Por trás da produção do cacau há um rastro de pobreza e desigualdade. Trabalho análogo à escravidão e exploração de mão de obra de crianças e adolescentes tornaram-se comuns na colheita do cacau, matéria-prima do chocolate, segundo o Ministério Público do Trabalho.
Durante 18 dias, os repórteres do Câmera Record percorreram os principais polos produtores, às margens da rodovia Transamazônica, no Pará, e na região conhecida como Costa do Cacau, no sul da Bahia. Passa bem longe desses locais a riqueza do mercado que movimenta 14 bilhões de reais por ano no Brasil (e 110 bilhões de dólares, cerca de 458 bilhões de reais no mundo) e levou o país a se tornar o sétimo maior produtor de cacau.
A reportagem completa está no documentário “A escravidão do século XXI”, exibido neste domingo (29/09) no Câmera Record e que pode ser assistido na íntegra no PlayPlus.
A sujeira do trabalho na roça não encobre os machucados que os irmãos Daiane e Gabriel*, ambos de 14 anos, levam pelo corpo. Eles vivem no município de Medicilândia, conhecido como a capital nacional do cacau, localizado a 1h30 de carro de Altamira, no Pará. "O facão escapuliu e pegou na minha perna. Eu não sabia se chorava de medo ou de dor”, conta Daiane.
Com uso de facões e podões – uma espécie de foice pequena com cabo longo – todos capinam, derrubam o cacau do pé, juntam, quebram, descaroçam e colocam as amêndoas para secar. Eles trabalham e moram no pequeno lote de terra da avó agricultora Isanilde Silva, mãe de treze filhos. A casa não tem luz, nem água encanada. A família bebe e toma banho em um poço a 100 metros de distância. Também não há camas para todos. A maioria dorme em redes.
Contrasta com a casa pobre de tijolos aparentes a fotografia da família pendurada na parede. No retrato, eles usam roupas e vestidos elegantes em um fundo arborizado, que até lembra o Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Mas trata-se de uma montagem (doada por um estúdio). É como se, ao olhar para aquilo, eles se transportassem para uma realidade menos sofrida.
“Quando morávamos com nossos pais, a gente não tinha tempo nem de brincar. Quando não era o dia plantando cacau, a gente tirava esses brotinhos pequenininhos”, diz Daiane, apontando para a vassoura-de-bruxa, praga da região amazônica que ataca os cacaueiros. “Eu já apanhei tanto [quando não queria trabalhar] que minha cara ficou deste tamanho”.
A rotina puxada no cacau cobra seu preço na sala de aula. Grande parte das crianças de Isanilde não está na série correta. Douglas, 10, apontado pelos primos como o que mais trabalha, é justamente o aluno com mais dificuldade entre os 20 colegas da escola Marechal Rondon, na zona rural. “Ele é muito lento no aprendizado. Tanto que passou três anos no terceiro ano”, diz a professora Conceição dos Santos. “Criança não pode trabalhar, eu sei disso, mas a condição da gente obriga”, lamenta Isanilde, que cuida dos filhos e netos sozinha. Os três maridos que teve a abandonaram.
Os irmãos Alexandre e Leonardo tinham 9 e 10 anos quando uma fiscalização do Ministério Público do Trabalho os afastou, junto com outros dez menores, das atividades diárias, em condições perigosas e insalubres, na fazenda de 80 mil pés de cacau de Raimundo Rodrigues de Souza, conhecido como “Nó Cego”. Seis anos depois dessa operação, reencontramos os irmãos, hoje com 14 e 15 anos, trabalhando na mesma plantação em Medicilândia.
Confira abaixo o podcast sobre os bastidores da reportagem com a equipe do Câmera Record
Com dor nas costas e desmotivado, Alexandre carrega um balaio cheio de cacau pesando 40 kg. “Quem pede para você colher?”, perguntamos. “Seu Raimundo”, o menino responde fixando o olhar na terra. “E você não vai para escola?”. “É muito longe [3 km], não tem busão”. O jovem abandonou o lápis e o caderno neste ano e não tem perspectivas de retornar para uma sala de aula.
Como a maioria dos lavradores, os irmãos moram com a família em uma casa cedida pelo patrão que não tem água encanada. Para beber e tomar banho, recorrem a uma estrutura improvisada no mato para captar água de um poço.
É ali perto de onde mora Alexandre e Leonardo que o casal de meeiros Sandra e Anderson*, que também trabalha para Raimundo, vai buscar água três vezes por dia percorrendo 300 metros morro abaixo. Eles precisam fazer isso porque no alojamento dado pelo patrão a água que sai é suja e com cheiro forte. Quem bebeu dali teve diarreias e coceira pelo corpo, contam. “Dizem que Medicilândia é a capital do cacau. É a da pobreza, porque eu não sei para onde o dinheiro do cacau vai”, diz Sandra.
O desabafo da lavradora é uma crítica à relação de trabalho entre meeiros e o dono da terra. Pelo contrato de parceria agrícola, o lucro da produção de cacau deveria ser dividido igualmente entre os trabalhadores e o proprietário, assim como os gastos com adubo, inseticidas e ferramentas. Não é o que acontece na plantação de Raimundo Nó Cego. “Dos nossos 50%, gastamos ainda com veneno, adubo, diarista, porque ele não paga nada, mas recebe a parte dele limpa”, diz. “Aqui o trabalho é escravo. Ninguém tem direito a nada. E o que a gente colhe mal dá para comida”.
Procurado pela reportagem, Raimundo Nó Cego nega que haja qualquer problema em sua propriedade. Garante que “pensa no social” por ter estudado o economista e filósofo alemão Karl Marx. E cita Abraham Lincoln, ex-presidente dos Estados Unidos, como um exemplo de quem trabalhou na roça desde criança e, mesmo assim, cresceu na vida. Raimundo também diz que, se os meeiros estão na pobreza, é porque gastam tudo com diversão.
“São pessoas que gastaram seu dinheiro à toa. Com farra!”, diz. Raimundo afirma ainda que é um “homem de bom coração” por já ter ajudado alguns trabalhadores. Ele [o meeiro] confia em mim. Eu costumo dizer que eu sou melhor do que Deus!”.
“É direito da criança não trabalhar, é também uma importante medida a ser tomada pela sociedade para garantir o desenvolvimento do país e das famílias para quebra do ciclo de pobreza”, diz Mário Volpi, coordenador do programa de cidadania do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). “Todos os estudos que comparam essas famílias [com menores trabalhando] mostram que aqueles que dedicaram mais tempo ao estudo conseguiram ter melhores oportunidades daqueles que perderam a infância em função do trabalho”.
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Foto: Tatiana CardealEm 2013, a operação do Ministério Público do Trabalho resgatou 29 pessoas, sendo 12 menores, da fazenda Boi Não Berra, de propriedade de Raimundo Nó Cego. A fiscalização também denunciou e autuou em 3 milhões de reais um parceiro dele: o atravessador Daniel Uliam.
O Câmera Record obteve com exclusividade – via Lei de Acesso à Informação – os autos da operação nas terras de Raimundo Nó Cego. Segundo o MPT, como a renda dos meeiros é muito baixa, o atravessador Daniel Uliam emprestava dinheiro para eles e, assim, os obrigava a vender o cacau apenas para ele e não para outro comerciante que poderia fazer um preço melhor.
A agiotagem era ainda mais grave porque Uliam cobrava taxas de juros consideradas absurdas pela fiscalização. “Para os trabalhadores, os juros chegavam a ser de 1% ao dia,” afirma a procuradora Silvia da Silva. Além de multar, o MPT autuou o atravessador. Mas ele tentou se eximir da responsabilidade. “Instaurou-se inquérito civil na época na procuradoria de Santarém. No entanto, os irmãos Uliam compareceram em uma das audiências e informaram que a cerealista [a empresa dos atravessadores] seria fechada”.
Seis anos após a autuação, os repórteres do Câmera Record conseguiram flagrar Daniel Uliam atuando novamente como atravessador. Ele usa o supermercado do filho, que fica no km 140 da cidade vizinha de Uruará, a 40 minutos de carro de Medicilândia. Dando recibos em nome do Supermercado Líder, Daniel Uliam e seu filho montaram um galpão de compra de cacau ao lado do comércio.
Em apenas cinco meses, já compraram de meeiros e donos de terra cerca de 350 toneladas de cacau e venderam para moageiras. Questionamos por que ele abriu a compra de cacau em Uruará e não em Medicilândia: “Se a fiscalização passar [e disser]: ‘ah, você tá aqui comprando cacau de novo? Agora você é preso’”, diz Uliam.
“Pelo menos 8 mil crianças trabalham neste mercado”, afirma Margaret Matos de Carvalho, procuradora do Ministério Público do Trabalho que, no ano passado, investigou a cadeia produtiva do cacau junto com a Organização Internacional do Trabalho. “Mas esse número pode ser muito maior porque nós falamos de pesquisas em que as próprias famílias declaram a existência dessa atividade e, obviamente, em muitos casos procura-se ocultar essa situação”.
“Colhemos cacau debaixo de chuva e sol. Aí você vai dividir meio a meio com o patrão e não sobra nada, meu amigo. É 50% para ele e para nós sai menos de 10%. Você não sabe o que a gente padece aqui dentro. Dia que vai para roça com fome. Eu me preocupo muito porque nem todos os meus filhos estão na escola. O cacau me deu muito sabe o quê? Doença. Não estou te falando coisas da boca para fora, não. Tô falando de coração! E se eu tiver mentindo, Deus tá vendo, viu?”
A fala acima é do meeiro Antônio Augusto, de 68 anos, com uma vida dedicada as plantações de cacau na região próxima a Ilhéus, na Bahia. Ele é mais uma das dezenas de famílias que o Câmera Record encontra morando em condições degradantes por conta do patrão. O filho dele, Matheus, completou 18 anos e não sabe o que é viver em uma casa com água saindo pela torneira, banho quente e luz elétrica. Cinema? Nunca foi e também não tem ideia de como é. Para saber o que está acontecendo no mundo, pai e filho escutam as notícias pela rádio.
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Foto: Tatiana Cardeal“A situação não vai permanecer como está”, diz o auditor fiscal chefe Daniel Fiuza durante uma operação de fiscalização da Gerência Regional de Ilhéus acompanhada pela reportagem. “Vamos atuar junto com o Ministério Público do Trabalho para obrigar esse empregador a regularizar a situação”.
A reportagem encontrou Hermano Freitas, empregador da família do meeiro Antônio Augusto, trabalhando em sua loja de vinhos no centro de Ilhéus. Apesar dele admitir que viaja todo ano para França, de ter propriedades em Salvador e em Ilhéus, da mulher ser dona de uma clínica de estética, ele diz que faltam condições financeiras para dar uma estrutura mínima para aqueles trabalhadores. “Se a situação estiver muito ruim para eles, o jeito é procurar uma outra fazenda que ofereça essas condições”, diz o dono da fazenda.
“Trabalho com cacau desde os 13 anos. Agora, todos os trabalhadores da roça são explorados, mas a pessoa não tem capacidade de ter um serviço melhor. Estudo, eu não tenho. Aí, tem que ser assim. Sonho em ter meu cafofinho e colocar minhas duas filhas debaixo", diz o diarista Claudio.
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Foto: Tatiana CardealA operação de fiscalização acompanhada pela reportagem segue para Una, na Bahia, e comprova a situação dramática vivida por Claudio. Ele é considerado trabalhador em situação análoga a de escravo e precisa ser resgatado. Ganhando 45 reais por dia na lavoura como diarista, o alojamento de Claudio e sua mulher é de madeira, tem três cômodos, não tem luz, água ou móveis.
O casal toma banho e mata a sede em um rio próximo, assim como cachorros, cavalos e outros animais da roça. A carne consumida fica dentro de uma bacia sob moscas. “É indigno. Ninguém deveria ser obrigado a viver numa situação dessas”, diz o auditor Daniel Fiuza. O local também corre risco de pegar fogo por conta de um fogão à lenha instalado de forma imprópria.
Os auditores pedem apoio à Polícia Federal para fazer o resgate de Claudio no dia seguinte, mas as atividades de cacau são paralisadas pelo gerente da propriedade. Cláudio* havia desaparecido. A Secretaria do Trabalho aciona o proprietário Carlindo Caprini Junior, que finalmente comparece à instituição com o trabalhador e assina um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). Cláudio* recebeu R$ 32 mil reais de indenização por danos morais e pela rescisão do contrato de trabalho e mais três parcelas de seguro desemprego.
A Organização Internacional do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho vão lançar em 2020 um plano de combate ao trabalho escravo e infantil nas plantações de cacau pelo Brasil. Para isso, está convocando os principais atores dessa cadeia produtiva.
A Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC) afirma em nota que “o setor tem trabalhado incansavelmente para se aproximar dos produtores e fomentar a compra direta como forma de promover maior transparência e rastreabilidade em toda a cadeia”. “Como parte desse processo, as empresas associadas à AIPC investiram na construção e inauguração de unidades diretas de compra das amêndoas.”
* As identidades das crianças e adolescentes, do casal de meeiros da fazenda Boi Não Berra e do trabalhador resgatado em condição análoga à escravidão na Bahia não serão reveladas
Edição: Marcelo Magalhães e Tatiana Chiari
Fotos e vídeos: Gilson Fredy e Tatiana Cardeal
Arte: Diego Molina e Matheus Vigliar