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Raian Cardoso, Luís Adorno e Thiago Samora, do Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV

Julia Emilia Mello Lotufo, 30 anos, viúva de Adriano Magalhães da Nóbrega, o Capitão Adriano, morto pelo Bope da Bahia em 9 de fevereiro de 2020, apresentou, em 7 de julho de 2021, uma proposta de colaboração premiada futura. Nela, ela cita detalhes de operações do seu então companheiro, que era apontado como chefe do grupo miliciano denominado "Escritório do Crime", organização que tem atribuídos diversos crimes, como homicídios e prática de contravenção.

A íntegra da delação foi obtida pelo Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV. No documento, a viúva, que teme ser assassinada por milicianos do Rio de Janeiro, relata detalhes operacionais dos grupos criminosos da zona oeste do Rio com o intuito de tentar benefícios que reforcem sua segurança. De acordo com Julia, que, segundo o MP (Ministério Público), foi responsável por ocultar o patrimônio da quadrilha, parte dos bens de seu ex-companheiro estão com a mãe dele, Raimunda Veras Magalhães.

Em 58 páginas, Julia afirma que Adriano foi procurado para matar a vereadora Marielle Franco, em 2018, mas negou participação por receio da proporcionalidade que o caso poderia ter. Após o crime, ela diz que ele reuniu diversos milicianos de Rio das Pedras –de onde saiu o carro com os assassinos da vereadora- e os indagou se eles tinham participação e onde estavam no momento dos disparos. Após ver as imagens, Adriano teria dito para Julia quem foi o mandante e quem foi o assassino, analisando o modus operandi da ação (saiba os nomes citados por Adriano à Julia mais abaixo).

Além disso, ela relata como Adriano ascendeu, desde ser um chefe de segurança de uma família de contraventores, até se tornar sócio do empresário Bernardo Bello Pimentel Barbosa, ex-presidente da escola de samba Vila Isabel e ex-cunhado da filha de um dos principais contraventores do Rio de Janeiro, Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, assassinado em 2014. De acordo com ela, Bello definia a vítima e Adriano executava o plano de homicídio.

Haras Modelo, onde Adriano mantinha um cemitério clandestino (Reprodução)

Haras Modelo, onde Adriano mantinha um cemitério clandestino

Reprodução

Ao todo, o grupo de Bello e Adriano, segundo a delação da viúva, adquiria, com atividades ilícitas vinculadas à contravenção, até R$ 700 mil por mês. No documento, ela cita esquemas de lavagem de dinheiro; um haras que era utilizado como cemitério clandestino, com corpos enterrados no local; e quem são os chefes de diferentes localidades dominadas por diferentes milícias na zona oeste da capital fluminense.

Julia narra, também, os últimos momentos de vida de Adriano, que foi morto pelo Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) da Bahia, na cidade de Esplanada, em fevereiro de 2020. A polícia afirma ter dado voz de prisão ao Capitão, que atirou sete vezes contra a guarnição antes de ser atingido. Para Julia, a versão policial é falsa. Segundo ela, Adriano tinha 37 armas, mas, nos últimos meses de vida, não andava com nenhuma. Já de acordo com policiais que participaram da ação, ouvidos pelo Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV, a intenção da ação era prender e ouvir Adriano, até porque gerou curiosidade entre os policiais como Adriano migrou da tropa de policiamento especial do Rio para o crime organizado.

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A história do casal

Julia conheceu Adriano em um bar em frente à praia da Barra da Tijuca, no final de 2010. Em meados de 2011, se afastaram, mas, depois, voltaram a ficar juntos, em definitivo, a partir de 2014. Desde 2016, ambos passaram a morar juntos em um condomínio em Rio das Pedras, na zona oeste do Rio. Um ano depois, se mudaram para um apartamento na estrada da Barra da Tijuca. Em 2018, se mudaram novamente, para outro condomínio na Barra, permanecendo lá até meados de 2019, quando ele passou a ser foragido.

Enquanto Adriano estava em fuga, abrigando-se na Bahia, Julia foi morar no Recreio dos Bandeirantes. No início de 2019, porém, ela foi para a Bahia ficar em uma casa na Costa do Sauípe. Segundo ela, Adriano se mudava com frequência enquanto estava foragido. Também trocava de número de celular a cada semana e de carros. Ele teve diversos modelos, mas o mais usado era uma Dodge Ram blindada.

De acordo com a viúva do miliciano, ao menos 10 homens faziam a segurança pessoal de Adriano. Essa função, segundo ela, tinha bastante rotatividade. Julia também listou 22 integrantes da milícia com quem Adriano mantinha algum tipo de relacionamento de trabalho. Além de Rio das Pedras, Adriano teria forte influência nas regiões de Muzema, Gardênia Azul, Praça Seca, Oswaldo Cruz e Campo Grande. Confira, abaixo, os principais trechos do depoimento da viúva do Capitão Adriano.

Dinheiro e Armas (Reprodução)

Dinheiro e Armas

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Patrimônio derivado das atividades de Adriano

Na delação, Julia afirma que o grupo de Adriano recebia entre R$ 500 mil e R$ 700 mil por mês com atividades ilícitas da contravenção que tinha em sociedade com o empresário Bernardo Bello. A viúva do miliciano afirmou que a parte de Adriano era referente apenas às máquinas caça-níqueis da zona sul da capital fluminense.

Julia afirmou que Bernardo era quem determinava todos os pagamentos decorrentes das atividades. Os valores passavam, primeiro, por uma “tesouraria pessoal”, onde atuavam seus aliados em questões financeiras. Depois, o dinheiro era destrinchado para gastos pessoais -com propinas e empresas nas quais o dinheiro era lavado. Na sequência, o montante passava por um segundo “tesoureiro”, que fazia os pagamentos ao segundo escalão do grupo, que incluía seguranças e viúvas das vítimas do próprio Bernardo.

Ainda segundo a delação de Julia, o dinheiro de Adriano chegava até ele por meio do seu “próprio financeiro”, que era responsável por buscar diretamente os valores. Ela afirmou que esse setor foi operacionalizado por “muito tempo” por Luiz Carlos Felipe Martins, conhecido como Felipe Orelha, e, nos últimos três anos, por Odimar Mendes dos Santos, o Marreta.

Marreta, segundo Julia, fazia os pagamentos da segurança de rua dos pontos do jogo do bicho de Adriano, além de seus seguranças e gastos pessoais, que incluíam carro, cavalos, casas, viagens e família. Feitos os pagamentos, Marreta informava todos os valores para Andrea Souza Rocha, funcionária de Adriano, que apenas montava uma planilha com os valores fechados.

A viúva acrescentou, ainda, que Adriano nunca teve um escritório particular. Desta forma, costumava conferir as planilhas em padarias, hotéis, escritórios de terceiros ou dentro de sua casa.

Antes de estar foragido, Adriano tinha uma contabilidade de aluguéis de imóveis que mantinha em Rio das Pedras feita, segundo Julia, por Manoel de Brito Batista, o Cabelo, e o major Ronald Paulo Alves Pereira, o Pisca. Em 2019, os dois citados foram presos.

Depois que foi expedida ordem de prisão contra Adriano, em 2019, o miliciano modificou a contabilidade dos aluguéis, que também passariam a ser destinados para Marreta. Em abril de 2020, após a morte de Adriano, Julia afirma que foi forçada a ter um encontro com Bernardo e Marreta.

Na conversa, ela questionou para Marreta onde estavam o dinheiro e as armas de Adriano. Segundo seu depoimento, nesse momento, Bernardo se intrometeu e afirmou que o dinheiro não existia, que as armas eram emprestadas por ele a Adriano e que, com sua morte, as tomou de volta.

Adriano, porém, havia informado para Julia, antes de morrer, que tinha 37 armas. Todas elas estariam sob guarda de Marreta. Normalmente, segundo a viúva, Adriano andava com duas pistolas Glock .40. As demais costumavam ser usadas apenas durante suas operações.

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Fabio Costa/ANF
Investimento em Rio das Pedras

De acordo com o depoimento de Julia, o dinheiro da contravenção também era investido na comunidade de Rio das Pedras por meio de construções de prédios, vilas, lojas comerciais, galpões e terrenos, totalizando 300 imóveis aproximadamente. Segundo ela, todos esses imóveis ficaram, após a morte de Adriano, com Maurício Silva da Costa, o Maurição, e seu filho, conhecido como Mauricinho.

Julia não soube afirmar quanto os aluguéis dos imóveis rendiam, mas afirmou que os ganhos do miliciano nunca vieram de “insumos” vendidos para a comunidade, como gás, internet, TV a cabo, luz e água.

A viúva afirmou, também, que Adriano a orientou, caso acontecesse algo a ele, que ela deveria procurar os “donos” da comunidade e negociar seus bens. Contudo, após a morte do miliciano, ela afirmou que a mãe de Adriano, Raimunda Veras Magalhães, disse a ela que tudo o que seu filho tinha na comunidade passaria para ela, não para Julia.

Julia afirma que foi, então, até Rio das Pedras comunicar a decisão de Raimunda. Mas, chegando lá, diz ter percebido que a decisão havia sido feita em comum acordo, anteriormente, entre Raimunda e Maurição, que se encontrava preso.

Antes de sair pela última vez de Rio das Pedras, Julia recebeu das mãos de Cátia, mulher de Maurição, uma carta que teria sido escrita pelo “dono” da área. No papel, estava escrito que nada deveria ser entregue para Julia, mas, sim, para Raimunda.

Julia disse, também, que soube que a mãe de Adriano procurou o empresário Bernardo Bello afirmando que toda família de contraventor tem direito a um valor mensal. O valor giraria em torno de R$ 10 mil. A viúva afirma que se recusou a receber qualquer tipo de dinheiro ou ajuda.

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Reprodução
O Escritório do Crime

Julia diz no depoimento que o nome “Escritório do Crime” foi intitulado à organização pela operação Intocáveis, do MP. Ela conta que a organização havia sido criada para beneficiar operações organizadas por Adriano para a família de contraventores conhecida há décadas no Rio de Janeiro como “Família Garcia”. No início, Adriano era apenas o chefe de segurança de José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, morto em setembro de 2011 e marido de Shanna Garcia, a filha do bicheiro Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, o qual financiaria homicídios para favorecer as áreas de atuação da contravenção.

De acordo com investigações da Polícia Civil, Zé Personal foi vítima da própria organização a que pertencia. Depois da morte dele, Julia conta que os laços se estreitaram entre Adriano e Bernardo Bello. Adriano teria ficado à frente da força armada do Escritório do Crime, enquanto Bernardo, à frente da administração financeira. Nesse momento, Adriano saiu da posição de chefe de segurança do Escritório do Crime e passou a ser sócio nos negócios da contravenção.

Segundo Julia, Adriano lhe falava que Bernardo Bello era quem designava quem seria a próxima vítima do grupo. Eleita a vítima, Adriano tinha que traçar o plano, que incluía organizar monitoramento, escolher as armas, os executores e os valores que seriam pagos por Bernardo pelo homicídio. Após a operação, o valor era pago em dinheiro vivo.

Entre 2014 e 2019, Julia afirma ter presenciado inúmeras reuniões do Escritório do Crime em sua casa, na casa de Bernardo, na Barra da Tijuca, e em outros lugares de Rio das Pedras. Após esses encontros, segundo ela, já se sabia que mais uma morte havia sido encomendada, o que levava Adriano a se afastar de sua casa por certo período.

Os corpos, segundo Julia relatou que Adriano costumava falar, eram, muitas vezes, enterrados no haras que o miliciano mantinha em Guapimirim (RJ), chamado Haras Modelo. O local era utilizado como uma espécie de cemitério clandestino.

Também nesse período, Julia relatou que assistiu Adriano adquirir armamentos como fuzis, submetralhadoras, equipamentos para corte de rede telefônica, roupas camufladas ou pretas, rastreadores, lunetas, granadas, munições, rádios comunicadores e diversos telefones celulares.


Para manter os negócios sem problemas, Julia afirma que Adriano e Bernardo dividiam um custo mensal para obter informações privilegiadas sobre investigações que lhe dessem respeito, incluindo delegados, agentes da Polícia Civil e promotores de Justiça. Certa vez, um dos informantes pagos, oriundo do MP, orientou a Adriano se afastar da comunidade de Rio das Pedras, por exemplo, segundo Julia.

Em meados de 2018, Adriano estava desgastado, de acordo com a viúva. Sem motivação financeira e preocupado com investigações, o miliciano passou a não mais aceitar algumas propostas. Isso lhe causou, ainda segundo Julia, desconforto entre ele e os demais integrantes.

Vaquejada: Adriano tinha a vaquejada como hobbie e gastava, por circuito, cerca de R$ 30 mil. Seus cavalos ficavam no Haras Modelo, em Guapimirim (RJ).

Julia afirmou ainda que Adriano tinha a vaquejada como hobbie e gastava, por circuito, cerca de R$ 30 mil. Seus cavalos ficavam no Haras Modelo, em Guapimirim (RJ), então propriedade de Miro Garcia, que é filho de Valdomiro Garcia, pai de Maninho, também contraventor histórico do Rio. A viúva afirmou que o miliciano chegou a ter oito cavalos: Apenas um deles tinha “valor expressivo” (não informado).

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Amanda Perobelli/Reuters - 14/03/2020

Após a morte da vereadora Marielle Franco, Julia questionou a Adriano sobre as acusações que estavam recaindo sobre ele, de que ele seria o executor. Ele relatou, segundo ela, que realmente foi procurado por Maurição para executá-la, a mando de Cristiano Girão, ex-vereador e chefe da milícia em Gardênia Azul, na zona oeste do Rio. Maurição teria dito a Adriano que uma terceira pessoa, não identificada por Julia, intermediou o pedido de Girão a Adriano.

De acordo com Julia, Girão alegava que a vereadora futuramente traria problemas para todos eles, porque tinha planos de dar fim ao controle da milícia em Gardênia Azul. E que, se não a parassem, era questão de pouco tempo para também atrapalhar a milícia vizinha, em Rio das Pedras, chefiada por Maurição. Todos, inclusive Adriano, seriam prejudicados financeiramente com o projeto de Marielle, já que tinham construções ilegais e grilagem nas terras da região.

Trecho da delação sobre a morte de Marielle Franco (Reprodução)

Trecho da delação sobre a morte de Marielle Franco

Reprodução

Julia disse, ainda, que Adriano, quando chamado, afirmou que recusou o trabalho, dizendo ser impossível fazê-lo porque, por se tratar de uma parlamentar, o fato geraria repercussão. Ele teria avisado a Maurição: “Pelo amor de Deus, não traga esse problema para cá!”. Depois disso, o assunto não foi mais tratado entre eles. Após a morte, Adriano reuniu alguns integrantes da milícia de Rio das Pedras e teria dito a seguinte frase: “Quem fez essa merda aqui? Pois eu não vou segurar essa por**!”.

Todos os presentes, assustados, teriam negado o feito. Cada um tentou provar, então, onde estava no momento do crime. Adriano tinha convicção de que não iria recair sobre ele, pois estava há mais de um mês dedicado ao homicídio de outra vítima: Marcelo Diotti, que foi assassinado no mesmo dia de Marielle.

Ainda segundo Julia, Adriano ficou revoltado porque, segundo as investigações, o carro que levou os assassinos de Marielle saiu de Rio das Pedras. Ele, assim que viu o vídeo da morte, teria afirmado para Julia: “Foi o [Ronnie] Lessa, é tudo ‘modus operandi’ dele, o calibre da arma, a posição do disparo. Não era possível entrar e sair do carro para executar por causa da perna dele.”

Isso teria o levado a suspeitar que Maurição teria traído sua confiança, porque Maurição era muito amigo de Lessa. Julia afirmou que a relação entre Maurição e Adriano estava abalada naquele período justamente porque o Capitão queria Lessa fora de Rio das Pedras. Adriano pensava que Lessa não tinha juízo e se vendia muito fácil, o que poderia trazer problemas para Rio das Pedras e, consequentemente, o Capitão Adriano.

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Divulgação Polícia Cívil do RIO de Janeiro
Ecko, o Baixinho

Adriano dizia para Julia que seu maior fornecedor era o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, morto pela polícia em junho de 2021. Adriano chamava Ecko de “Baixinho”. Mas, para saber sobre a parceria dos dois, voltamos a abril de 2017, quando o miliciano Carlos Alexandre Brada, o Carlinhos Três Pontes, foi morto durante uma ação da Polícia Civil no bairro de Paciência, também na zona oeste. 

Naquele momento, o irmão do miliciano, Ecko, assumiu o comando da maior milícia do estado. De acordo com investigações da Draco (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado), a ascensão do criminoso gerou um racha na milícia, dando início a seguidos conflitos que geraram mais de 10 mortes em apenas dois meses. Ecko conseguiu se estabelecer e formou o "Bonde do Ecko", acabando com o antigo nome "Liga da Justiça", que havia sido popularizado por seu irmão.

Após a morte de Carlinhos Três Pontes, Capitão Adriano se aproximou de Ecko. A partir dos negócios, surgiu uma amizade. Segundo a delação da esposa de Adriano, Baixinho era o responsável por dar todo o suporte de armamentos para Capitão Adriano executar as vítimas do Escritório do Crime. Bernardo Bello e Capitão Adriano pagavam Ecko mensalmente com o dinheiro proveniente da contravenção.

No dia 3 de fevereiro de 2018, a amizade entre Baixinho e Capitão foi colocada à prova. Capitão Adriano estava posicionado para executar uma vítima a mando de Bernardo Bello, o empresário Marcelo Diotti, seu antigo parceiro. O Capitão ficou escondido em uma mata, próximo ao condomínio de Diotti, onde haveria uma reunião, com uma arma de longo alcance, usada por snipers. Quando integrante do Bope, Capitão Adriano era especialista nesse tipo de disparo com esse tipo de armamento.

Em determinado momento, segundo a delação da esposa de Adriano, um dos "meninos" do Capitão avisou por meio de rádio comunicador que havia chegado um convidado na festa com muitos seguranças fortemente armados. Era Ecko. O Capitão decidiu, então, abortar a missão, temendo uma retaliação forte do grupo armado de seu parceiro Baixinho, pois, mesmo ele não sendo o alvo, estando no local, se defenderia após o ataque.

O Capitão decidiu cobrar Ecko e entender qual era o grau de proximidade do miliciano com Marcelo Diotti e Alcebíades Paes Garcia, o Bidi, irmão do contraventor Maninho, que também seria um dos alvos do grupo. Adriano questionou Ecko e o mesmo se defendeu dizendo desconhecer o conflito entre Bernardo, Adriano, Diotti e Bidi. Ele afirmou que compareceu na reunião a pedido de Diotti, porque ele queria quatro fuzis emprestados para resolver um problema, sem dizer qual.

Como prova de amizade e de lealdade, Ecko teria se comprometido a executar Diotti, garantindo assim que não racharia sua ligação com o Capitão Adriano. Adriano deu informações sobre a rotina de Diotti para Ecko que cumpriu sua palavra, determinando a sua equipe a execução de Diotti, que aconteceu em um restaurante na avenida das Américas, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio.

A execução de Diotti rendeu R$ 500 mil para o Capitão, segundo contou em delação a viúva de Adriano.

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reprodução
A contravenção e a milícia

Após uma disputa sangrenta contra a Família Garcia, que permaneceu por gerações à frente de esquemas de contravenção no Rio de Janeiro, Bernardo Bello conseguiu se sair vitorioso. Mas, para isso, teve de planejar a execução dos principais membros da família. No entanto, uma morte poderia comprometer Bernardo. A vítima? Pedro Arthur Oliveira Marques, o Myrinho.

A mãe de Myrinho, Sabrina, teria dito para Adriano que um fato estranho acontecera na Divisão de Homicídios da Polícia Civil: Ela contou que reconheceu duas pessoas suspeitas nas fotografias que tinham sido apresentadas para ela, porém os policiais se recusaram a fazer qualquer registro "mandando-a ir para casa, pois ela estava muito cansada".

Para reconquistar a amizade de Capitão Adriano após esse episódio, Bernardo mostrou-se preocupado com a segurança e a liberdade do amigo, dizendo que ele deveria se afastar de Rio das Pedras e que essa informação tinha sido obtida por suas fontes pagas dentro do Ministério Público do Rio de Janeiro.

O que intrigou a viúva de Adriano, à época, era o fato de que as investigações contra a milícia nunca chegaram na contravenção, pois, segundo ela, ambas são interligadas. Julia disse que estranhou o fato de as investigações nunca terem feito nenhum tipo de conexão entre a milícia e a família Garcia, parceiras nos negócios, segundo seu relato.

Capitão Adriano tinha parte dos seus lucros provenientes da contravenção e também era considerado miliciano, por causa de suas atividades ilícitas em Rio das Pedras, mas milícia e contravenção nunca foram associadas oficialmente. Ela atrela isso as propinas que eram pagas a membros do Ministério Público e da polícia.

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Divulgação Polícia Federal
Casos de lavagem de dinheiro

Julia afirma que Adriano investiu, inicialmente, R$ 100 mil na integralização de um contrato social de uma empresa de bebidas com finalidade de dar aparência de licitude a valores obtidos ilicitamente. Além disso, foram gastos na manutenção do imóvel locado para a empresa de fachada cerca de R$ 30 mil.

O objetivo de Adriano, segundo a delação, era investir, inicialmente, cerca de R$ 200 mil no local, que teria o nome fantasia de "Galpão 531". A ideia do miliciano e sua companheira era criar uma franquia de "boutique de carnes", expandir a empresa para todo o Rio de Janeiro e, assim, lavar grande parte da renda ilícita obtida pelo ex-PM.

Na primeira -e única- loja, antes de funcionar, foi realizado um evento para amigos, mas sem a presença dos donos, com o objetivo de verificar se o serviço a ser prestado funcionaria. O evento ocorreu em 8 de fevereiro de 2020, um dia antes da morte do Capitão Adriano.

O comércio nunca chegou a ser aberto. Os dois sócios do miliciano passaram a não ter mais interesse na operação. Assim, decidiram passar suas partes no capital, de fachada, para dois irmãos de Julia, que apenas emprestaram seus nomes para que a atividade pudesse ir adiante -o que não ocorreu.

De acordo com a delação da viúva de Adriano, o empreendimento fracassou porque Julia não tinha mais o que lavar.

Anos antes, mais precisamente em 15 de julho de 2011, Adriano comprou cotas do capital social de uma pizzaria, aberta em sociedade com sua mãe, Raimunda. Julia não soube dizer, porém, mais informações a respeito do negócio.

Além da pizzaria, Julia afirmou que Adriano era dono de três fazendas em Tocantins, onde mantinha gado, nas cidades de Pindorama, Paraíso do Tocantins e Pugmil. Segundo Julia, as três fazendas foram vendidas a um mesmo comprador. O proveito das vendas teria ficado com Raimunda.

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Reprodução
O rompimento de Adriano com Bello

Capitão Adriano era muito grato à família Garcia, que o projetou no mundo da contravenção. Ele nutria um grande afeto pela Shanna Garcia, filha do bicheiro Valdomiro Paes Garcia, o Maninho, quem ele considerava um padrinho. Em julho de 2019, Shanna procurou o Capitão Adriano para resolver a questão financeira de sua família, pois Bernardo Bello não estava mais repassando os devidos pagamentos aos familiares.

Adriano ligou para Bernardo, mas recebeu como resposta uma recusa, seguida da seguinte mensagem: "Eu sei o que estou fazendo". Na delação, a viúva do Capitão Adriano disse que esse foi o último contato entre os dois e que a relação, que já estava desgastada, foi rompida de vez.

Logo após a conversa entre Bello e Adriano, Shanna Garcia foi vítima de um atentado enquanto chegava em um shopping na Barra da Tijuca. Ela se dirigia a um salão de beleza. Ao chegar no centro comercial, foi surpreendida no estacionamento por dois homens em um carro branco, que usavam luvas e efetuaram diversos disparos contra ela. Shanna foi atingida no pulso e no tórax, mas conseguiu voltar para o veículo, se abrigar e sobreviver.

À época, a polícia descobriu que Shanna já estava sendo seguida sem perceber por um Fiat Argo, de cor branca e com a placa clonada. O carro original teve sua placa furtada em Senador Camará, também na zona oeste do Rio de Janeiro no dia 19 de julho de 2019.

Na delação, a esposa de Adriano contou que o Capitão ficou furioso ao saber do atentado contra Shanna e que considerou um ato extremamente covarde. Capitão Adriano, mesmo distante do Rio de Janeiro naquela altura, pois ele já era considerado foragido da Justiça, disse para a esposa que ia apurar os autores do atentado contra Shanna.

Adriano teria, então, enviado mensagens para pessoas ligadas a Bernardo Bello avisando que sabia que o contraventor estava monitorando Shanna Garcia e que tal atentado não ficaria sem respostas. Capitão Adriano confidenciou à esposa que os autores do atentado contra Shanna foram os policiais militares "Alegre" e "Teodoro", sengo o segundo ex-caveira, ou seja, que já atuou pelo Bope.

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
A morte de Adriano

Adriano decidiu que passaria o final do ano em um condomínio na Costa do Sauípe (BA), onde alugou uma casa até fevereiro de 2020. Ele e Julia permaneceram no local até 31 de janeiro de 2020. Na sequência, houve a primeira operação da Polícia Civil da Bahia em conjunto com a do Rio de Janeiro.

Na tarde de 31 de janeiro, por volta das 16h30, Julia estava retornando de um mercado localizado em um vilarejo perto do imóvel alugado, quando viu, na estrada, próximo do condomínio, um camburão da Polícia Civil da Bahia. Ela entrou na casa, avisou Adriano, que perguntou: “E agora?”, sendo respondido por ela: “Corre!”. De sunga e chinelo, ele correu para o fundo da casa e sumiu.

Na sequência, os policiais civis entraram na casa, quebraram portas e começaram a questionar: “Onde ele está?”. Ela afirma que questionou aos policiais por duas horas quem eles estavam procurando. Só depois desse período, um dos policiais respondeu que não sabiam quem procuravam, apenas estavam apoiando uma operação da polícia do Rio.

Depois de 15 horas, Adriano ligou para Julia para informar que estava bem, abrigado por um amigo de vaquejada, Leandro Guimarães, que desconhecia até aquele momento que Adriano estava foragido. Nessa ligação, ele pediu que Julia arrumasse todas as coisas e fosse até seu encontro.

Quando o encontrou, ouviu o relato de que Adriano caminhou por 40 quilômetros até encontrar apoio por meio do qual conseguiu contatar Guimarães, que foi até lá buscá-lo. Preocupado em não causar danos ao amigo, pediu para ele encontrar um outro local, que não fosse sua casa. Foi, então, emprestado um imóvel de um vereador -o que Julia diz não saber à época- onde permaneceram por oito dias.

Em 8 de fevereiro, ciente de que as autoridades baianas já sabiam do seu paradeiro, ele pediu para Julia voltar para o Rio de Janeiro, argumentando que, sozinho, poderia se locomover com mais facilidade. No meio da tarde, ela deixou o município de Esplanada e percorreu cerca de 600 quilômetros até Vitória da Conquista.

Lá, ela foi revistada pela PRF (Polícia Rodoviária Federal). Após a blitz, ela ligou para Adriano. Ele pediu que ela se mantivesse calma, afirmou que estava sem arma de fogo há meses e que saberia usar suas técnicas para se ocultar na região. Ela seguiu viagem. No dia seguinte, tentou falar mais uma vez com ele, mas soube pelos noticiários que ele havia sido morto pelo Bope da PM baiana.

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CPIPANDEMIA - Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia
Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (CPIPANDEMIA) realiza oitiva do o ex-governador do Rio de Janeiro. Ele deve ser questionado sobre denúncias de corrupção na área da saúde do estado, inclusive com recursos federais destinados ao combate à covid-19.

 

À mesa, ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

 

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado (Edilson Rodrigues/Agência Senado - 16.06.2021)

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Edilson Rodrigues/Agência Senado - 16.06.2021
Lobby com Witzel

Julia afirmou, ainda, em seu depoimento, que, ao longo de 2019, Adriano recebeu informações que apontavam que Bernardo Bello havia procurado, por intermédio de ligações fortes que mantinha com autoridades, o então governador Wilson Witzel com o objetivo de convencê-lo de que Adriano não poderia ser preso, mas, sim, executado, o que seria bom para os dois lados: Estado e Bernardo. Adriano dizia para Julia, no entanto, não acreditar nessa aliança.

Essa conclusão, no entanto, se modificou depois da operação policial ocorrida em 31 de janeiro na Costa do Sauípe. Depois daquela ação, ele teria dito para Julia que o alerta fazia sentido, já que aquela operação não tinha característica de cumprimento de ordem de prisão, mas, sim, de execução. Ele a orientou, então, que procurasse um advogado para pedir ajuda à imprensa. Julia afirma acreditar que Adriano foi torturado antes de ser morto.

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Divulgação
O que Julia quer com a delação?

A defesa da viúva de Adriano afirma que suas informações são "extremamente relevantes e novas", e que, por isso, gostaria de obter benefícios proporcionais. A defesa afirma, também, que Julia corre risco de morrer. Entre os pedidos, estão:

- Perdão judicial e revogação das medidas cautelares;
- Início de providências investigativas somente após a mudança de país;
- Proteção da Interpol;
- Liberar e não restringir a venda do carro do atual companheiro de Julia;
- Encerramento de investigações, caso haja, contra ela;
- Retirada de conteúdo sobre ela na internet;
- Acordo de não persecução penal.

Em relação ao conteúdo da delação e a investigação a cerca dos fatos, a Secretaria de Estado de Polícia Civil afirmou que "ainda não teve acesso à delação, que sequer foi homologada." 

Já o Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou que "não se pronuncia nem divulga qualquer dado relacionado a colaboração premiada, nem mesmo a existência de simples tratativa para sua realização, por expressa vedação legal."

Procurado, os advogados do governador Wilson Witzel afirmaram que " Witzel não conhece e jamais teve qualquer relacionamento, o mais distante que fosse, com qualquer das pessoas mencionadas na matéria. Os fatos narrados são absolutamente inverídicos e sem qualquer amparo fático, ressaltando, inclusive, que o tal capitão Adriano foi morto pela polícia da Bahia, naquele estado. Sobre tais declarações, serão tomadas as providências judiciais cabíveis."

Procurada Shanna Garcia e de Maurício Silva da Costa, o Maurição, não retornaram aos contatos da reportagem. Já o empresário Bernardo Bello e a mãe de Adriano, Raimunda Veras Magalhães, não foram localizados.

A defesa do ex-vereador Cristiano Girão. respondeu aos questionamentos da reportagem conforme reprodução da íntegra das respostas abaixo:

PERGUNTA: O ex-vereador Cristiano Girão faz parte da milícia que domina a região da Gardênia Azul?
RESPOSTA: Cristiano não faz parte denenhuma milícia e não exerce influência na região da Gardênia Azul. Girão foi líder comunitário e a pedido dos próprios moradores se lançou candidato e foi eleito Vereador na cidade do Rio de Janeiro. Após sua prisão em dezembro de 2009, não voltou mais no local e quando foi solto em 2016 fixou residência forado Estado do Rio de Janeiro. Esse fato é de conhecimento das autoridades, inclusive.

PERGUNTA: O ex-vereador Cristiano Girão realmente pediu a Maurício Silva da Costa, o Maurição, para que este procurasse o Capitão Adriano para matar a Vereadora Marielle Franco?
RESPOSTA: Esse fato nunca ocorreu e nem faz sentido. Cristiano e Mauricio não são amigos, não se relacionam.

PERGUNTA: Segundo depoimento, ela contou que o Capitão Adriano tinha afirmado que o ex-vereador Cristiano Girão queria matar a Vereadora Marielle pelo fato desta ser um problema porque tinha planos de dar um fim na milícia da Gardênia Azul. Isso procede?
RESPOSTA: Essa é a prova maior de que está Sra Julia está mentindo. Primeiro por Cristiano não ser chefe de milícia. Alguém já viu um chefe de milícia morar em outro estado, longe da comunidade, levantar todos os dias as 5h para trabalhar na empresa de confecção de roupas com a esposa e retornar para casa após as 23h, diariamente? Tudo isso está documentado. Segundo, pelo fato de Cristiano estar afastado da política e não ter conhecido a vereadora Marielle. Por fim, segundo informações obtidas com a própria imprensa, a Vereadora Marielle nunca foi na Gardênia Azul, o que permite concluir que nem a milícia que atua no local teria motivos para encomendar a morte. Contudo é preciso investigar um fato: A Sra Júlia mentiu para tentar obter algum benefício na justiça, já que ela é ré em processo criminal, ou a Sra Júlia mentiu para acobertar alguém e despistar as investigações? Aliás, não é a primeira vez que testemunhas mentem neste caso para despistar as autoridades.

Julia e Adriano Nobrega (Reprodução)

Julia e Adriano Nobrega

Reprodução

Conteúdo: Núcleo de Jornalismo Investigativo 
Colaboração: Márcio Neves
Coordenação: Thiago Samora
Chefe de Redação: André Caramante