Mudanças de hábitos, escolhas e formas de consumo. Aumento do trabalho remoto. Uso cada vez mais intenso e decisivo das tecnologias digitais nos ensinos tradicionais e profissionalizantes.
Novos padrões de convivência em bares, restaurantes, parques e outros espaços públicos. Maior consciência para a importância do meio ambiente, das ações sustentáveis e da higiene nas rotinas individuais e coletivas.
E, como consequência, a valorização crescente de profissionais, sobretudo os ligados à tecnologia, capazes de ajudar a sociedade a desenvolver todos esses pontos na nova realidade imposta pela pandemia do novo coronavírus. Em maior ou menor intensidade, todos no mundo estão submetidos a essas regras desde o anúncio pelos chineses, no final de 2019, do caráter pandêmico da covid-19.
Algumas perguntas se impõem: o que ficará ou, ao menos, será duradouro, e o que passará desses procedimentos após a pandemia? O que brasileiros e outros povos aprenderão com ela? O R7 Estúdio conferiu teses, pesquisas e ouviu especialistas para entender as principais apostas em relação ao futuro dessa nova ordem.
Em meio a tantas hipóteses, uma certeza incômoda: a humanidade enfrentará outras pandemias do tipo, em intervalos cada vez menores. E também uma verdade inquestionável: a covid-19 invadiu o mundo e a vida dos cidadãos como uma potente aceleradora do futuro. E forjou o que se convencionou chamar de “novo normal”.
Tecnologia não é o primeiro tema a ser tratado nesta reportagem à toa. Todas as mudanças aceleradas pela pandemia, do comportamento individual às relações coletivas, foram possíveis graças à aproximação definitiva feita, em escala global, entre as pessoas de todos os padrões sociais e culturais e as ferramentas digitais e virtuais.
A internet e a tecnologia digital são os principais pilares de sustentação de praticamente todos os símbolos do novo normal. É e serão imprescindíveis no home office em grande escala, na expansão dos ensinos híbrido e à distância (EAD) e no crescimento dos mercados de e-commerce, entregas e delivery, marcas dessa pandemia.
Com o 'novo normal', a tecnologia passou a ser fundamental no dia a dia, inclusive no trabalho remoto
EFE“O que o mundo chama de e-economy é a economia que tem como pilares inteligência artificial, tecnologia da informação e o uso amplo da internet e das ferramentas digitais”, explica ao R7 o professor, consultor e pesquisador de cultura digital Gil Giardelli.
“A pandemia antecipou a consolidação da e-economy no país. Os futuristas esperavam ver concluído partir de 2030 chegou agora. E terá o processo finalizado em dois ou três anos”, acrescenta.
O novo normal pós-pandemia preservará, ainda que em menor intensidade, muitas das práticas adotadas enquanto se atravessa o túnel. Uma das principais é a ordem de só ir ao encontro da “outra parte” quando não houver outro jeito, mesmo que essa outra parte inclua colegas e locais de trabalho. Nesse contexto, a popularização do home office, o trabalho remoto, firma-se como algo irreversível.
O estudo Gestão de Pessoas na Crise Covid-19, feito com 139 pequenas, médias e grandes empresas brasileiras, divulgado recentemente pela Fundação Instituto de Administração (FIA), mostra que 46% delas aderiram ao home office na crise.
A participação foi alta na prestação de serviços hospitalares (53%) e na indústria (47%). Dentre as empresas, 55% das grandes e 31% das pequenas orientaram seus colaboradores a trabalhar em casa. No geral, um em cada três grupos envolvidos no estudo adotou o home office parcial, com funcionários no local de trabalho em determinados dias da semana.
A maioria dos que tinham condição de entregar o trabalho de longe com eficiência (41% de um total de 46% dos funcionários das empresas) foi mandada para casa. Nas áreas de serviço e comércio, atingiu 57,5%. Entre as pequenas empresas, 52%.
Metade delas (50%) considerou o resultado da experiência melhor e 44% equivalente ao esperado. E importante: executivos e donos de 34% das empresas ouvidas disseram pretender manter o trabalho remoto para até um a cada quatro funcionários (25%) e 29% para percentuais entre 50% (metade) e 100% (total) dos colaboradores.
Quem pensa em surfar profissionalmente na onda do pós-pandemia deve prestar atenção em três áreas: tecnologia, finanças e saúde. O InfoMoney, site brasileiro especializado em educação financeira, investimentos e tecnologia, elaborou uma lista com as dez principais apostas profissionais para o “novo mundo”.
Negócios já existentes, como cinemas, teatros e restaurantes, têm de se adaptar ao novo normal, e novas oportunidades de negócios estão surgindo
EFEAs seis primeiras são da área de tecnologia: segurança digital, profissional de experiência do consumidor por meios eletrônicos e especialista em nuvem (cloud) na internet. As cinco seguintes são de finanças: profissionais e diretores financeiros e comerciais, tesouraria, planejador financeiro e área de investimentos. Completam a lista os profissionais de recursos humanos e uma classe heroica nesses tempos: a dos enfermeiros e técnicos de enfermagem.
Outras áreas em alta serão as dos especialistas em tecnologia da informação (TI) e daqueles em condições de dar formação digital para incluir cidadãos, estudantes, professores e outros profissionais “tradicionais” com maior eficiência no novo normal.
Por fim, da pizzaria da esquina aos grandes conglomerados, há uma imensa cadeia de oportunidades para trabalhadores e investidores em meio à expansão dos serviços de entrega e delivery.
O e-commerce dos mais variados produtos cresceu espantosos 47% no primeiro semestre de 2020, a maior alta em sua existência. Pelos cálculos da consultoria em gestão estratégica Kearney, o setor deverá faturar R$ 111 bilhões até o final do ano. O número de aplicativos de pedido de comida baixados por consumidores da região metropolitana de São Paulo multiplicou-se por sete no período.
“Por tudo isso, e pelas dificuldades que se somaram à pandemia, a gente convive com a proliferação de gente nas motos entregando coisas e, mesmo assim, ainda existem mais de 200 mil pessoas na fila para trabalhar em aplicativos de entrega e cerca de 30 mil vagas em TI apenas na cidade de São Paulo”, contabiliza Giardelli.
Esse desempenho se deve em grande parte ao fechamento do comércio no período mais importante da quarentena, algo que não ocorrerá no pós-pandemia. Ainda assim, os especialistas acreditam que o que sobrará disso será mais do que suficiente para sustentar o voo confortável desses setores por anos na primeira fase da pós-pandemia.
A exemplo dos empresários, que descobriram na pandemia que os serviços prestados em casa geram boas economias para empregadores e empregados, o mundo da educação recebeu provas de que o ensino híbrido poderá ser a saída para a expansão de oportunidades no ensino público, de melhores negócios no privado e de aumento de eficiência no aprendizado para os dois lados.
Na graduação, no ensino médio e mesmo na segunda parte do fundamental, cursos com 100% de presença serão cada vez mais raros. O processo não consumirá muitos anos. Na medida em que se coloca parte dos estudantes em casa em alguns dias da semana, espaços são abertos para outros projetos, com novas pessoas – e isso é sem dúvida uma boa nova.
Do ensino infantil às pós-graduações, instituições de ensino de todos os níveis sofreram com trancamentos de matrícula e abandonos. O problema é mais intenso entre crianças e adolescentes. Mas a educação superior, sobretudo a particular, paga, também foi atingida.
O modelo de ensino híbrido pós-pandemia terá uma parte definida de aprendizado online e outra para o presencial. Mas precisará oferecer algo muito mais consistente e abrangente do que o visto nas versões digitais improvisadas às pressas pelas escolas para a quarentena. E também na suprema maioria dos atuais cursos de ensino a distância (EAD) do país.
“Ele terá a obrigação – repito: obrigação – de ser maior, mais profundo e menos passivo do que o EAD executado agora”, sustenta ao R7 o consultor e gestor educacional Miguel Thompson, doutor pelo Instituto Oceanográfico da USP, ex-professor do ensino básico e ex-CEO do Instituto Singularidades.
Crianças de todas as idades tiveram de se adaptar ao estudo à distância
EFEAs experiências ao lado de professores e colegas, nos ambientes escolares e acadêmicos, são fundamentais para a formação. Para compensar a perda desses fatores em partes importantes e até decisivas dos cursos, Thompson defende um esforço denso na capacitação dos educadores.
“Eles foram surpreendidos na pandemia com a necessidade imediata de passar todo o conteúdo online. Houve heroísmo, mas, como não estava programado, faltou preparo em muitos casos, o que comprometeu os resultados”, diz ele.
“A nova realidade exige algo muito mais planejado. Mestres precisam ser capacitados para usar as ferramentas digitais com desenvoltura. E também para entender que as novas linguagens dos games, blogs, vídeos e redes sociais são os atuais canais de contato dos estudantes com o mundo e precisam ser utilizadas no aprendizado.”
Thompson destaca dois elementos determinantes para o bom funcionamento do ensino híbrido no pós-pandemia: a maior exploração da inteligência artificial e a chegada da internet 5G.
“O 5G estará entre nós até 2020. Vai acelerar estupidamente a compactação e a transmissão de dados. E transformar celulares e gadgets de alunos e professores em ferramentas poderosíssimas de ensino. Sou otimista, mas não será possível haver ensino híbrido eficiente no país sem educador preparado para isso.”
O ser humano prometido ou ao menos desejado no pós-pandemia é, ao menos em maioria, o mesmo cidadão médio que tem se exibido nas redes sociais e veículos de comunicação enquanto praticamente todos ainda estão no túnel escuro da covid-19. Solidário, obediente aos protocolos, bem mais cuidadoso com a higiene individual e coletiva e um pouco mais preocupado em mapear – e assumir – o que é efetivamente importante para sua vida.
É verdade que as recaídas de muitos, em aglomerações e atitudes inconsequentes registradas sobretudo no último mês, muitas vezes levam a pensar que uma parte considerável de brasileiros deve ter apagado da mente que o coronavírus, com ao menos 800 mortes diárias, ainda “derruba” mais de dois Boeings 777 lotados a cada 24 horas mesmo depois de seis meses e meio de recolhimento.
A forma de se relacionar com a higiene pessoal e coletiva mudou: todo mundo de máscara
EFEO brasileiro médio assustado com a pandemia deseja morar muito longe ou muito perto do trabalho. Quem deseja proximidade quer evitar ao máximo o uso e as longas jornadas nos transportes coletivos. No outro extremo, uma parte, formada sobretudo pelos liberados para continuar o trabalho remoto, busca moradia em áreas mais tranquilas e distantes das grandes aglomerações.
Se, na maior parte dos dias, será a internet que conduzirá a produção profissional até a empresa ou o cliente, não há muito por que ficar rotineiramente colado neles. Por isso, casas, apartamentos e escritórios em cidades a até 150 quilômetros de metrópoles como São Paulo, Londres, Los Angeles e Nova York passam atualmente por um processo de valorização.
Ao menos no período inicial, o rigor na escolha das ocasiões para se juntar a aglomerações em espaços públicos será certamente maior, mesmo com as limitações do número de pessoas quando os eventos esportivos, artísticos e culturais forem reabertos ao público.
Não é possível imaginar nada que avalize uma pandemia, mas as ações de solidariedade e diminuição do ímpeto consumista certamente farão bem a muita gente tomada na pandemia pela filosofia do “menos é mais”.
Agora, virou rotina ter a temperatura medida ao entrar em um espaço público
EFE“Parte dos brasileiros sempre estendeu a mão para as pessoas. É a boa ação, um dado cultural nosso. A pandemia incluiu nesse bolo um contingente que passou a contribuir com os mais vulneráveis até por autoproteção. Afinal de contas, quem pode estar perto precisa estar bem cuidado, até para não me contaminar e, em última instância, indiretamente, me matar”, destaca para o R7 a psicanalista Dora Gurfinkel, uma das fundadoras da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano.
“Mas certamente algo de bom ligado aos hábitos e atitudes certamente sobrará no Brasil e no mundo pós-pandemia”, acrescenta ela.
Seres humanos – e os brasileiros, em especial - costumam produzir um esquecimento programado diante de desafios gerados em momentos de dificuldade. No primeiro momento em que se livra de um grande problema, costuma dizer: “não posso sair dessa do mesmo jeito que entrei”.
Mas basta a distância do tempo para o sofrimento se tornar considerável e as promessas feitas no momento de reflexão serem solenemente esquecidas. Que a nobreza adquirida, desenterrada ou amplificada nesses momentos difíceis não seja neutralizada junto com coronavírus pelas vacinas que estão para chegar.
O que as pessoas esperam do futuro pós-pandemia?
Arte/R7Muito tem se especulado sobre o futuro no pós-pandemia. Mas, entre as hipóteses, mesmo as avalizadas pelos especialistas, pode-se incluir, infelizmente, uma certeza: o ser humano sofrerá com novas epidemias e pandemias. E o intervalo de tempo entre elas será cada vez menor.
“As principais ameaças não virão mais de atentados ou guerras, e sim de agentes infecciosos que viajam nos corpos das pessoas de forma silenciosa e assintomática”, explica o patologista Paulo Saldiva, professor da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores autoridades mundiais no tema.
Facil entender os motivos. “Endemias, epidemias e pandemias surgem do contato entre humanos e animais ou insetos transmissores”, esclarece o pesquisador.
“A transmissão ocorre por picadas, mordidas ou contato com animais que os humanos domesticam ou comem. O homem vem se instalando cada vez mais nos espaços antes ocupado apenas por insetos e animais. Com isso, as transmissões se tornaram muito mais frequentes.”
Com as cidades cada vez mais povoadas e grande mobilidade de pessoas nos atuais transportes terrestres, marítimos e aéreos, os agentes infecciosos atravessam o mundo com extrema facilidade.
“O cenário fica permanentemente montado”, diz Saldiva. “A varíola demorou oito décadas para tomar a Europa. A peste bubônica e o cólera, mais um século para se tornarem mundiais. No Século 20 houve apenas duas pandemias: as febres amarela e asiática. A partir de 2000, no entanto, houve dois fenômenos globais por década. O atual precisou de apenas quatro semanas para colocar o mundo de joelhos.”
O caminho para amenizar os efeitos das futuras pandemias precisa passar necessariamente, avalia Saldiva, pela criação de fundos internacionais bancados por países ricos para informar e dar suporte financeiro a cidadãos e governos das áreas pobres do mundo.
“Até por autoproteção. Como se percebe, o que contamina humanos na África, América Latina ou Sudeste Asiático chega rapidamente ao mundo rico”, conclui o pesquisador.
Quem construirá o futuro somos nós
Arte/R7
Reportagem: Eduardo Marini
Arte: Sabrina Cessarovice
Edição de vídeo (texto): Guilherme Fontana
Edição de imagens (vídeo): Camila Santos