"A Juliana tinha dois filhos pequenos. Ela e o marido trabalhavam aqui na mina. A enfermeira Angelita era loira, tinha uma cicatriz no joelho e usava um anel em um dos dedos. Já o Aroldo gostava de tirar um cochilo na hora do almoço. Geralmente, dentro de um dos contêineres. A Maria de Lurdes é a única que não tinha ligação com a Vale. Ela era turista e estava hospedada na Pousada Nova Estância".
É assim, pelo primeiro nome e com detalhes, que o tenente Vagner Gavioli, líder do monitoramento das equipes de buscas em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, se refere a cada um dos ainda 22 desaparecidos da maior tragédia humana e trabalhista do Brasil. "Elas não são só número, têm nome, sobrenome e história de vida. O seu Carlos, por exemplo, tem filhos adultos já”, comenta o bombeiro sobre a penúltima vítima encontrada pela equipe, no início deste mês.
No vídeo abaixo, o R7 Estúdio leva você para dentro da mina Córrego do Feijão, em uma experiência em 360º, para conhecer a região destruída no desastre. Para assistir pelo celular, clique aqui.
Às 6h da manhã, minutos antes de o sol nascer, o grupo de 145 homens e mulheres do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais se reúne para receber as orientações do dia. O ritual, que se repete há seis meses, marca o início da missão que parece sobre-humana: encontrar os 22 desaparecidos sob 10 milhões de metros cúbicos de lama. A área, equivalente a 485 campos de futebol, foi varrida pela enorme onda de rejeitos de minério da barragem da Vale, no dia 25 de janeiro deste ano, matando 248 pessoas.
A relação de proximidade foi a maneira que Gavioli encontrou para realizar o trabalho. Grande parte das informações usadas no serviço foram colhidas pela Polícia Civil e pelo Corpo de Bombeiros. O militar explica que é da sua personalidade buscar todos os detalhes das vítimas para fazer conexões. "Eu não fico centrado só no que me foi passado. Gosto de me inteirar sobre todas as situações."
Vagner Gavioli dispensa os números e trata cada desaparecido pelo nome
Pablo Nascimento / R7O tenente pertence ao batalhão de Piumhi, cidade da região Oeste de Minas, que fica a 243 km de Brumadinho. Nos últimos meses, ele passou a alternar a rotina de trabalho, atuando uma semana na terra natal e a seguinte na cidade vitimada pela barragem.
Agora, o bombeiro também conhece nos mínimos detalhes o enorme descampado tomado pela lama. Dirigindo uma caminhonete fornecida pela mineradora Vale para auxiliar nas buscas, ele diz que é capaz de andar durante a noite, sem se perder, nas estradas abertas entre os 4 km² de rejeitos derramados na região.
— No início foi difícil, mas agora já conheço tudo como a palma da minha mão.
O interesse de ir além das informações recebidas faz Gavioli buscar detalhes que podem acelerar o fim de uma das missões mais importantes de sua vida. A ideia do militar é se aproveitar dos dados para chegar até cada um dos 22.
— O seu Carlos trabalhava com uma pessoa que ainda não foi encontrada. Saber disso é importante porque nos leva a crer que ela possa estar próxima ao local onde ele foi achado.
Juliana Creizimar de Resende Silva, de 33 anos, é uma das 22 histórias que a equipe trabalha para desenterrar da lama. A analista trabalhava em um dos armazéns de uma empresa terceirizada da Vale, dentro da mina Córrego do Feijão.
Juliana Resende e seu marido, Dênnis Silva, trabalhavam na mina da Vale
Reprodução/FacebookO marido de Juliana, Dennis Augusto da Silva, de 34 anos, também era funcionário da mineradora e foi igualmente levado pela onda de rejeitos. O corpo dele já foi encontrado e enterrado. O casal, que se conheceu na empresa, deixou dois filhos gêmeos, que na época do colapso tinham 10 meses de vida.
Por trás de Gavioli, uma equipe formada por membros do Corpo de Bombeiros, Polícias Civil e Militar e Defesa Civil trabalham para garantir a continuidade da operação, que é considerada a maior do Brasil. Nestes seis meses, 2.300 bombeiros militares de 14 Estados e de Israel colaboraram com o trabalho.
Apenas no serviço de inteligência da corporação de resgate, 30 agentes traçam os passos que cada colega de farda precisa dar. A tenente Luíza Mateus Marçal, de 27 anos, foi uma das que inovou na operação ao ajudar o grupo a completar o banco de dados fornecido pela Polícia Civil com informações sobre as vítimas.
Em fevereiro, um mês após a tragédia, a militar foi escalada para fazer parte da missão. Quando Luíza se juntou ao grupo, 90 pessoas ainda não haviam sido encontradas. Do total, 25 eram funcionários da terceirizada Reframax, responsável por fazer obras na mina Córrego do Feijão.
Na tentativa de acelerar o processo, a tenente encontrou em Romero Xavier, gestor de produção na terceirizada, um parceiro ideal. "Xavier conhece o ritmo de trabalho das empresas que prestavam serviço para Vale."
Ele não sabia, mas ao sair mais cedo do trabalho naquela sexta-feira para fazer exames médicos, acabou escapando de estar entre os 36 colegas que morreram na tragédia.
Com as informações fornecidas por ele, Luíza conseguiu fazer uma projeção sobre onde estaria cada um dos desaparecidos da Reframax. Para completar o trabalho, a militar foi em busca dos familiares para saber mais sobre a vida de cada um deles.
Tenente Luíza foi homenageada com um quadro pelo trabalho feito em Brumadinho
Arquivo pessoal / Luíza MarçalO empenho para relacionar as informações resultou na localização dos 25 funcionários que trabalhavam na mesma terceirizada que Xavier. No mês de junho, todos eles já haviam sido identificados. Ao olhar para trás, a tenente revela que não imaginou que alcançaria tal feito. Ela tinha passado por uma cirurgia pouco antes da tragédia e sequer esperava poder contribuir com a operação.
Para dar conta de varrer a área atingida pelos 10,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos, os bombeiros contam com 203 máquinas pesadas, drones, equipamento de monitoramento por vídeo e cães. O volume de lama daria para construir quatro vezes a maior pirâmide do Egito, que mede 140 metros de altura.
Uma equipe técnico-científica corre contra o tempo para saber de quem são os corpos ou segmentos localizados pelos bombeiros. Passados seis meses, identificar as vítimas ainda é possível graças a uma série de procedimentos adotados pela Polícia Civil. No mês de julho, foram mais dois nomes confirmados: Carlos Roberto Pereira, de 62 anos, e Evandro Luiz dos Santos, de 50 anos.
Graças ao empenho destas equipes, Josiane Melo conseguiu fazer o enterro da irmã Eliane de Oliveira Melo, então com 39 anos. A engenheira civil trabalhava na mina do Córrego do Feijão pela terceirizada Reframax. Quando a barragem estourou, Eliane estava grávida de cinco meses, à espera do primeiro filho.
Josiane lembra que na manhã seguinte à tragédia, ela entrou no lamaçal em busca de Eliane, na esperança de encontrar a irmã ainda com vida. Contudo, o corpo só foi localizado 67 dias depois.
Mesmo após ter enterrado a irmã, Josiane pontua que a história ainda não chegou ao final. Ela é uma das líderes do grupo “Família dos Não Encontrados”, que se reúne com os órgãos envolvidos nas buscas todas às quartas-feiras, em Brumadinho.
No encontro, parentes das vítimas ainda não localizadas recebem informações sobre os processos adotados na operação de buscas, tiram dúvidas e levam reclamações. Josiane diz que faz questão de continuar fazendo parte do grupo, mesmo após Eliane ter sido localizada.
— Viramos uma família de dor. Um ajuda o outro.
Eliane (esq.) era muito próxima à irmã Josiane (dir)
Arquivo Pessoal / Josiane MeloAlém de defender a continuidade das buscas pelas 22 pessoas, a associação luta pela reparação dos danos causados pela tragédia e pela construção de um memorial para, segundo Josiane, “não deixar o crime cair em esquecimento”.
A empregada doméstica Iolanda de Oliveira Silva, de 48 anos, é uma das mães que ainda aguardam notícias dos filhos. No dia em que a barragem entrou em colapso, Robert Ruan Oliveira Teodoro, de 19 anos, estava no complexo minerário. O jovem trabalhava há sete meses como ajudante geral em uma empresa que prestava serviços para Vale.
A dor de não ver mais o caçula voltando do expediente de trabalho fez Iolanda buscar uma nova casa de aluguel para morar. Junto, ela levou todos os pertences do filho, mas não teve coragem de retirar as roupas dele da mala. A doméstica desabafa que também não consegue acompanhar as reuniões das famílias das vítimas porque qualquer lembrança que tem de Robert a deixa desestabilizada.
Ainda assim, encontrar o filho vivo é um sonho que acompanha Iolanda diariamente. "Eu sonhei que o Robert me ligou e disse que sobreviveu porque conseguiu se esconder em buraco."
Veja quem são as 22 pessoas desaparecidas:
Dois dias depois da tragédia, a reportagem do R7 encontrou Mário Lúcio Fontes na porta de sua casa, no parque da Cachoeira, uma das comunidades mais atingidas pela lama em Brumadinho.
Naquele dia, Mário relatava a tristeza que sentia por perder vizinhos e conhecidos no desastre. A família se salvou por muito pouco, exatos 30 metros separam a casa dele do rastro de lama, que hoje se transformou em um gramado verde. Dois vizinhos de Fontes, entretanto, não tiveram tanta sorte. Um deles teve o corpo resgatado quatro meses depois do desastre.
Metade de seu sítio, onde havia uma área de mata e um riacho rodeado por um caminho de pedras cuidadosamente construído por ele para que os netos e a família se divertissem, foi completamente dizimado.
Seis meses depois, o R7 visitou novamente Mário. Ao chegar em sua casa, no Parque da Cachoeira, numa tarde de domingo, por alguns instantes tivemos dúvida de ter encontrado a pessoa certa. A certeza só veio ao ver a filha e o neto dele saindo da casa em uma típica visita familiar de fim de semana.
Mário Lúcio emagreceu 10 kg após tragédia
Márcio Neves / R7Ele estava muito mais magro e visivelmente abatido. A voz segura e clara de quem conversou com a reportagem em janeiro deu lugar a uma fala lacônica.
— Para dormir é difícil, tive que recorrer aos remédios. Eu emagreci dez quilos, passei mais de 20 dias sem comer absolutamente nada depois da tragédia.
A jovem Adriene Pereira Alves, de 28 anos, ficou presa na lama e foi resgata pelo marido. Ela depende de medicamentos para dormir até hoje e tem crises quando escuta barulhos altos, que a fazem lembrar do drama que viveu. Seu marido, Deivid, diz lutar todo dia para esquecer o que aconteceu, mas resiste a ceder aos medicamentos, tenta conviver com a preocupação do futuro.
Eles não são os únicos. Dados da Prefeitura de Brumadinho apontam que nos primeiros seis meses deste ano a distribuição de medicamentos antidepressivos, ansiolíticos e para insônia na cidade aumentou, em média, 51% em relação ao último semestre de 2018.
Segundo o secretário de saúde do município, Júnio Araújo Alves, alguns medicamentos mais comuns para tratar o problema chegaram a registrar um aumento no consumo de 158%.
— Logo após o rompimento, teve mês que distribuímos até 80% a mais de medicamentos para saúde mental. A notificação de tentativa de suicídios também aumentou.
Assis conta que além das doenças mentais, o número de atendimentos na rede pública também cresceu depois do desastre, o que ele classifica como um ”aumento da sensação de doença" na cidade.
Sexta-feira, dia útil, 12h28. Mais de duzentas pessoas estavam no refeitório da Vale, na mina Córrego do Feijão, no momento em que a barragem estourou. Das 270 vítimas enterradas sob a lama em Brumadinho, 131 eram funcionários diretos da mineradora. Os outros 139 eram empregados de empresas que prestavam serviços para a mineradora, moradores da região e turistas, que estavam hospedados na Pousada Nova Estância, que desapareceu do mapa.
O desastre de Brumadinho é também a maior tragédia trabalhista do país, superando os 69 mortos da história da Gameleira, em Belo Horizonte, em 1971, quando operários foram soterrados em 10 mil toneladas de concreto de um galpão que desabou.
Vela de lama se formou na comunidade, em Brumadinho
Márcio Neves / R7Desde o dia 25 de janeiro, 1.252 processos foram abertos nas Justiças Federal, Estadual e do Trabalho em Minas Gerais. As ações trabalhistas somam 341. A juíza Sandra Generoso, da 6ª Vara do Trabalho de Betim, onde correm 48 casos, destaca que a condução dos processos de Brumadinho não pode ser feita como a dos demais. Segundo ela, além da busca por direitos, os parentes procuram um momento para falar sobre a dor que vivem diariamente.
— Em qualquer outro processo trabalhista, uma parte está buscando apenas uma reparação financeira. No caso de Brumadinho, o que a pessoa procura é um espaço para desabafar, para falar da indignação dela.
Apesar do número de ações em trâmite, a Vale anunciou que fechou acordos com 799 parentes de vítimas e atingidos direta e indiretamente pela barragem somente na Justiça Trabalhista.
A mineradora já fechou dois acordos para ressarcir os afetados. Um com o Ministério Público do Trabalho e outro com a Defensoria Pública de Minas Gerais. O primeiro prevê o pagamento de até R$ 700 mil para pai, mãe, filhos, cônjuge e irmãos de trabalhadores mortos. O segundo, que vale para as demais vítimas e é facultativo, prevê o pagamento de R$ 500 mil para cada parente próximo, pensões mensais, além de reparações por invalidez, danos estéticos ou lesões temporárias.
Todos os moradores de Brumadinho e as pessoas que vivem a até 1 km do leito do rio Paraopeba, contaminado pelo rejeito, estão recebendo até um salário mínimo por mês. Ao todo, 102 mil moradores de 17 cidades são contemplados.
Passados seis meses, ninguém foi responsabilizado pelo rompimento da barragem de Brumadinho. Onze funcionários da Vale e dois engenheiros da Tüv Süd, empresa alemã que deu declaração de estabilidade para a barragem que ruiu, foram presos durante as investigações e soltos logo em seguida.
As investigações correm em duas frentes: a primeira, por meio da força-tarefa de Brumadinho, que junta os esforços dos Ministérios Públicos Federal e de Minas Gerais, a Polícia Civil e a Polícia Federal. Essa investigação corre em segredo de Justiça e ainda não teve resultados práticos.
A segunda está a cargo do Poder Legislativo, por meio das CPIs (Comissões Parlamentares de Inquéritos) no Senado, Câmara dos Deputados e Assembleia de Minas Gerais. Nelas, os legisladores ouvem testemunhas, colhem depoimentos e analisam documentos que são usados para elaborar um relatório sobre o caso. A CPI não pode determinar a prisão de ninguém, mas pode recomendar ao Ministério Público que peça.
Foi o que aconteceu na CPI do Senado, a única CPI que chegou ao final até o momento. A comissão aprovou, no início de julho, um relatório de cerca de 400 páginas que pedia o indiciamento de 14 pessoas, entre executivos e funcionários da Vale e da Tüv Süd. O documento também sugere a apresentação de três projetos de lei para tratar de crimes ambientais, segurança de barragens e tributação para exploração de minérios.
Famílias fazem protestos todos os dias 25
Márcio Neves / R7Enquanto os órgãos oficiais tentam explicar as causas da tragédia e localizar os responsáveis, a “Família dos Não Encontrados” se reúne todo dia 25 no letreiro que fica na entrada da cidade para lembrar de cada uma das pessoas que tiveram sonhos interrompidos às 12h28, daquela sexta-feira de janeiro.
Josiane Melo, irmã da engenheira Eliane Melo, morta na tragédia, participou de todos os atos. Com voz embargada pelo choro, ela externa o sentimento que ronda as famílias dos 248 mortos identificados e dos 22 ainda desaparecidos.
— Nós queremos Justiça. Eu não vou sossegar enquanto todas as famílias não tiverem um alento.
Edição: Flávia Martins y Miguel e Tatiana Chiari
Vídeos: Pablo Nascimento, Márcio Neves, Flávia Martins y Miguel, Edimar Sabatine, Danilo Barboza, Caíque Ramiro, Marisa Kinoshita e Gustavo Assis
Arte: Matheus Vigliar e Lucas Martinez
Estagiários: Clara Mariz e Matheus Oliveira