Os transtornos alimentares são doenças caracterizadas por hábitos de alimentação irregulares e sofrimento grave, como define a Sociedade Brasileira de Diabetes. O psiquiatra Djacir Gurgel de Figueiredo Neto, de 34 anos, formado em medicina pela Universidade de Fortaleza e Chefe da Psiquiatria do Hospital Moriah, define o TA como “um grupo de alterações primárias dos hábitos alimentares que podem resultar, ou não, em uma alteração perceptiva da constituição física da pessoa”.
Segundo Jônatas de Oliveira, nutricionista do comportamento formado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), os distúrbios vão muito além dos efeitos no corpo: “As pessoas que sofrem do transtorno alimentar acabam entrando num emaranhado psicopatológico, que é um funcionamento da doença mental, que afasta elas de um pertencimento, do afeto, da conexão e da autonomia”.
Alessandra Begliomini, ou apenas Leka, tem 49 anos, e aos 27 sofria com um distúrbio alimentar que foi exposto em rede nacional, ao participar de um reality show, em 2001. Ela diz que, na época, a doença era muito nova e não tinha nem nome.
Assim como Leka, que desenvolveu transtornos alimentares aos 10 anos, as influenciadoras Mirian Bottan, Bertha Salles e Maíra Medeiros também tiveram tais problemas iniciados na infância. Quando tinha apenas 13, Mirian desenvolveu bulimia. Era uma criança muito ansiosa e, por conta disso, teve que enfrentar não apenas os episódios bulímicos, mas também os ansiosos.
O nutricionista e futuro psicólogo espanhol José Francisco López-Gil alerta sobre a relação cíclica entre os transtornos alimentares e a deterioração da saúde mental. Ou seja, um problema pode levar ao outro, e vice-versa. “Os transtornos alimentares estão associados a inúmeros problemas de saúde, como a deterioração da saúde mental. Podemos ter maiores chances de depressão, estresse, ansiedade, grandes problemas de imagem corporal, autoestima…", conclui o responsável pela pesquisa “Proporção global de transtornos alimentares em crianças e adolescentes: uma revisão sistemática e meta-análise", publicada em fevereiro deste ano, no JAMA Pediatrics (Journal of the American Medical Association).
O especialista confirma que durante a adolescência os jovens estão mais preocupados com a própria imagem e buscam ser aceitos pela sociedade, sendo as meninas as mais influenciadas por estereótipos ao redor do mundo.
“Eu nasci em 1984, então eu vivi os anos 80, 90 e 2000 na minha infância e adolescência. Alguns grandes absurdos daquela época eram muito normalizados, não eram coisas que haviam sido problematizadas ainda”, revela Maíra Medeiros.
Maíra é famosa nas redes sociais e tem um canal no YouTube, com quase 2 milhões de seguidores. Ela expõe diversos assuntos, dentre eles, seus problemas com o próprio corpo: “Viver a adolescência no final dos anos 2000, todo mundo tinha a necessidade e queria ser muito magro. Isso colaborou muito para eu ter uma imagem de perfeição, de mérito e de conquista para eu ser uma mulher de sucesso: só iria acontecer se eu correspondesse aos padrões de beleza.”
O nutricionista Jônatas de Oliveira explica que todos os transtornos têm ligação com a imagem corporal. “Quanto mais grave o transtorno alimentar, mais grave a desorganização em todos os setores da vida dessa pessoa”, acrescenta.
Segundo o Guia Prático da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Medicina da USP, os transtornos alimentares mais comuns são a anorexia (0,4%), a bulimia (1 a 1,5%) e a compulsão alimentar (1,5% a 4,5%). Em relação à taxa de mortalidade, a anorexia apresenta o maior percentual, de 5% a 20%, já a bulimia, de 0,3% a 3%.
A Organização Mundial da Saúde mostrou que estes três transtornos afetam cerca de 4,7% da população em geral, mas podem chegar a 10% entre os jovens. A tríade se desenvolve principalmente durante a infância e a adolescência, e pode ser postergada à vida adulta se não tratada corretamente.
As redes sociais são grandes facilitadores da disseminação de um padrão de corpo ideal.
O psiquiatra Djacir Gurgel dá algumas dicas para a família e amigos conseguirem perceber os sintomas do TA. Ele ressalta que é extremamente importante que a pessoa afetada se sinta acolhida. “O mais importante é se mostrar disponível, presente e aberto à conversa, de forma empática”, comenta.
Veja abaixo relatos reais de quatro mulheres que convivem diariamente com algum desses transtornos.
Bertha Salles, de 30 anos, conta que tudo começou aos 8. Seu relacionamento com a comida, que até então era saudável, desandou. Nessa idade, ela parou de comer e passou a ter nojo. “Cheguei a cuspir comida, vomitar, jogar tudo fora", revela.
Bertha Salles, de 30 anos, conta que tudo começou aos 8. Seu relacionamento com a comida, que até então era saudável, desandou. Nessa idade, ela parou de comer e passou a ter nojo. “Cheguei a cuspir comida, vomitar, jogar tudo fora", revela.
Quando entrou na adolescência, Bertha desenvolveu compulsão alimentar e engordou além do saudável, o que a levou a pré-obesidade, colesterol e pressão altos.
Durante uma visita à pediatra, a médica lhe disse: “Você está em uma idade que vai afetar suas amizades, você não vai conseguir namorar. Então emagreça ou você não vai conseguir suceder bem em sua vida social”. A partir de então, a pequena Bertha, aos 12 anos, iniciou sua jornada com nutricionistas e psicóloga. Até hoje ela frequenta a terapia.
Ela começou a se pesar todos os dias e seu ciclo menstrual foi prorrogado para os 16 anos devido à falta de saúde. Em 2020, ela teve uma recaída e entrou em uma compulsão seguida de alcoolismo. “Um dia eu estava em casa, bebi demais, não tinha comido nada, fumei demais e desmaiei sozinha”, relembra Bertha.
Esse episódio a assustou e foi decisivo para que ela voltasse a buscar uma nova forma de se desvencilhar dos distúrbios.
A doutora que cuidava de Bertha sugeriu medicação, mas ela acreditou que conseguiria sozinha e, de fato, chegou a tentar por dois meses. Bertha percebeu que seus esforços não estavam surtindo efeito e aceitou tomar os remédios indicados. Ainda em 2020, iniciou a prática regular de exercícios físicos. Até a flexibilização da pandemia, em 2022, chegou a perder mais de 20 kg.
Hoje, Bertha Salles busca mostrar ao seu público que é possível falar e lidar com a saúde física e mental, que estão muito atreladas. “O importante é não deixar chegar em nenhum extremo. Não deixar de comer um pedaço de pão ou de tomar uma cerveja pelo sentimento de culpa. Não se deixar privar”, explica.
Em 2024, a influenciadora considera que seu corpo está dentro do padrão, mas sua forma corporal ainda é uma grande questão. “Não sou uma pessoa gorda, não tenho um corpo que não está dentro do padrão, mas [isso] ainda é uma grande questão na minha cabeça”, conclui.
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(Reprodução/Instagram)Leka não se considerava uma criança com sobrepeso, mas também conta que não se encaixava no padrão magro e alto da geração dos anos 1990. Sempre procurava formas de se esconder com camisetas largas e panos amarrados para ir à piscina.
Leka oscilava entre comer muito ou não comer nada.
A união entre as dietas restritivas, crises compulsivas e uso indevido de laxantes afundavam Leka cada vez mais no próprio transtorno. Quando completou 20 anos, procurou ajuda médica. A profissional a diagnosticou com bulimia, apesar de ainda não provocar o próprio vômito (traço característico em pessoas bulímicas). Leka utilizava de algo diferente, como diuréticos e medicamentos que a faziam liberar o alimento consumido muito rapidamente. O uso contínuo e indiscriminado dos remédios levaram a influenciadora a desenvolver problemas de saúde graves: “Hoje, faço exames regularmente para acompanhar o dano que tive nesse período”, conta.
De repente, Leka se viu diante de uma oportunidade: participar de um reality show. Mesmo com a terapia, a exposição na TV aberta a fez desenvolver traumas profundos, transportando-a de volta à obsessão pelo seu corpo. “Eu quase enlouqueci ali dentro [do programa]”, relembra. Suas crises de bulimia foram exibidas para todo o país, e quando saiu, se viu atordoada com a proporção que aquilo tomou.
Hoje, Leka é palestrante e comunicadora sobre os desafios que as mulheres enfrentam para aceitar o próprio corpo. Mesmo depois de tanto tempo, ela não percebe mudanças positivas na sociedade com relação aos transtornos alimentares, e acredita que as redes sociais corroboram para a dismorfia corporal.
Mirian Bottan, de 37 anos, é uma influenciadora digital com quase meio milhão de seguidores. Nas redes sociais, tem fotos sorrindo e vídeos informativos sobre como lidar com a saúde mental e corporal. Na bio de seu Instagram, Mirian descreve seu perfil como “uma conversa sobre transtornos alimentares, uso abusivo de álcool/substâncias e saúde mental”.
Ela desenvolveu depressão aos 14 anos e afirma que os concursos de beleza que faziam parte da sua vida nessa época foram um dos fatores determinantes para seu adoecimento. Ela buscava dietas para poder encaixar seu corpo dentro do padrão das competições.
No caso de Mirian, existe um fator que chama atenção ao longo de sua história: a migração de um transtorno para o outro.
Durante o tratamento de bulimia, ela também desenvolveu a ortorexia. “Passei a comer de uma forma muito regrada, coisas orgânicas, limpas. Tinha uma preocupação muito grande com a qualidade da alimentação”, explica. A mudança ocorreu quando, na tentativa de tratar a bulimia, Mirian buscou uma nutricionista esportiva para se incentivar a praticar exercícios físicos: “Queria recuperar o músculo que tinha perdido”.
Atrelado ao novo estilo de vida, Mirian ainda fazia uso de diuréticos, laxantes e forçava o vômito. Nessa época, as redes sociais estavam tomadas pela necessidade de expor uma “vida fitness”, que de saudável não tinha nada. “Muitas influenciadoras fitness têm transtornos alimentares e eu fui uma delas. Acompanhava diversos perfis”, revela. Ela afirma que postava muitas fotos do seu próprio corpo e de dietas, dava dicas de como manter a saúde em dia e conversava com seus seguidores sobre os temas. Mas a verdade era outra: Mirian não só utilizava de medicamentos para manter-se no padrão desejado, como também estava enfrentando a migração de dois distúrbios alimentares.
Desde 2016, Mirian está em remissão. Hoje, ela acredita que a prática de exercícios físicos é importante para tratar a saúde mental, já que faz parte de sua rotina três vezes na semana. Além disso, também fala sobre a necessidade de ter mais de uma válvula de escape, como a escrita, pintura, tocar algum instrumento, etc., que devem ser identificadas por meio de um processo terapêutico. Ela ressalta a importância de buscar ajuda: “Por mais que a gente ache que sozinho damos conta, não dá. É muito difícil”.
Hoje, Bottan utiliza da internet para disseminar sua experiência, e tenta falar sobre o assunto de uma maneira consciente. Seu principal objetivo é desenvolver conteúdos de alerta e educação sobre o tema.
Maíra Medeiros considerava seu corpo fora do desejado. A busca por esse ideal tornou seu julgamento comprometido. Quando via as fotos do passado, percebia o quão magra era e passava a fazer dietas para ter aquele corpo de volta. Assim, a obsessão tornou-se cíclica. A comparação não era só com os outros corpos, mas, sim, com ela mesma.
Assim que terminou o Ensino Médio, Maíra passou a frequentar um cursinho aos 18 anos. Neste período, seu ex-namorado da época terminou com ela “para ficar com uma menina muito padrão”. Com isso, não se sentia bonita e magra o suficiente, e sacrificou os estudos para melhorar seu desempenho na academia: “Eu ia três vezes por dia, de manhã, de tarde e de noite. Eu queria que ele visse o que ele perdeu, mas nada mais era do que falta de amor-próprio”.
“Você pensa que uma menina de 11 anos entra nisso e hoje em dia está ok? O estrago que a pressão estética causou na minha vida é eterno. Ouvir com essa idade que você não vai arranjar namorado me trouxe muita tristeza", comenta.
Por volta dos 27 anos, Maíra passou a procurar mais sobre o assunto, a fim de se desvencilhar das pressões estéticas impostas.
Dali alguns anos, aos 31, Maíra já tinha conversado com pessoas com o mesmo pensamento disruptivo sobre a dismorfia corporal. Por conta disso, ela começou algo que, inesperadamente, tornou-se importante na sua vida: o canal no YouTube.
Desde então, a influenciadora busca ter um corpo saudável, independente dele ser magro ou gordo. A terapia é sua grande aliada nessa busca. Maíra nunca escondeu seus problemas com a própria imagem e segue sendo um exemplo e inspiração para aqueles que a seguem.
O diagnóstico dos distúrbios alimentares deve ser feito por psicólogos e psiquiatras. “Nós [nutricionistas] fazemos um rastreamento e podemos apontar e indicar sintomas”, diz Jônatas de Oliveira.
A busca por tratamento é essencial. O psiquiatra Djacir Gurgel explica que os transtornos alimentares devem ser manejados de forma multidisciplinar, com o auxílio do profissional médico, nutricionistas e psicólogos. Ele também fala sobre o uso de medicamentos, que “não costumam ser um problema de saúde quando bem conduzido pelo médico”, e devem ser utilizados durante um período específico para ajudar o paciente: “A ideia é que a medicação entre e depois saia”.
A negligência pode agravar o distúrbio e torná-lo crônico, colocando a vida do afetado em risco. O Sistema Único de Saúde (SUS), presente em todo o território brasileiro de forma gratuita e pública, está capacitado para atender esses casos. Na cidade de São Paulo ligue 192.
Reportagem: Cecília Marin e Isabela Ortiz, estagiárias do R7
Edição: Maíra Pracidelli
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte: Amanda Arashiro
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coord. de Vídeo e Prod. de Conteúdo: Danilo Barboza
Produção Audiovisual: Denise Marino, Guilherme Estevam Silva e Julia de Caroli
Operação de Captação Audiovisual: Guilherme Cabral
Edição e Finalização: Caique Ramiro