Era 1941, tempo de ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Um decreto de lei proibiu as mulheres de jogarem futebol ou qualquer outro esporte que não fosse de "natureza feminina". A proibição durou até 1979, e por 38 anos elas foram impedidas de jogar futebol no Brasil.
Isso pode ajudar a explicar por que apenas 14,1% das jogadoras de São Paulo são amadoras, contra 75,2% de atletas que são ou já foram federadas. O esporte feminino não teve tempo de ser visto como um lazer — as meninas tinham de levar a sério a profissionalização.
Mas o fato é que, agora, mesmo com dificuldades, as mulheres ocupam os campos da várzea. Só na Grande São Paulo, são mais de 146 times femininos — apesar de 60% das equipes ainda serem gerenciadas por homens.
Manchete do jornal O Imparcial de 15 de janeiro de 1941
Acervo/Museu do FutebolFoi sobre esse assunto, inexplorado até pouco tempo atrás, que a historiadora Aira Bonfim se debruçou entre 2022 e 2023. Ela desbravou a história do futebol feminino e varzeano no país com o livro Futebol Feminino no Brasil e a pesquisa "Existe futebol de várzea de mulheres em São Paulo?", tornando-se referência no assunto.
Os levantamentos mostram que o esporte tem se estruturado. Mas o que leva as mulheres a jogarem futebol amador? Muitas veem a prática como lazer, uma válvula de escape. Outras aproveitam para aprender a jogar e acompanhar as amigas. Enquanto algumas desejam chegar ao profissional.
O caso de Adriana Rocha, de 37 anos, se enquadra em todos esses quesitos. Ela jogava no time fundado pelo pai, em 1985, o Promorar. No começo, o clube era apenas masculino, mas, nos anos 2000, ganhou uma equipe feminina: Garotas do Promorar.
Hoje, ela e seu marido, Sidnei Pereira Rocha, de 35 anos, treinam o time. Confira a história dos dois no vídeo abaixo.
Já Evellyn Alves, de 17 anos, tem o sonho de se tornar jogadora profissional. Ela gosta de ajudar todo mundo e é um pouco briguenta dentro de campo, mas tem o coração bom.
É dessa forma que a adolescente, como tantas outras que jogam na várzea, se descreve. E, nas partidas pelo Favela do Iporanga, mantém viva a esperança da profissionalização. Ela encontrou no futebol amador um espaço de prática, já que na infância só conseguia jogar com os meninos. Ela sabe que o sonho de se tornar profissional não é fácil, mas não é impossível. E, caso não consiga realizá-lo, continuará como atleta amadora, praticando o esporte que tanto ama — no Iporanga e no PS9, na zona norte da capital paulista, onde também treina.
Motivadas pela paixão, elas se mobilizam para fazer o futebol de várzea feminino acontecer em São Paulo. E os esforços para que o esporte resista em meio a um ambiente majoritariamente masculino são o que faz essas atletas serem verdadeiras campeãs antes mesmo de entrarem em campo.
Segundo a historiadora Aira Bonfim, transporte, locação de espaço e uniformes são os principais entraves financeiros enfrentados pelas equipes femininas.
Maria Amorim, fundadora da Liga Feminina de Futebol Amador, enxerga na prática como essas dificuldades atrapalham o desenvolvimento da modalidade. "O futebol feminino consegue espaço dentro da várzea, nos CDCs (clubes das comunidades), mas geralmente só depois que os homens jogam", explica.
Robson Luiz tem 29 anos e comprova a constatação de Maria. O time que ele auxilia, o Maria Rosa FC, de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, treina em uma quadra pública.
O local, que pode ser livremente usado em qualquer horário, nunca fica disponível nos momentos em que a equipe pode treinar. "Existia uma certa disputa por espaço, as meninas não podem utilizá-lo enquanto os meninos usam. Ainda falta espaço para as mulheres praticarem."
Mesmo quando os times encontram espaços adequados para os treinos, a distância também pode ser um problema. Segundo o mapeamento feito por Aira Bonfim, mais da metade das atletas usa o transporte público para conseguir chegar ao local dos treinos, enquanto 12,9% têm carro próprio e 35,3% vão a pé ou de carona.
Apesar de todo o esforço, o que motiva essas e tantas outras jogadoras de futebol nem sempre é a vontade de chegar ao profissional. As mulheres também são apaixonadas por futebol, e, para muitas, a várzea é um espaço democrático, inclusivo e divertido, além de uma oportunidade de incluir a prática esportiva e competitiva na rotina.
Isso não significa que não brotem grandes craques do fértil terreno varzeano. É o caso da zagueira Lauren Leal, de 20 anos, que jogou a Copa do Mundo de 2023, disputada na Austrália e na Nova Zelândia. E, como muitas outras, seu desejo de profissionalização surgiu aos 10 anos, em um campo de várzea paulistano.
Lauren disputou a Copa do Mundo de futebol feminino e é cria da várzea
Thais Magalhães/CBF - 22/2/2023É nesses espaços, em que mulheres jovens e adolescentes se reúnem para jogar futebol, que o sonho de ir mais longe permanece vivo. É na várzea que é dada a largada para uma corrida que pode ser um tanto quanto longa, especialmente para mulheres periféricas.
Luiz Cláudio, de 35 anos, é treinador do PS9, time campeão da Taça das Favelas. Mas a definição de técnico é pouco para ele: o homem é fundador, motorista, conselheiro e o que for necessário para dar continuidade ao trabalho das suas atletas.
A chegada ao profissional, no entanto, nem sempre é um ponto-final ao tempo de várzea. É o caso de Micaela Souza, de 29 anos, que pertence ao Palmeirinha Futebol Clube, localizado em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo.
Em 2019, o Palmeirinha foi vice-campeão da Taça das Favelas, o maior torneio entre comunidades do mundo. A conquista abriu portas para Micaela. Com o incentivo de sua treinadora, ela participou da seletiva da equipe feminina do Nacional. Em 2020, vestiu a camisa do clube para disputar o Campeonato Paulista. Mas os desafios não pararam.
A equipe não oferecia salário, e Micaela precisava encontrar um jeito de se manter.
Determinada, ela pediu emprestada uma bicicleta e, diariamente, pedalava por 10 km para chegar aos treinos, que começavam às 9h. Quando o treinamento chegava ao fim, às 12h, Micaela passava a entregar comida por aplicativos de entrega.
Foi uma temporada desafiadora. Em 2021, ela participou da seletiva interna da Portuguesa e enfrentou 50 candidatas numa concorrência por apenas seis vagas. Micaela foi selecionada para o time, onde recebia um salário de R$ 500.
Micaela chegou a jogar pela Portuguesa, mas o clube encerrou a equipe feminina de futebol
Arquivo pessoalPermaneceu no clube até 2022, quando o salário das jogadoras chegou aos R$ 1.000. Porém, ao fim da temporada, precisou deixar o clube, porque a Portuguesa descontinuou o departamento feminino de futebol para a temporada 2023.
Viver os próprios sonhos tem seu preço, mas a felicidade de fazer o que se ama compensa. Micaela sonha em retornar ao cenário profissional e, enquanto isso, é muito feliz jogando novamente na várzea.
Com cheiro de café coado no ar, o espaço do clube PS9 traz uma sensação de casa de vó. E é de dentro do gramado, onde praticamente vive, que Soraia Marques viabiliza futebol feminino de graça há 23 anos.
Ao lado do campo, há uma casinha simples, onde ela mora, e um pequeno bar, que traz um pouco de renda. É de lá que Soraia, após o fim do treino de um time de meninas de 14 anos, dá um relato emocionante: o seu trabalho é alvo de constantes ataques e até ameaças de morte. Assista ao vídeo abaixo.
Muitos usam a agressividade para tentar tomar o espaço ocupado por Soraia, mesmo que o campo, localizado no complexo esportivo do Campo de Marte, seja público. Em um desses casos, um homem constrangeu Soraia na frente de sua neta.
"Esse daí me marcou muito, porque a minha neta estava aqui e escutou ameaças horríveis. Ela começou a chorar e conseguiu até filmar, só que apagou por ter ficado com medo", afirma.
Soraia conta ainda que, além da falta de recursos para equipamentos, por exemplo, o ambiente do futebol feminino enfrenta pedidos que não podem ser atendidos.
"Muitas garotas chegam aqui e pedem cesta básica, absorvente, remédio pra cólica, vale-transporte. A gente não tem condições", lamenta.
Maria Amorim é outra pessoa que dedicou sua vida ao futebol. Além de jogadora do clube Apache e treinadora do projeto Futvida, Maria criou a Liga Feminina de Futebol Amador. E tudo isso contribui para que ela sirva de inspiração a outras garotas.
A liga surgiu em 2016 e, desde então, promove festivais e jogos para "fazer o futebol feminino de várzea acontecer". Com isso, Maria tenta realizar o sonho de dar voz às mulheres do futebol.
"As mulheres entram em campo e não se tem um vestiário feminino, não se tem um banheiro feminino. E as meninas vão usar aquele vestiário, aquele banheiro que a galera já usou durante dez, 15 jogos", lamenta.
Maria reitera que existe uma necessidade de criar lideranças que olhem para o futebol feminino e fomentem políticas públicas que mudem esse cenário.
Em campos de terra ou grama, na quadra sintética ou no futebol de salão, a várzea desempenha um papel crucial para todas as meninas e as mulheres que praticam futebol. E ninguém melhor do que quem vive no futebol amador para definir a importância da várzea feminina.
Micaela Silva: "A várzea me abriu muitas portas, me ensinou a lidar com muitas diferenças, fez as pessoas se espelharem em mim e me tornou profissional".
Evellyn Alves: "Se não fosse a várzea, eu acho que eu não teria onde jogar, não teria onde pertencer".
Maria Amorim: "A várzea é esse lugar que eu posso ocupar, distrair minha cabeça, competir, pegar minha chuteira aqui no ombro e bater minha bola tranquilamente. Onde eu posso socializar com as pessoas, fazer a resenha depois, um churrasquinho. Não é um lugar pejorativo, sabe? É um lugar de história e, falando de futebol feminino, de resistência também".
Soraia Marques: "A várzea é um lugar humilde, que recebe de braços abertos pessoas de todos os tipos, de diversos lugares. Muita gente não sabe, mas a várzea emprega muitas pessoas. Eu criei meus filhos na várzea. Tudo isso foi construído aqui, tirado de um campo de várzea, onde também acolhemos as crianças da comunidade para praticar esporte sem ajuda nenhuma do governo. O futebol é tudo. É a disciplina que ele traz, o futebol é minha vida".
Produção e Reportagem: Isabela Ortiz, Victoria Cansian, Maria Eduarda Mustafa e Giovanna Massaro, da ESPM
Edição e Diagramação: Bruno Araujo e Vivian Masutti
Supervisão ESPM: Heidy Vargas
Edição de vídeo ESPM: Bruno Cacuda
Coordenação de Computação Gráfica: Adriano Sorrentino
Arte: Adriano Sorrentino e Gabriella Castelari