - sócios da boate à época do incêndio – além de Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus dos Santos, produtor musical e vocalista da banda Gurizada Fandangueira, respectivamente, os cerca de 30 pais e mães que assistiam ao júri no plenário se deram as mãos em silêncio para homenagear seus filhos. E ouviram do juiz a sentença condenatória:

"Todos os réus seguramente terão ainda tempo para cultivar suas famílias"

Orlando Faccini Neto, juíz

“A culpabilidade dos réus é elevada mesmo em se tratando de dolo eventual. Quem num exercício altruísta buscar-se colocar no ambiente dos fatos haverá de imaginar o desespero, a dor, o padecimento das pessoas que na luta por sua sobrevivência recebiam a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão. Em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar tudo que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura: o horror, o horror”, disse Faccini Neto durante a condenação.

O juiz disse também que o direito não pode voltar os olhos apenas “àquele que delinquiu, senão que lhe cabe a finalidade de ajustar as expectativas da comunidade, evitando frustrações e descréditos que afetam a confiança no sistema de justiça”, argumentava.

Em outro trecho da sentença, fez referência a todos os anos e experiências de vida retiradas abruptamente das vítimas. "Todos os réus seguramente terão ainda tempo para cultivar suas famílias, desenvolver as suas amizades, viajar, conhecer pessoas, participar de festas, eventos, amores e desamores nessa trajetória cheia de mistérios e maravilhas que é a vida. Nada disso caberá às vítimas", afirmou.

Com o dedo em riste, como quem pede atenção, seguiu a leitura: "Sequer é possível um cálculo instrumental sobre a idade de cada qual e a expectativa de vida que teriam para chegarmos ao quanto de tempo lhes foi subtraído. Basta dizer que é muito e esse muito, enfatizo, não lhes foi retirado por obra do acaso, por um raio, um terremoto, um tufão ou furacão. Trata-se de obra humana, a exigir do Estado chamamento à consequente responsabilidade."

https://img.r7.com/images/arte-kiss-final-16122021160741015

R7

Por se tratar de um caso que, além das 242 mortes, deixou 636 feridos, a repercussão ganhou níveis singulares. “As pessoas buscaram uma responsabilização e o júri foi muito emotivo. Até mesmo pessoas que não são do direito acompanharam o debate”, disse Daniel Kessler, professor de direito processual penal da Universidade Feevale.

“Vivemos em uma época de espetacularização de julgamentos e isso é um pouco nocivo”

Daniel Kessler, professor

Prova disso é o alcance da transmissão pelo Youtube, no canal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O vídeo do momento da decisão final alcançou 165 mil visualizações. “Vivemos em uma época de espetacularização de julgamentos e isso é um pouco nocivo porque as vozes das ruas condicionam a atuação das partes”, pondera. “Mas o júri popular é aberto, essa é a essência de um julgamento popular, e as novas tecnologias permitem isso.”

Para o professor de direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Bruno Miragem, traumas de grandes dimensões influenciam o tamanho da pena. “É uma conduta socialmente lesiva, e a repercussão do processo reforça o caráter retributivo da pena”, diz. “Nenhum dos jurados chegou ali sem ter tido contato com os fatos, inclusive, com a mobilização das vítimas.”

A intenção de matar em debate

O magistrado que, por vezes, emprestava da literatura e dos versos de Chico Buarque palavras para a sentença frisou que “o viver em comunidade não pode ser só um andarilhar em suas margens”, mas um “mergulhar em suas raízes”. Para ele, a pena criminal “há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado, de maneira que arriscar o esquecimento desses dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria o oposto: numa demonstração que ordem jurídica não compreende a vítima, o sujeito enlutado, seus familiares com o devido respeito e consideração.” Com isso, o magistrado anuncia que o dolo eventual intenso teria impacto nas penas.

Elissandro foi condenado a 22 anos e seis meses, Mauro, a 19 anos e seis meses e Luciano e Marcelo, 18 anos. O entendimento de que houve dolo, ou seja, a intenção de matar com indiferença não foi consenso no meio jurídico.

Para Kessler, o júri da Kiss ampliou o conceito de dolo, o que, segundo ele, pode gerar acusações infundadas. “Essa ampliação quase encerra os crimes culposos. Quando se fala em aceitar o crime é como se o sujeito desejasse o resultado e assumisse o risco de produzi-lo”, diz. O Estado, explica ele, não deve olhar somente para as vítimas, tampouco apenas para o réu. “O direito deve ser aplicado ainda que contra a vontade da maioria”, afirma.

A ampliação sobre o entendimento da intenção de matar, pode abrir precedentes perigosos. “Há uma associação comum entre justiça e condenação. A justiça ser feita se tornou um sinônimo de pena alta”, diz o professor. “As pessoas se esquecem que a absolvição é sinônimo de justiça quando o sujeito não tem culpa.” Miragem também questiona o dolo eventual na condenação dos réus. “Dizer que eles teriam antecipado o risco da morte das pessoas e aceitado isso é discutível”, afirma. Para ele, o júri expõe a necessidade de uma discussão sobre a legislação.

Segundo o Código Penal, as penas para homicídios culposos, sem a intenção de matar, variam entre um e três anos, enquanto os dolosos têm penas de 12 a 30 anos de prisão. “É importante um novo olhar sobre a legislação para se discutir o tamanho das penas nos homicídios culposos para não se forçar entendimentos”, afirma Miragem. “As regras têm de ser claras para que as pessoas saibam qual comportamento adotar.

O debate sobre a intenção de matar foi preponderante durante a fase dos debates, quando advogados de acusação e o Ministério Público enfrentaram as defesas dos réus. O advogado de Elissandro, o Kiko, Jader Marques, foi um dos que defenderam a tese. Ele caminhou, gesticulou e esbravejou pelo auditório. “Meu pedido é pela desclassificação. Não determinem a condenação dessas pessoas”, dizia.

Performances dos advogados de defesa dos réus  (TJ-RS)

Performances dos advogados de defesa dos réus

TJ-RS
A identificação com os réus

Enquanto 28 pessoas se submetiam a longos e cansativos interrogatórios, nos bancos dos réus aguardavam em silêncio Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano. Kiko, como é conhecido Elissandro, enxergava por cima de suas olheiras de cansaço o decorrer do processo. Em seu depoimento, virou-se explosivo para a plateia: “se quiserem me prender, me prendam. Eu estou cansado”.

Luciano, por sua vez, assistia ao júri de frente, com as mãos sobre as pernas, como quem espera pacientemente a sentença final. De camisa social, Mauro olhava para os lados atento a cada detalhe. Das bancadas do fundo, Marcelo assistia as sessões com a cabeça baixa e um semblante de resignação. Do ponto de vista da relação com os acusados, o júri da Kiss também imprimiu uma marca. “As pessoas se colocaram mais no lugar dos acusados,”, diz Kessler. Isso ocorreu também, explica o professor, porque os réus tinham um perfil diferente daquele preferencialmente “violentado pelo sistema de justiça” do país.

“Não teve a figura do vilão, foram pessoas que erraram, mas absolutamente humanos”

Bruno Miragem, professor

Primeiro réu a ser interrogado, Kiko gesticulava enfaticamente para narrar a ida à delegacia na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Com os olhos vermelhos e chorosos, ele contava que ele era “o cara” que deveria resolver e não sabia como fazer. “Não teve a figura do vilão, foram pessoas que erraram, mas absolutamente humanos”, analisa Miragem. “Era possível perceber algo da vida ordinária ali. Quem assistiu ao julgamento não saiu indiferente dele, pensou sobre como aqueles fatos poderiam afetar a vida de diferentes formas.” Entretanto, o professor concorda que o perfil social e racial dos réus contribuiu para identificação de uma parcela específica da sociedade.

A justiça que poderia ter sido feita

O desejo de justiça fez com que viesse à tona, muitas vezes, a responsabilização de outras pessoas ou órgãos pelo incêndio. Miragem, que elaborou em 2013 um pedido de indenização às vítimas, apontou o Estado do Rio Grande do Sul e o município de Santa Maria como esferas responsáveis pelo incêndio. “O fato de ter havido erros, omissões e negligências administrativas não os levam a serem considerados réus penalmente”, afirma. A busca por culpados está intimamente relacionada à lentidão para a realização do júri.

“O julgamento atrasou demais, deveria ter ocorrido antes. Oito anos é um tempo demasiado e justifica a ansiedade das famílias esperando um resultado esse tempo todo”, diz Vanessa Chiari Gonçalves, professora de Direito Penal e Criminologia da UFGRS. “É preciso tornar o júri um processo mais célere. Quanto mais tempo, mais pressão se coloca sobre as pessoas envolvidas e maior a sensação de impunidade.”

O sistema de justiça brasileiro, segundo Gonçalves, não foi pensado para acolher vítimas. “Elas são tratadas como testemunhas”, diz. “Em um sistema de justiça do século XIX, é necessário prever mecanismos de acolhimento e atendimento psicológico.” Essas sucessivas falhas, segundo a professora, culminam na prisão dos réus. Como as vítimas não são acolhidas, passa-se a ideia de indiferença e de impunidade.

Nesse sentido, a professora acredita que medidas de justiça restaurativa também auxiliariam no enfrentamento ao trauma. “Se lá atrás fosse pensado um encontro entre vítimas e acusados, esses pais poderiam conhecer a dor que os réus carregam e saber que não estão indiferentes a ela”, afirma. “Precisamos pensar em formas mais adequadas de solução para crimes sociais para deixar para trás o revanchismo e a impunidade.”

Marco histórico
Pomotora de justiça Lúcia Helena Callegari posa para as fotos (R7)

Pomotora de justiça Lúcia Helena Callegari posa para as fotos

R7

O batom falhado na boca e o rímel borrado nos olhos denunciam o cansaço da  ao final do júri. Mesmo assim, ela se manteve sobre o salto até o último pedido de entrevista. “O legado deste julgamento é ajudar a escrever o futuro para que fatos como esses jamais se repitam”, afirma a promotora de justiça Lúcia Helena Callegari. Para ela, o resultado é uma resposta ao conjunto de falhas apontadas na boate pela acusação. “Os jurados deixaram claro que a sociedade não vai mais tolerar superlotação, falta de extintores e uma preocupação com o dinheiro em detrimento da segurança. Temos que mudar essa ideia da impunidade.”

O promotor de Justiça David Medina, que atuou ao lado da promotora, acredita que o júri simboliza uma nova etapa no que diz respeito à fiscalização de estabelecimentos noturnos. “A partir de agora temos um marco para que todos saibam que as boates sejam lugares seguros onde as pessoas podem se divertir e voltar para suas casas.”

Juiz "chimarreando" durante intervalo  de julgamento (TJ-RS)

Juiz "chimarreando" durante intervalo de julgamento

TJ-RS
Performances, discussões e chimarrão

O júri da Kiss não foi único apenas do ponto de vista da relevância do caso, mas expôs uma série de características singulares em tribunais do país. No decorrer dos dez dias de julgamento, foi comum observar defesa e acusação andando de um lado para o outro do auditório com as mais diferentes performances.

Às 9h, horário marcado para o início das sessões, o chimarrão, tradicional bebida gaúcha, já era preparado pelos advogados Jean Severo e Tatiana Borsa. Mais tarde, os livros de direito penal dividiam as bancadas das defesas com balas, doces e salgadinhos. Já a mesa onde estavam posicionados a promotora Callegari e os assistentes de acusação era um pouco mais distante do público. Para estabelecer alguma proximidade com os familiares sentados ao lado esquerdo da plateia, a promotora arqueava as mãos, fazendo corações em direção às vítimas. Nos intervalos, ela se dividia entre entrevistas à imprensa e calorosos abraços em familiares, por vezes, abalados com os depoimentos.

Quem mais chamava a atenção das câmeras, porém, era Jean Severo, advogado de defesa do produtor Luciano Bonilha. Antes de começar a falar, todos os equipamentos estavam devidamente posicionados à espera de algum rompante. Expansivo e informal, ele sobe o tom enquanto fala e gesticula freneticamente. No primeiro dia de júri, Severo se queixou com o juiz pelo tempo dado à defesa dos réus na fase de debates. “Em 37 minutos não dá nem para fazer um miojo”, disse.

No terceiro dia de júri, Severo deflagrou uma briga logo pela manhã. Durante o depoimento de Daniel Rodrigues da Silva, dono da loja onde foi comprado o artefato pirotécnico usado pela banda Gurizada Fandangueira, Severo questionou se o estabelecimento tinha problemas com a polícia. “Tu tem que responder, tu botou esse rapaz aqui. Ele colocou esse inocente aqui”, gritou o advogado. Em outro momento, Severo voltou a esbravejar: “a loja é ilegal, tudo é ilegal, devia estar sentado aqui [com os réus]”. Faccini Neto, então, ameaçou tirá-lo da sala. “A próxima que o senhor me fizer, o senhor não vai mais ficar aqui.”

Na noite dos debates, enquanto os colegas faziam suas exposições no auditório, Severo se virou para a bancada de Tatiana Borsa e cochichou sem a máscara, que leva seu nome bordado: “eu vou rasgar”, apontando para o livro escrito pelo colega de acusação, David Medina. “Depois eu te dou outro”, disse ele, arrancando risos constrangidos da bancada das advogadas.

Como prometido, quando ocupou o centro do auditório, mais uma vez em frente às câmeras, Severo vociferou algumas palavras e rasgou uma página da obra “O Crime Doloso”. Outros advogados também protagonizaram alguns momentos de tensão. Jader Marques, que fez a defesa de Kiko, ficou conhecido por reivindicar um tempo maior de intervalo. “Minha comida está em uma Tupperware gelada. Traga a sua comida”, disse o juiz. “O senhor está jogando a plateia contra a defesa”, retrucou Marques.

Vítima mostra cicatrizes deixadas pelo incêndio da Kiss (TJ-RS)

Vítima mostra cicatrizes deixadas pelo incêndio da Kiss

TJ-RS
Vítimas ‘massacradas’

Os depoimentos de algumas vítimas chegaram a se estender por mais de 5 horas no auditório no plenário. A ex-funcionária da boate e primeira a ser ouvida, Kátia Siqueira, lembrou que teve mais de 40% do corpo queimado com o incêndio. “Fiz cinco cirurgias de enxerto com a minha pele e a de outras pessoas. Tive que tomar morfina para amenizar a dor.”

Enquanto as primeiras vítimas falavam ao juiz, a sobrevivente Kellen Giovana Leite Ferreira caminhava pelos corredores do Foro Central com a prótese que teve de colocar após a tragédia. Durante o depoimento, ela comentou as sequelas e traumas da tragédia. “Eu me atinei a correr. Achei que fosse briga. Quando cheguei na porta, eu caí. Nesse momento senti meus braços queimarem, muito calor e um cheiro muito forte.” Kellen revelou à plateia que até o ano passado não usava shorts. “Eu tinha medo de sair às ruas e as pessoas me julgarem. Usava calça jeans até no calorão de 40 graus”, diz ela que perdeu o pé e uma parte da perna.

A dor dos depoimentos dos sobreviventes ecoava diretamente na plateia. Pais e mães não suportavam os detalhes lembrados por quem tinha de reviver o dia 27. No primeiro dia de júri, a enfermeira Priscila Araújo Niendicker disse que 11 pessoas foram levadas para a sala de atendimento montada para dar suporte às vítimas. Nos outros dias, segundo ela, ao menos cinco pessoas foram retiradas da plateia nos momentos mais comoventes. A enfermeira Patrícia Curti Bueno, que acompanha as famílias de vítimas e sobreviventes desde o dia 28 de janeiro de 2013, afirma que a necessidade de extravasar os sentimentos era esperada. “Eles precisam chorar, colocar para fora o luto. São quase nove anos de luta para entender o que houve e durante as falas das vítimas os sentimentos são aflorados.” 

"Quando eu fui caindo, fui me despedindo da minha família, dos meus amigos, pedindo perdão por alguma coisa que eu tivesse feito”

Delvani Rosso, vítima

Um dos relatos mais dolorosos foi o do sobrevivente Delvani Rosso. “Quando eu comecei a inalar [a fumaça], meus joelhos foram ficando fracos, fui perdendo a força”, afirmou. “Quando eu fui caindo, fui me despedindo da minha família, dos meus amigos, pedindo perdão por alguma coisa que eu tivesse feito”, lembrou. A promotora chegou a dizer que as vítimas já fragilizadas foram ‘massacradas’ ao se sentarem para depor. Entretanto, Maike Ariel dos Santos, outro sobrevivente, disse que, apesar da dor, os relatos foram importantes para o júri. “Foi a primeira vez que nos deram uma voz.”

Parentes das vítimas formaram um círculo de mãos dadas (Fabíola Perez/R7 09.12.2021)

Parentes das vítimas formaram um círculo de mãos dadas

Fabíola Perez/R7 09.12.2021
Ao final, o silêncio

Às 16h30 do décimo dia de júri, os sete jurados acompanhados pelo juiz foram à sala secreta para decidir sobre o futuro de Elissandro, Mauro, Luciano e Marcelo. A movimentação de quem aguardava o resultado era intensa. Pouco mais de uma hora depois, dezenas de câmeras voltavam a se posicionar em direção ao auditório. No centro, Faccini Neto se preparava para ler a sentença e mais uma vez pedia cautela.

Elogiado pela forma como presidiu o júri, o magistrado também teve algumas falas consideradas parciais. “Foi uma atuação irreparável, com total domínio do processo e serenidade sobre o júri”, avaliou Miragem. Para o professor de direito da Feevale, a forma como o juiz conduziu alguns interrogatórios deixou indícios sobre posições pessoais. “Ele tentou ter uma postura equilibrada, mas algumas perguntas transpareceram o que ele pensava acerca do caso”, disse Kessler. No interrogatório de Kiko, por exemplo, o magistrado chegou a questioná-lo sobre a ida à delegacia após o incêndio. “No ápice da emoção do réu, ele pediu um intervalo e quando retornou, perguntou se ele não mandou cartas aos familiares. Isso impacta o pensamento dos jurados”, pondera.

“A sociedade não tem nada a comemorar"

Flávio Silva, presidente da AVTSM

Quando Faccini Neto desligou os microfones e anunciou o término do júri, mães e pais emocionados de mãos dadas em círculo falaram em voz alta o nome dos filhos. As vozes, caladas durante os últimos dias sob pena de anulação do julgamento, saíram tímidas, mas aliviadas. “Ruan, Lucas, Andrielle, Augusto” foram alguns dos nomes que ecoaram pela sala. O presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Flávio Silva, pai da jovem Andrielle Silva, que morreu enquanto celebrava o aniversário de 22 anos, disse que apesar do alívio, não havia motivos para festejar. “A sociedade não tem nada a comemorar. Queríamos demonstrar que somos guerreiros e unidos. A justiça foi feita para nós e isso valeu a pena”, disse.

Minutos após a condenação, um habeas corpus preventivo, pedido pelo advogado Jader Marques e concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, fez com que os sentenciados não deixassem o prédio presos. Quatro dias depois do julgamento, porém, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Luiz Fux suspendeu a liminar do habeas corpus.

Com isso, orientados pelas defesas, Elissandro e Marcelo se apresentaram em unidades prisionais na tarde do dia 14. Logo depois, na manhã da quarta-feira (15), foi a vez de Luciano e Mauro se entregarem. A professora Vanessa, da UFRGS, defende que eles deveriam ter sido condenados por homicídio culposo. "Encarcera-se pessoas que já perderam tudo. O elemento psíquico da culpa deveria ser considerado, isso é uma pena natural. Eles carregam nos ombros esse trauma”, afirma. Assim, Elissandro, Mauro, Luciano e Marcelo seguem cabisbaixos – com o peso de nada menos que 242 mortes e 636 histórias de horror nas costas.


Reportagem: Fabíola Perez
Edição: Ingrid Alfaya
Arte: Bruna Gabriela Da Cunha Santana