“Uma vez um aluno comentou no meu vídeo que estava na porta de uma churrascaria pegando o wi-fi de lá para conseguir ver as minhas aulas. Isso mexeu muito comigo.”
O estudante, citado pelo youtuber Felipe Araújo, de 25 anos, um dos destaques do relatório da plataforma de vídeos no ano passado, era aluno da rede pública brasileira — realidade de cerca de 86% dos estudantes do ensino médio, segundo o Censo Escolar de 2023.
Nesse sistema, que representa a diversidade do país, mas que precisa de uma lei de cotas para ver seus alunos na universidade gratuita, os jovens convivem desde cedo com problemas sociais nem sempre evidentes nas escolas particulares: pobreza, violência, assédio, racismo, fome e, claro, analfabetismo.
Sim, porque não raro um adolescente chega aos anos finais do ensino fundamental público sem saber ler nem escrever. Em um efeito bola de neve, ele despenca no ensino médio com uma série de lacunas que não só comprometem seu aprendizado como tornam desleal concorrer no vestibular com quem frequenta a rede particular.
A educação privada, aliás, é hoje um privilégio para poucos. Prova disso é que o setor foi responsável, segundo dados agora de março, por puxar a maior alta da inflação desde fevereiro do ano passado: o ensino médio teve um aumento de 8,51%, enquanto o do fundamental foi de 8,24%.
O que esse aluno citado no início do texto estava fazendo — ali, sentado na calçada, implorando por um sinal —, era justamente tentar ultrapassar esse abismo vendo vídeos gratuitos na internet.
Os responsáveis pela postagem desse material, que vem revolucionando a maneira de ensinar e democratizando o acesso à educação, são os edutubers: professores influenciadores que viram seus canais explodirem de audiência durante a pandemia do coronavírus.
A professora Débora Aladim
Reprodução/Acervo PessoalOutra estrela, com mais de 3,6 milhões de seguidores, a professora de história Débora Aladim, de 26 anos, descreve seu trabalho como um exercício de humildade.
“O que mais me emocionou foi trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos [o EJA]. É um desafio fazer com que tantas pessoas diferentes compreendam uma mesma vídeoaula de 40 minutos”, conta ela — que desenha, faz animações, canta música e até passa maquiagem para tornar o conteúdo que posta mais atraente.
“Eu já tive até uma síndrome de impostora, de achar que tinha gente mais gabaritada do que eu para estar ali. Mas as pessoas se identificam comigo. Eu começo os vídeos toda zoada e vou me arrumando”, completa.
Diretor de parcerias para TV, jornalismo e esportes do YouTube no Brasil, Eduardo Brandini lembra que, além de ser uma maneira de divulgar conhecimento, a plataforma é também uma oportunidade para os edutubers.
“Na década passada, quando começou o programa de monetização da plataforma, as pessoas passaram a enxergá-la também como um lugar para empreender. E a audiência cresceu cada vez mais com a popularização dos aparelhos celulares”, diz Brandini [veja a entrevista completa abaixo].
Muitos professores conseguiram, assim, abandonar a rotina extenuante e mal paga da sala de aula no Brasil. Em 2020, a média salarial de quem lecionava 40 horas por semana na rede estadual não passava dos R$ 4.947.
Segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), vinculado ao MEC (Ministério da Educação), nesse mesmo ano, durante a gestão Jair Bolsonaro, 631 municípios e 1 estado, o Alagoas, pagavam menos do que o mínimo nacional, de R$ 2.886,24, aos docentes.
O R7 apurou que não são poucos os edutubers brasileiros entre os 8% dos influenciadores que afirmam receber mais de R$ 10 mil com a profissão — recorte divulgado neste mês pela agência especializada em marketing de influência Influency.me.
Eles, geralmente, começam com a monetização, sempre em dólar, do seu canal. E é aí que tem início um jogo de paciência.
Para ganhar dinheiro na plataforma é preciso de um investimento inicial, já que toda conta aprovada ali deve ter mais de mil inscritos e 4.000 horas de conteúdo assistido durante os 365 dias anteriores.
Quem está começando pode ganhar, dependendo do caso, US$ 1,45 (cerca de R$ 5) a cada mil visualizações de conteúdo. Pode parecer pouco, mas, no caso dos edutubers, a grana vem também de cursos pagos, podcasts, dicas de produtos em lojas online e eventuais patrocinadores.
Os canais de português e matemática ainda lucram com o filão dos concurseiros, como são chamados aqueles que dedicam a vida a tentar uma vaga nos concursos públicos. Essa bolha, contudo, não deixa de abarcar discrepâncias: há as estrelas e há o restante do Universo.
O lucro do YouTube com tudo isso é bilionário, principalmente com as propagandas, que irritam os internautas.
No fim do ano passado, a plataforma foi processada pelo consultor de privacidade Alexander Hanff, na Irlanda, acusada de praticar espionagem para tentar impedir o uso de adblockers, como são conhecidos os programas que bloqueiam anúncios.
Outro exemplo bem-sucedido é o da professora de inglês Carina Fragozo. Aos 36 anos, ela é referência no ensino do inglês e dona do canal English in Brazil, com mais de 1,8 milhão de inscritos.
Postado há cinco anos, o vídeo “As 50 palavras mais usadas no inglês” é o mais visto, com 2,3 milhões de views. Carina também é autora de um best-seller, o “Sou péssimo em inglês” (Harper Collins, R$ 30,50) e atua como palestrante.
Além disso, seu perfil no Instagram tem mais de 540 mil seguidores.
Ela conta que, quando estava fazendo doutorado em linguística na USP (Universidade de São Paulo), sentia vergonha de dizer que tinha um canal na internet. Mas a fama veio mesmo assim. Sem querer, seu primeiro post, “Como turbinei o meu inglês em pouco tempo”, acabou viralizando.
Logo, a jovem estava com 20 mil seguidores. E, ao fim do doutorado, já tinha 600 mil. “Ganho só com o vídeo mensal de um patrocinador o que um professor ganha em um mês dando aula em uma faculdade”, conta ela.
Hoje, Carina tem uma equipe de 25 pessoas, incluindo seu marido — engenheiro que deixou o emprego para trabalhar com ela.
“O jogo virou mesmo. Não sei porque dei tanta importância para a opinião dos outros. Eu poderia ter brilhado antes. Sou uma autoridade no país e a vendagem do meu livro foi algo que mudou a minha vida. As pessoas estavam pagando para ler o que eu escrevi.”
Carina triplicou suas visualizações recentemente com a publicação de vídeos curtos.
“Os mais longos continuam sendo o carro-chefe do canal. Mas esses ‘shorts’ são uma isca para atrair o aluno", explica.
E deixa claro que gravar um vídeo para o canal é completamente diferente do que gravar uma aula.
"Tem que prever as perguntas e não dá para fazer generalizações rasas. Tem muita gente da terceira idade que me segue. Tipo a avó que tem um neto que nasceu nos Estados Unidos e quer aprender inglês para conseguir conversar com ele."
Outro destaque no relatório anual da plaraforma é Felipe Araújo, paraibano da periferia de Campina Grande, citado logo no início desta reportagem.
Ele concluiu o ensino médio público em 2016, mas não conseguiu emprego. Decidiu, então, estudar por conta própria, usando vídeos online para se preparar.
Araújo é um caso fora da curva: desenvolveu sua própria metodologia e, seis meses depois, foi aprovado na universidade. A conquista o motivou a criar seu próprio canal, que hoje tem mais de 780 mil inscritos.
“Saí do ensino médio sem saber fazer divisão. Sou o primeiro da família a ter educação superior. A internet me salvou. Hoje tento passar para o aluno da rede pública que ele é capaz de concorrer com aquele cara que paga R$ 1.000 de cursinho.”
Araújo atribui seu sucesso ao cronograma de estudos que criou e compartilha, gratuitamente, abordando tudo o que é preciso para prestar o Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio — principal porta de entrada do ensino superior no Brasil. O arquivo já teve 1 milhão de downloads.
“O sistema educacional brasileiro afasta o aluno dos estudos. Meu público é aquele que não tem dinheiro para estudar. O conteúdo de história que a Débora Aladim posta foi peça-chave na minha preparação”, conta. “Ensinar é a minha paixão e, graças ao YouTube, virou minha profissão”, conta ele.
Dona do maior canal sobre anatomia liderado por uma mulher no mundo, o Anatomia e Etc., a fisioterapeuta Natália Reinecke, de 39 anos, conta que começou a fazer seus roteiros com base nas dúvidas surgidas na sala de aula.
Hoje ela é uma das principais fontes online para estudantes da área da saúde ou que se preparam para o vestibular.
“Percebi que muitas delas eram as mesmas e criei um canal. São conhecimentos que ajudam a traduzir a ciência e informações que muitas vezes estão em inglês. Algumas questões são bem simples, como ‘é verdade que o soluço é contagioso?’”, conta ela — que tem mais de 1 milhão de inscritos na rede.
Natália hoje é dona do próprio negócio. “Tenho cursos que são comercializados e ganho muito mais do que em sala de aula”, fala ela, que já foi docente do Senac e trabalhou com atendimento fisioterapêutico de pacientes com problemas neurológicos e ortopédicos.
Outra que assumiu a frente das finanças é a professora de português Letícia Góes, dona do canal Português com Letícia, com 1,2 milhão de inscritos. Há dois anos, também deixou a sala de aula para se dedicar exclusivamente aos vídeos e é mais uma que levou o marido com ela.
A experiência na rede pública, ela destaca, foi essencial para o sucesso na internet. "Foi onde aprendi a falar com essa diversidade enorme de públicos", conta [veja a entrevista completa abaixo].
Integrante do Nerdologia, canal referência em ciência e cultura pop, com mais de 3,3 milhões de seguidores, o professor de história Filipe Figueiredo, de 39 anos, aposta em temas que sabe que serão abordados na sala de aula.
“O importante é deixar o menor número de pontas soltas possível, pois elas podem criar haters. As pessoas sempre vão contestar por que você não desenvolveu um assunto ou falou mais sobre tal coisa”, fala Figueiredo.
Formado pela USP, ele conta que nem sempre seu trabalho é reconhecido por seus pares.
“Ou a valorização é enorme, ou o recalque é muito grande, de gente que fala: ‘Ah, quando você vai parar de fazer videozinho para o YouTube?’.”
Os episódios apresentados por Figueiredo são minuciosamente pesquisados e produzidos. Falam de descobertas científicas revolucionárias e trazem relatos históricos fascinantes.
Um dos mais vistos é sobre a peste negra, pandemia que teria matado 200 milhões de pessoas no século 14. O conteúdo foi assistido mais de 1,6 milhão de vezes.
“Outro dia, estava no Jalapão e me reconheceram. Formou uma fila em plena cachoeira para conversar comigo. Foi surreal”, conta a professora de matemática Gisleine Correa Bezerra, de 39 anos, dona de um canal com mais de 3,5 milhões de inscritos, o Gis com Giz Matemática.
Ela começou a gravar vídeos dinâmicos e divertidos, ao lado do marido, durante a pandemia do coronavírus, para ajudar alunos que estavam com dificuldade.
“Trabalhava de dia, gravava à noite e editava de madrugada. Meu primeiro vídeo foi horrível. Mas não apaguei. Depois fui me soltando e melhorando”, conta ela, que logo percebeu ali uma oportunidade.
Nascida em Fartura, cidade paulista próxima à divisa com o Paraná, Gis é mestre no ensino da disciplina e resolveu deixar o emprego com carteira assinada após 15 anos para investir na empreitada online. Hoje, mora em Londrina (PR).
O primeiro investimento, de R$ 20 mil, já se pagou, e agora ela e o marido ganham muito mais do que antes. “Mudou a nossa vida. E a gente ainda trabalha de qualquer lugar”, conta.
Em viagem recente a São Luís, no Maranhão, Gis conta que foi reconhecida até pelo policial que a parou na estrada. “Ele me contou que usava meus vídeos para estudar para concurso.”
O canal já conta com mais de 300 milhões de views. Um dos vídeos mais acessados, com dicas de como memorizar a tabuada, foi visto quase 10 milhões de vezes. Divisão, fração e porcentagem são outros assuntos populares.
“Tenho muitos seguidores que são avós e querem relembrar a matéria para ajudar os netos”, conta Gis.
Quem também ficou famosa na internet ao ensinar matemática foi a professora Angela Correia. Ela é outra que agradou aos concurseiros de plantão, logo em 2015, quando postou dicas de conteúdo básico da disciplina na plataforma.
"E aí eles ficaram assim: 'Nossa, professora, você parou de postar o conteúdo? Por que você parou?' E foi naquele momento que eu percebi. Eu não tinha noção do impacto que as minhas aulas teriam ali." [Veja entrevista completa abaixo.]
Em 2022, a plataforma lançou uma nova versão do YouTube Edu, canal realizado em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Ele reúne conteúdo educacional alinhado à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) de forma gratuita, com o objetivo de auxiliar estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio em diferentes áreas do conhecimento.
Sem dúvida, os edutubers ajudam a complementar o que é um papel do estado. Mas o buraco educacional no país é bem mais embaixo. Sozinha, a internet ainda não dá conta de alfabetizar ninguém e acaba se tornando mais um mecanismo de exclusão para os 10 milhões de brasileiros que não são capazes de compreender nem mesmo o título desta reportagem.
Reportagem, Edição e Diagramação: Vivian Masutti
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Adriano Sorrentino e Sabrina Cessarovice
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza
Operação de Captação Audiovisual: Guilherme Cabral
Produção Audiovisual: Julia de Caroli e Matheus Mendes
Edição e Finalização: Chrystian Martins