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A corrida de gato e rato da polícia científica contra o tráfico de drogas
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Letícia Dauer, do R7

Cocaína diluída em galão de vinho e em extintores de incêndio ou colorida e acondicionada em embalagens de achocolatado e suco em pó, maconha sintética borrifada em papel cartão e fotografia. Essas são apenas algumas das drogas apreendidas em formatos inusitados já analisadas pela Polícia Científica do estado de São Paulo.

Seja para burlar as leis de controle, seja para despistar as autoridades ou conquistar mais consumidores, o tráfico paulista se destaca pela criatividade e dinamismo que modificam constantemente a composição de drogas existentes ou criam novas substâncias.

Apreensão de drogas em SP (Arte-R7)

Apreensão de drogas em SP

Arte-R7

Nos últimos dois anos, por exemplo, surgiu o canabinóide sintético conhecido como K4. Produzido em laboratório, ele tem efeito cem vezes mais forte do que o da maconha comum.

Os entorpecentes mais tradicionais e populares no mercado clandestino são a maconha, a cocaína e o crack. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, obtidos via Lei de Acesso à Informação, nos últimos cinco anos mais de 1.058 toneladas de drogas foram apreendidas pela Polícia Civil no estado de São Paulo.

Mais de 97% do total (1.031,2 toneladas) são drogas tradicionais, enquanto o restante (26,9 toneladas) corresponde a substâncias sintéticas como ecstasy, lança-perfume, LSD e metanfetamina.

Apesar de representar uma fatia menor, o último grupo vem ganhando espaço entre os usuários, de acordo com peritos criminais que conversaram com o R7.

Trabalho que quase ninguém vê

O combate às drogas costuma ser associado ao trabalho ostensivo da Polícia Militar e, em seguida, ao investigativo da Civil. Quase ninguém se lembra da Polícia Científica, que tem a função de identificar e analisar as substâncias tóxicas que causam dependência física ou psíquica, elencadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Após a conclusão dos exames, os laudos periciais são produzidos e anexados como provas materiais aos inquéritos policiais, que investigam a existência ou não de um crime. O documento pode atestar, por exemplo, se uma substância encontrada com um suspeito é realmente cocaína. Se não for uma substância ilícita, a prisão por tráfico de drogas perde o sentido.

No caso de São Paulo, o Núcleo de Exames de Entorpecentes está instalado na sede do prédio do Instituto de Criminalística, no bairro do Butantã, zona oeste da capital paulista. O departamento funciona 24 horas por dia e sete dias por semana.

Com currículos acadêmicos extensos e invejáveis, cerca de 30 peritos criminais, ou policiais cientistas, analisam todas as substâncias apreendidas na maior cidade do país. Em algumas circunstâncias, também auxiliam laboratórios da região metropolitana e do interior do estado, além de produzirem pesquisas sobre o tema.

Apenas entre os meses de janeiro e maio deste ano, o núcleo analisou mais de 37 toneladas de drogas, sendo 81% de maconha, 12% de cocaína, 3,1% de lança-perfume e 2,8% de crack. 

Altíssima tecnologia
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De acordo com o perito criminal Luiz Ferreira Neves Júnior, o Núcleo de Exames de Entorpecentes segue as cartilhas e diretrizes da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), referência mundial no assunto.

Luiz Ferreira, aliás, é um exemplo da capacidade técnica necessária para esse tipo de trabalho. Em 2012, formou-se em Química Tecnológica pela Universidade Federal de São Carlos. Ele prosseguiu a carreira acadêmica e tornou-se mestre na área de concentração físico-química pela mesma universidade em 2014. No ano passado, alcançou o título de doutor nas áreas de Analítica e Inorgânica pela Universidade de São Paulo, com passagem pela Universidade Técnica da Dinamarca. 

Para fazer a análise de uma determinada substância, cada pesquisador pode adotar o método que considerar melhor.

Luiz Ferreira é doutor pela USP (Edu Garcia/R7 - 08.08.2022)

Luiz Ferreira é doutor pela USP

Edu Garcia/R7 - 08.08.2022

Uma das possibilidades é o FTIR (Espectroscopia no Infravermelho por Transformada de Fourier), equipamento de alta tecnologia, importado dos Estados Unidos por R$ 300 mil em junho de 2020, com investimento do governo estadual.

“O FTIR diminuiu o tempo de análise. É uma técnica bem rápida e bastante confiável. Ele ajudou a completar o parque tecnológico do laboratório que está em constante evolução. Foi a nossa última aquisição importante”, afirma Luiz Ferreira. 

O moderno equipamento faz a análise molecular de elementos por meio do infravermelho em poucos minutos. Ele também conta com bibliotecas abastecidas com informações do mundo inteiro — algumas preestabelecidas pelo fabricante e outras adicionadas pela própria equipe de perícia —, que auxiliam na identificação de substâncias novas no Brasil que já foram descobertas em outros países.

Biblioteca ajuda a identificar drogas do mundo inteiro

As bibliotecas criadas pelo grupo SWGDrug, formado por um consórcio de cientistas forenses de diversas nacionalidades, e pelo projeto Response, que recebe financiamento da União Europeia, foram adotadas em São Paulo. As informações são compartilhadas através de uma plataforma na internet para aumentar a eficácia dos laboratórios forenses e para auxiliar no combate ao tráfico internacional de drogas.

O conteúdo disponibilizado pelos pesquisadores permite que os peritos comparem amostras de alto grau de pureza e alto padrão de qualidade com drogas apreendidas na rua, que geralmente são misturadas com outras substâncias ou contêm impurezas.

“É como pegar a impressão digital do RG que é feita com o cidadão parado, segurando o dedo com uma tinta padronizada no Poupatempo — nas melhores condições possíveis —, e comparar com uma digital coletada em um vidro, onde uma pessoa encostou correndo”, explica o ex-diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes, Julio de Carvalho Ponce.

Apesar do vasto acervo de padrões de substâncias, nem sempre as bibliotecas terão todas as respostas. É nessa hora que entra o trabalho de pesquisa dos peritos criminais.

Todas as amostras precisam ser testadas (Edu Garcia/R7 - 08.08.2022)

Todas as amostras precisam ser testadas

Edu Garcia/R7 - 08.08.2022

“O pessoal do laboratório é tão capacitado que, na ausência de algum padrão nas bibliotecas, nós produzimos artigos científicos e conseguimos descobrir novas substâncias. No ano passado, indicamos duas novas substâncias à Anvisa, que já eram proibidas em outros países, com ajuda da USP e da Unicamp”, conta o perito Luiz Ferreira, que está há mais de três anos no núcleo.

Para combater a criminalidade, os pesquisadores não dispõem apenas do parque tecnológico. Também é necessário muito trabalho em grupo e compartilhamento de conhecimentos. Apesar de já ter se desligado da Polícia Científica, o ex-diretor lembra com carinho da equipe.

Trabalho intenso e a qualquer hora

“Por ser um laboratório que funciona 24 horas, não tem hora para os desafios aparecerem. Às vezes surge uma dúvida às 3h, e é muito comum os colegas mandarem mensagem nos grupos de celular pedindo ajuda. É muito bacana ver como o pessoal se engaja no trabalho”, afirma Julio de Carvalho Ponce.

O oficial administrativo Lucas Blanco Alves, que trabalha há dez anos na instituição, explicou ao R7 que o laboratório precisa emitir os laudos em até 24 horas para não descaracterizar os flagrantes de tráfico de drogas. Em razão disso, o trabalho é intenso e dinâmico.

Quando uma apreensão chega ao núcleo, o procedimento-padrão é a análise obrigatória de cada item — seja um saquinho com cocaína, um tijolo de maconha ou um comprimido. Em razão disso, o volume da apreensão determina o tempo de demora da análise.

Um dos casos que marcaram Alves foi a análise de uma carga de 16 toneladas de maconha. Ele relembra que todo o laboratório se mobilizou para fazer os testes na droga, inclusive peritos que estavam de folga. No fim, a equipe conseguiu entregar o laudo em apenas 16 horas.

Maconha de laboratório

A chegada do equipamento FTIR ao laboratório também representou um marco importante: a identificação da maconha sintética, o K4.

Em agosto de 2020, a Polícia Científica paulista passou a produzir laudos periciais sobre esse tipo de canabinóide, o que auxiliou no processo de criminalização da substância no país, uma atribuição da Anvisa.

Atualmente, os sintéticos representam o grande desafio dos policiais, de acordo com o oficial administrativo Lucas Blanco Alves.

Drogas naturais produzidas a partir da extração de plantas, como a cocaína e a maconha, são facilmente identificadas, pois seus padrões são bem conhecidos. As substâncias sintéticas, por sua vez, fabricadas em laboratórios clandestinos, têm grande variedade de fórmulas para dificultar o trabalho dos peritos e fugir das portarias da Anvisa.

Cartões com desenho infantil também podem esconder droga (Edu Garcia/R7 - 08.08.2022)

Cartões com desenho infantil também podem esconder droga

Edu Garcia/R7 - 08.08.2022

Inicialmente, os traficantes importavam os canabinóides sintéticos dos Estados Unidos e da Europa para vender no mercado nacional. Nos últimos dois anos, a maior parte do volume comercializado passou a ser produzido por aqui mesmo, o que reduziu os custos de fabricação e aumentou o lucro do crime, de acordo com Lucas Blanco Alves.

Quando sintetizado na forma líquida, o canabinóide pode ser aplicado em diferentes superfícies, como saquinhos de chá, pimenta rosa, papel cartão ou fotografias. Além do efeito mais potente para o usuário, a droga não exala o cheiro característico da maconha natural, o que dificulta o trabalho de fiscalização dos agentes de segurança.

Criatividade do tráfico esconde droga em locais inusitados (Arte-R7)

Criatividade do tráfico esconde droga em locais inusitados

Arte-R7

Em razão dessas propriedades, a polícia percebeu um aumento na incidência desse tipo de substância no sistema prisional paulista durante a pandemia de Covid-19. Como as visitas de familiares sofreram rígidas restrições, e até foram suspensas em alguns períodos, o correio era o único caminho para enviar as drogas aos presos.

Julio de Carvalho Ponce — que liderou o Núcleo de Exames de Entorpecentes justamente na pandemia — explicou que os traficantes costumavam embeber o papel cartão, por exemplo, em uma solução com a maconha sintética e escondê-lo no meio de objetos, como em livros e até mesmo em Bíblias.

“O mercado ilegal de substâncias é muito dinâmico. Nós também precisamos ser, porque se ficarmos parados no tempo, só verificando as substâncias já conhecidas, não vamos conseguir acompanhar o que o tráfico está fazendo. É como se fosse um jogo de gato e rato”, afirma Ponce.

Mudança no mercado

Os pontos de tráfico de drogas, popularmente conhecidos como biqueiras, vêm apresentando maior variedade de produtos, principalmente em relação à qualidade, além de oferecer opções de sintéticos.

O oficial administrativo Lucas Blanco Alves dá como exemplo dessa evolução do tráfico o skunk, considerado uma supermaconha e encontrado com facilidade nas ruas. Anos atrás, não existia nas biqueiras. O policial acredita que os usuários têm procurado substâncias com efeitos psicoativos mais potentes, ou seja, de maior qualidade.

Já o cientista social e político da UFABC (Universidade Federal do ABC), Carlos Augusto Pereira de Almeida, aponta outro fator para explicar essa mudança na oferta de drogas: a competição motivada pelo capitalismo.

Em São Paulo, há o domínio de uma única facção: o PCC (Primeiro Comando da Capital). Por isso, são raras as disputas territoriais ou o derramamento de sangue entre traficantes, como ocorre no Rio de Janeiro ou no Amazonas. A disputa por aqui, diz ele, está concentrada no campo econômico. 

Atualmente, cada ponto de tráfico — também conhecido como loja no mundo do crime — é vendido pelo PCC aos pequenos traficantes, o que impacta diretamente o formato das vendas. “Para se destacar, devem ser inovadores. Uma forma de fazer isso é acondicionar a cocaína e a maconha em embalagens chamativas, com ilustrações de personagens famosos, como um chamariz”, conta o cientista social e político da UFABC.

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Edu Garcia/R7 - 08.08.2022
Opções para todos os tipos de consumidores


Até meados de 2010, as lojas eram padronizadas e vendiam apenas as drogas tradicionais (maconha, cocaína e crack). Com maior investimento no negócio ilícito, os traficantes passaram a oferecer mais opções, incluindo os sintéticos, com o objetivo de atrair usuários de diferentes perfis socioeconômicos.

O grau de pureza de uma droga a ser comercializada costuma indicar seu público-alvo. Segundo Carlos Augusto Pereira de Almeida, as mercadorias mais baratas — muitas vezes adulteradas com substâncias como cafeína e lidocaína — são destinadas à população mais pobre ou em situação de rua. Enquanto as mais caras e puras, às classes mais altas.

Além de investirem na variedade de substâncias, os traficantes com maior poder aquisitivo se interessam por máquinas automáticas de embalar drogas — para acelerar o processo e reduzir possíveis desperdícios. O objetivo final é sempre o mesmo: o lucro.

Em 18 de agosto, por exemplo, a Polícia Civil conseguiu apreender um equipamento que era utilizado para embalar cocaína em pequenos saquinhos dentro de uma residência, na região de Cidade Tiradentes, zona leste da capital. Na ocasião, dois homens e uma mulher foram presos em flagrante, após investigação do 10° Distrito Policial.

Como o mercado das drogas é de alto risco, exige investimento e inovação. Em razão disso, o pesquisador contou ao R7 que o transporte de cargas de maconha — responsável pelo principal abastecimento das biqueiras — entre estados é realizado por vários compradores em conjunto, como uma cooperativa. Assim, caso a polícia consiga apreender a mercadoria, o prejuízo é menor.

Trabalho minucioso precisa ser feito com todos os lotes apreendidos (Edu Garcia/R7 - 08.08.2022)

Trabalho minucioso precisa ser feito com todos os lotes apreendidos

Edu Garcia/R7 - 08.08.2022

Segundo o cientista da UFABC, a pandemia também impactou diretamente o preço das drogas, principalmente no estado de São Paulo, onde estão o Aeroporto Internacional de Guarulhos e o Porto de Santos. Os empreendimentos são pontos importantes na rota de importação e exportação de entorpecentes do país.

No início da pandemia, o governo federal também fechou as fronteiras terrestres com países da América do Sul. “A entrada de mercadoria, principalmente de maconha, diminuiu muito, enquanto a demanda era alta. O tijolo que custava em torno de R$ 1.200 foi para R$ 5.000. Quem tinha a droga estava vendendo a preço de ouro”, conta Carlos Augusto.


Reportagem: Letícia Dauer
Fotografia: Edu Garcia
Vídeo: Matheus Mendes
Arte: Keven Rodrigues Santos
Edição: Marcos Rogério Lopes

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