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Larissa Werren, Mariane Salerno e Rogério Guimarães, da Record TV

Sacola cheia de roupas na mão esquerda, muleta na mão direita, seu Zika Vichiniaski caminha por uma estradinha de terra na zona rural de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha. Aos 87 anos, já não consegue andar tão rápido por causa da osteoporose. Ainda assim, segue apressado. Está sem máscara e sabe que cada minuto fora de casa representa um risco para a sua vida. "Tenho três máscaras em casa, mas não levei nenhuma. Só estou indo levar roupa pra mulher lavar". A mulher em questão é namorada do seu Zika, dona Zélia.

Juntos há 18 anos, eles nunca dividiram o mesmo teto. Para ele, essa é a receita para uma união saudável e duradoura. "Ela é separada e eu também. Ela quer casar, mas eu não quero. Tá bom assim". A companheira mora a alguns quarteirões de distância. Mas o casal nunca passou tanto tempo separado.

Agora, com a quarentena, os dois se encontram algumas vezes por semana. Quase sempre, para que dona Zélia faça o serviço de lavanderia para seu Zika. Ele lamenta. "A gente tá acostumado a viver 'no público', como fica agora? Não é fácil". Durante a curta caminhada até chegar à casa da namorada, conta que é filho de poloneses. Assim como seu Zika, boa parte dos moradores de Nova Petrópolis é descendente de europeus, principalmente alemães.

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Nova Petrópolis tem uma das maiores concentrações de idosos do país: cerca de um quarto da população já passou dos sessenta anos. Para todos eles, a chegada do novo coronavírus ao Brasil significou uma mudança drástica nos hábitos. A maior delas foi o isolamento.

"Com relação aos idosos, a gente tem um carinho especial nesse sentido. A gente se preocupou em ajudá-los a não estar nos lugares de aglomerações. Hoje existem vários grupos de terceira idade, alguns saíam duas vezes na semana", explica a secretária municipal de saúde, Cláudia Pires. A principal medida da prefeitura foi fechar os centros de convivência da terceira idade. Lá aconteciam os bailes, carinhosamente apelidados de "bailões" por seus frequentadores.

Essas festas aconteciam várias vezes na semana, sempre à tarde. Os bailões de sábado eram os mais procurados. Centenas de vovôs e vovós lotavam os salões. A diversão era levada a sério. A desenvoltura do melhor pé de valsa podia ser recompensada com a faixa e a coroa de rei e rainha do baile. 

Nessa monarquia de faz de conta, não falta generosidade. Uma única festa recebia vários velhinhos dançando animados com a faixa no peito. "Rainha simpatia" e "rainha ternura" conviviam pacificamente em um castelo de muita música e nenhum trono, porque ali era proibido ficar parado.

Muitos chegavam ainda pela manhã e só saíam dali depois das cinco da tarde. Um deles é seu Selvino, de 84 anos. Ele era o primeiro a aparecer no salão, às 9h. Antes mesmo de a música tomar conta do lugar, no centro de Nova Petrópolis, já estava ali para escolher a melhor mesa.

A dança começava logo depois do almoço, mas ele conta que a cerveja era o principal combustível para passar horas a fio trocando de companhia entre uma música e outra. "Sete, oito mulheres que eu dançava. Mas elas também aproveitavam, às vezes, por causa da cerveja, né?", conta às gargalhadas.

Seu Selvino é viúvo há dez anos. Viveu uma união de cinco décadas com dona Ivone. Os filhos, que também moram na cidade, são responsáveis por manter a casa dele abastecida durante a quarentena.

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Arte R7

O aposentado conta que passou a vida toda trabalhando como pedreiro. Ergueu com as próprias mãos a casa em que constituiu família. "Essa casa eu fiz em fim de semana, só trabalhando sábado, domingo", relembra.

Teve pouco acesso à educação. Mal aprendeu a ler, mas conseguiu proporcionar ensino de qualidade para os filhos. Fala com um sotaque carregado de quem convivia só com colonos europeus, longe da escola. Apesar de nunca ter visitado a Alemanha, seu Selvino cresceu ouvindo e falando quase exclusivamente um dialeto originário do sudoeste do país, o Hunsrückisch.

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Arte R7

Fundada em 7 de setembro de 1858, Nova Petrópolis é resultado da imigração que moldou várias cidades no sul do Brasil. O povoado surgiu a partir da união de várias estâncias ocupadas principalmente por colonos alemães, mas também por franceses, belgas, poloneses, irlandeses, escoceses e até russos.

Essas comunidades eram muito fechadas e as crianças cresciam aprendendo apenas o idioma de pais e avós. Quatro gerações depois, encontramos hoje alguns idosos que não falam uma palavra sequer em português. Muitos até conseguem se comunicar, mas sabem só o básico.

Os adultos abaixo dos 50 anos são bilíngues: falam fluentemente o Hunsrückisch e o português. O idioma se tornou uma barreira a mais na hora de explicar para os mais velhos a importância de ficar em casa durante a ameaça do coronavírus. Muitos agentes de saúde da prefeitura falam o dialeto. Coube a eles a missão de orientar os vovôs e vovós sobre o isolamento social.

Os idosos são o grupo mais vulnerável ao novo coronavírus. Além de terem o sistema imunológico mais frágil, eles sofrem com frequência de comorbidades associadas às complicações da covid-19, como diabetes e hipertensão. O resultado disso é que 69,4% das mortes pela doença no país são de pessoas acima dos 60 anos.

"O que nós temos na epidemia é um aumento da incidência de casos nos idosos, mas, principalmente, uma maior gravidade de infecção pelo coronavírus em idosos, o que os torna mais sintomáticos, mais necessitados de assistência quanto à sua saúde e, infelizmente, com maior mortalidade quando acometidos pela doença", explica Wilson Jacob Filho, geriatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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Quanto mais velha é a pessoa, maior deve ser o cuidado. Dona Josefina, de 104 anos, é possivelmente a moradora mais velha de Nova Petrópolis. É uma idosa cuidada por outros idosos. O filho, Sigmund Blouentag, e a nora, Blonda Blouentag, ambos com 70 anos, se desdobram nesse período de quarentena. Para eles, muita coisa mudou. Levavam uma vida ativa. Saíam com frequência. Hoje, estão reclusos. Filhos e netos cuidam das compras.

O R7 Estúdio esteve com dona Josefina Maria na véspera do seu aniversário. Diferentemente dos outros anos, desta vez a data ficaria marcada por uma comemoração bem mais modesta. "Vamos ficar em casa, vamos dar um churrasco só pros mais próximos", contou Sigmund.

A bisneta, Michelle Grammf, lembra que, desde que Josefina se tornou centenária, todos os aniversários foram celebrados com muita pompa. Dezenas de netos e bisnetos lotavam um salão alugado especialmente para a ocasião. Mas a aniversariante nem se importa com isso. "Ela não ficou chateada. Tanto faz", traduz Michelle, depois de ouvir a bisavó responder em dialeto.

Josefina tem uma saúde invejável. Pressão arterial e colesterol controlados, nada de diabetes e energia de sobra para caminhar pela ampla propriedade da família, na zona rural de Nova Petrópolis. Viveu episódios marcantes da história, como a pandemia de gripe espanhola, entre 1918 e 1920, e a Segunda Guerra Mundial. Ela afirma não se recordar de nenhum momento em que a ameaça da morte esteve tão presente quanto agora.

Aos 104 anos, dona Josefina passou pela gripe espanhola e pela Segunda Guerra (Record TV)

Aos 104 anos, dona Josefina passou pela gripe espanhola e pela Segunda Guerra

Record TV

O isolamento social segue em Nova Petrópolis, mas a cidade -- assim como todo o Rio Grande do Sul -- passa agora pela transição para o afrouxamento gradual da quarentena.

O estado criou um sistema de bandeiras que leva em conta o grau de propagação do vírus em todas as regiões e a estrutura hospitalar disponível para atender pacientes com a covid-19.

Nova Petrópolis está na classificação vermelha, de risco alto de contaminação. Cinco casos e 1 morte - outra curiosidade - foram confirmados na cidade desde o início da pandemia, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

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"O distanciamento social começou cedo e a retomada das atividades tem sido feita de forma gradual. Então, é possível afirmar que essas medidas, baseadas na pesquisa, estão ajudando a poupar a população gaúcha e evitar um número maior de mortos", explica o epidemiologista Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do maior estudo sobre a propagação da covid-19 no país.

Os pesquisadores fizeram testes para detectar o coronavírus em grupos de amostragem por todo o estado. O sistema aplicado é semelhante às pesquisas de intenção de voto: os resultados dos exames em um determinado número de pessoas servem para projetar como está a circulação do vírus em uma região.

Foram quatro rodadas de testes em intervalos de 15 dias, cada uma com a participação de 4.500 voluntários. A universidade pretende fazer mais quatro ciclos de testagem, totalizando exames em 36 mil gaúchos. O sistema de bandeiras no estado se baseou nos indicadores encontrados no levantamento.

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Em Nova Petrópolis, os moradores começam a sair de casa. É comum ver gente caminhando pelo centro, sempre usando máscara de proteção. Idosos também acabam dando uma escapadinha. Alguns burlam as regras por teimosia, mas muitos precisam sair por não terem familiares por perto dando suporte.

Pensando nisso, vários supermercados criaram horários especiais para atender exclusivamente os idosos. O comerciante Jair Lopes estabeleceu dois períodos diários em que apenas os velhinhos podem entrar no mercado: das 8h às 9h da manhã e das 14h às 15h. "Eles gostam de comprar suas próprias coisas, então a gente fez um horário diferenciado pra eles, pra não enfrentarem muita fila e muito movimento", afirma.

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Arte/R7

Quem vier fazer a compra do mês, chamada pelos gaúchos de "rancho", pode pedir para que os produtos sejam entregues em casa sem custo adicional. Jair também vende fiado. Tantas facilidades têm atraído os idosos. Mesmo assim, eles só vêm ao mercado quando realmente precisam. "Antes, eu vinha sempre que estivesse faltando alguma coisa em casa. Agora, venho uma vez por semana. Outras vezes, nenhuma. Depende da necessidade", diz Luiz Albarello, aposentado de 65 anos.

Apesar de o isolamento ser extremamente necessário para preservar os idosos, o geriatria Wilson Jacob Filho alerta que muitas famílias acabam infantilizando os mais velhos nessa fase. Mesmo enclausurados, eles devem ter a autonomia preservada. "Infantilizar ou tratar de uma maneira extremamente protetora não ajuda em nada nessa condição", orienta.

Leonilda Schaefer de Medeiros, de 70 anos, vive sozinha há 40 dias. O companheiro faleceu durante a pandemia. Ele sofria de fibrose pulmonar e passou oito meses de cama lutando contra a doença.

Com muita serenidade, Leonilda tenta manter uma rotina normal em um mundo totalmente mudado, desconhecido. A maturidade trouxe a sabedoria para aprender a lidar com as adversidades. "Quanto ao coronavírus, estou suportando essa realidade que está surgindo aí. A gente vai vencer essa barreira", diz.


Imagens: Leonardo Medeiros
Reportagem: Mariane Salerno
Arte: Matheus Vigliar, Pedro Tarantino e Sabrina Oliveira
Edição de vídeos:
Rodrigo Alves
Edição de pós-produção: Alessando Cezario, Miguel Wesley
Sonorização: Rafael Ramos, Renan Larangeira, Felipe Egea
Editora: Larissa Werren
Editor finalizador: Leandro Pasqualin
Chefia de reportagem: Mateus Munin, Renata Garofano
Editor executivo: Marcelo Magalhães
Editora-chefe:  Cristiane Massuyama
Projetos especiais: Gustavo Costa
Chefe de redação: Pablo Toledo