Pandemia impactou de maneira desigual os estudantes brasileiros
WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO - 21.11.21Vitória tem 19 anos, mora na Brasilândia, bairro periférico da zona norte de São Paulo. Ela, como outros 3,4 milhões de estudantes, fará as provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) nos próximos dias 13 e 20 de novembro. O sonho: cursar química na USP (Universidade de São Paulo).
"Quero trabalhar para melhorar a vida das pessoas e o meio ambiente. Eu me vejo atuando nessa área, contribuindo para melhorar o mundo à minha volta", conta. "Pretendo cursar química no período noturno na USP para poder trabalhar durante o dia. Sei que não vai ser fácil, mas vou tentar."
A rotina de Vitória começa às 7h, quando sai de casa para trabalhar como jovem aprendiz na área administrativa de um supermercado. Chega em casa e, como tantas garotas da sua idade, precisa encarar a rotina extra: preparar o jantar e ajudar com o cuidado das crianças da família. À noite, mesmo com o cansaço, encara as aulas online de um cursinho popular preparatório para os vestibulares.
"Estudar é uma palavra muito forte. Tento acompanhar as aulas, mas o cansaço atrapalha muito. Nos fins de semana, preciso ajudar minha mãe com a casa. Só dá tempo de repor a matéria", diz. "Neste ano, eu só produzi duas redações."
As dificuldades enfrentadas por Vitória não começaram agora. "Sempre estudei em escola pública. Quando passei na Etec (Escola Técnica de São Paulo), foi um choque de realidade: sair de uma escola de bairro e cair no ensino técnico, com alunos que vieram de escolas particulares... Precisei correr para suprir a defasagem de conteúdo que tinha."
Nesse período, veio a pandemia de Covid-19 e o ensino remoto. "Fazer um curso técnico é uma boa, mas, no meu caso, foi complicado, porque cursava mecatrônica, que tinha muitas aulas práticas, e fazer online não é a mesma coisa."
Além disso, Vitória precisava assistir às aulas pelo celular e, ao mesmo tempo, cuidar da sobrinha, que na época tinha apenas 7 meses. "Meu irmão e minha cunhada moram conosco. Eles precisavam sair para trabalhar e, como as creches estavam fechadas, eu cuidei da bebê. Nos intervalos das aulas, eu dava banho, almoço para ela, e, quando as aulas terminavam, eu não tinha pique para fazer as lições ou atividades."
Emily e Vitória: aulas online em cursinho popular
Arte/R7Emilly Silva Fernandes, de 19 anos, trabalha como monitora no cursinho Preparando o Futuro, da Associação Pipa, no Peri Alto, na zona norte de São Paulo, e ainda ajuda uma prima em uma lanchonete.
Foi com as aulas do cursinho em que trabalha que conseguiu conquistar uma vaga em uma Etec (Escola Técnica Estadual). "Não considero que o ensino médio tenha sido bom. Meu computador não funcionava direito, tinha problemas de conexão com a internet. Precisei trocar chip para acompanhar as aulas pelo celular."
Emilly também tinha de lidar com as distrações. "Estudar em casa, sozinha, não é fácil; era complicado manter o foco."
Ela pretende cursar ciências da computação no próximo ano e acompanha as aulas de um cursinho preparatório online, mas, como muitos estudantes, está "desanimada".
"Eu me sinto perdida. Tenho dificuldade de acompanhar as aulas, e a pandemia me desanimou muito. Até acho que faz parte do processo, mas estou me sentindo meio perdida."
Em um relatório produzido pelo Banco Mundial e pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), com colaboração da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a pandemia foi considerada "uma catástrofe para a educação" na América Latina, diante das dificuldades de alunos da educação básica com a leitura e a escrita e do aumento da evasão escolar entre os jovens.
Durante a pandemia, com o fechamento das escolas e a adoção de aulas remotas, as crianças aprenderam, em média, 65% do que geralmente assimilavam em aulas presenciais. Isso equivale a cerca de quatro meses de aulas perdidos.
Crianças em situação de maior vulnerabilidade social aprenderam, em média, quase a metade: 48% do que seria esperado em aulas presenciais.
Os resultados são da pesquisa publicada pela revista Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação. O estudo foi conduzido por pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Durham University, na Inglaterra.
Em setembro, o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) apresentou um estudo inédito, a pedido do Unicef, que advertia sobre 2 milhões de crianças e adolescentes — mais de 1 em cada 10 — de 11 a 19 anos que estão fora da escola. Esse é um dos principais estudos realizados após dois anos de pandemia de Covid-19.
"Os estudantes que farão as provas do Enem nos próximos dias passaram praticamente todo o ensino médio com aulas remotas, sendo o grupo mais afetado pela pandemia", afirma Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco.
"E também é claro que atingiu de maneira desproporcional estudantes em maior vulnerabilidade, que enfrentaram a baixa qualidade de conexão e dificuldades com a internet. Claro que esses jovens estão colocando a máxima energia para superar esses obstáculos, mas sabemos que tiveram a maior exposição negativa no aprendizado; nessas condições, aquele que se destacar nas provas será por superação individual máxima". observa.
Ludmila Serpa, diretora de operações do Instituto Sonho Grande, afirma que a pandemia agravou as desigualdades, principalmente na educação. "Analisamos os dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e do Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) e constatamos que as escolas privadas possuem o dobro de dispositivos por aluno em relação às públicas, número que varia bastante conforme a região do país."
No estudo, os pesquisadores do Instituto Sonho Grande também constataram que os alunos acessam a internet cada vez mais pelo celular do que pelo notebook ou tablet. "O celular não é o mais adequado para a aprendizagem, nem para acompanhar aulas ou fazer tarefas."
Em 2021, o Enem teve o menor número de matriculados desde 2005, com 3,1 milhões. Nesta edição, houve um pequeno aumento no número de inscrições, mas é o segundo menor da história, com 3,4 milhões de participantes — queda ligada diretamente à pandemia.
"A distância social e educacional foi agravada pela pandemia e fez com que muitos estudantes de baixa renda desistissem de prestar o Enem, porque temiam que não fossem bem- sucedidos, principalmente aqueles que tiveram maior dificuldade de acompanhar as aulas", diz Ludmila. "Muitos jovens usam dispositivos e internet da escola, com acompanhamento de gestores e professores, para fazer a inscrição para o exame. A pandemia, que os deixou sem acesso à escola, é, muito provavelmente, também um fator que afetou o número de inscrições."
"Existe um sentimento de impotência que inibiu muitos estudantes de fazer o Enem, mas, mais do que isso, dificultou a realização de um sonho", avalia Henriques.
Como avaliam os pesquisadores, a pandemia deixou sequelas que vão durar por muitos anos, como o desequilíbrio social e educacional, a crise econômica e o desemprego. "Em longo prazo, caso a gente não resolva esses problemas com políticas públicas, a tendência é que essa crise perdure e até aumente na educação, e, por consequência, na sociedade", afirma Ludmila.
Jovens em situação de vulnerabilidade social foram os mais atingidos
TIAGO QUEIROZ/Estadão Conteúdo - 15.06.21Os impactos serão sentidos por anos. "É necessário mostrar que a educação é um meio possível e fundamental para recuperar o aprendizado de milhares de alunos que não conseguiram manter os estudos em casa", observa a diretora do Instituto Sonho Grande. "Agora, é fundamental criar outras formas de amparar esses estudantes que estão vindo por aí e oferecer educação de qualidade e contínua e suporte emocional para que eles que consigam superar essa barreira e ter ascensão social."
O impacto da redução da participação dos estudantes das escolas públicas pode, inclusive, afetar a demografia dos cursos superiores, principalmente os mais concorridos, e o número de profissionais de cada área no futuro. A educação é a principal ferramenta para acabar com as desigualdades no país.
"É fundamental agora investir em uma educação pública de qualidade e inclusiva, que ofereça possibilidades a todos. O ensino médio integral é um caminho que se conecta com a realidade do jovem, a fim de que ele desenvolva competências cognitivas e socioemocionais para formar os jovens integralmente. As escolas tiveram excelentes resultados, e o Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), mesmo na pandemia, está presente em todos os estados", conclui Ludmila.