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Eduardo Marini, do R7, em Brasília

O leitor está convidado a observar a segunda foto deste Estúdio. Ali está escrito: “Esta reportagem do R7 é muito importante”. O R7, no caso, é aquele numeral com um risco diagonal na “testa”. Escrito, não – taquigrafado. Presente de Juliana Figueiredo e sua diretora, Adriana Silva, do departamento de taquigrafia da Câmara dos Deputados.

As taquígrafas Juliana (sentada) e Adriana trocaram o papel pelo tablet (Eduardo Marini/R7)

As taquígrafas Juliana (sentada) e Adriana trocaram o papel pelo tablet

Eduardo Marini/R7

Na reta final da CPI da Covid, o R7 percorreu Senado e Câmara para recolher exemplos de trabalhadores-símbolos do exército de funcionários com a missão de criar facilidades e dar suporte aos parlamentares no Congresso Nacional. A missão: trazer à tona quem efetivamente toca a estrutura da “cidade” chamada Congresso Nacional enquanto deputados e senadores discutem, debatem e muitas vezes trocam chumbo verbal de grosso calibre em busca de seus objetivos.

De taquígrafo a ascensorista, de garçom a médico, de agente policial a engraxate, 25,5 mil profissionais, entre concursados, secretários parlamentares, ocupantes de cargos especiais e funcionários terceirizados estão ligados de alguma forma às duas casas, segundo dados divulgados antes da pandemia pela associação Contas Abertas. São cerca de 16,5 mil na Câmara e outros 9.000 no Senado.

Um contingente igual ou maior que a população de 4 mil dos 5,57 mil municípios brasileiros. Em 2019, com salários e direitos adquiridos bem à frente, como sempre, o Congresso custou aos cofres públicos R$ 10,8 bilhões (R$ 6,3 bilhões à Câmara e R$ 4,5 bilhões ao Senado). Na média, R$ 900 milhões mensais ou R$ 29,59 milhões por dia – qualquer dia, incluindo fins de semana e feriados. Uma bolada praticamente igual, por exemplo, aos R$ 11 bilhões do PIB de três anos antes do estado de Roraima.

Frase em símbolos taquigráficos destaca importância da reportagem do R7 (Eduardo Marini/R7)

Frase em símbolos taquigráficos destaca importância da reportagem do R7

Eduardo Marini/R7

Juliana e Adriana, duas das 97 taquígrafas da Câmara, pertencem a esse exército numeroso e nada barato. A taquigrafia é um método secular de símbolos utilizado para acelerar a escrita, permitindo anotações na velocidade de quem fala.

Não é moleza acompanhar som a som, palavra a palavra, os discursos de parlamentares e, sobretudo, os bate-bocas entre eles. A cada quatro minutos, o taquígrafo é substituído por um colega para escrever no computador o que ouviu, em português, e voltar ao posto 30 a 90 minutos depois. Em jornadas calmas, ele retorna de três a cinco vezes. Nas apimentadas, de 9 a 11. Na reta final do impeachment da presidente Dilma Rousseff, os taquígrafos se revezaram por 48 horas, sem pausa, até o desfecho.

A coisa aperta quando parlamentares resolvem falar, gritar ou disparar termos pouco diplomáticos contra os adversários, o que está longe de ser raro, como se percebe nas transmissões ao vivo. “O plenário da Câmara tem 16 microfones. Às vezes, identifico e registro pelo menos dez vozes ao mesmo tempo”, garante Juliana.

O conteúdo é integralmente registrado tal como foi dito, mesmo quando a chapa esquenta e parlamentares disparam pedradas do quilate de “Vossa Excelência é um filho disso”, “corrupto”, “ladrão”, “safado”, “sem-vergonha” ou “vá para aquele lugar”. Nesses tiroteios verbais, é comum o presidente da sessão determinar a retirada dos balaços das notas taquigráficas. “Mas, se não houver ordem, fica como está”, explica Adriana. Em 2019, as anotações passaram a ser feitas em tablets nas duas casas, o que permitiu, apenas no Senado, uma economia anual de 6 mil blocos, ou 350 resmas (maços de 500 unidades), ou 175 mil folhas de papel.

Dona da voz dos '15 segundos' na CPI da Covid, Marluce virou meme (Arquivo pessoal)

Dona da voz dos '15 segundos' na CPI da Covid, Marluce virou meme

Arquivo pessoal

As ferramentas regimentais para conter o ímpeto dos parlamentares costumam produzir fenômenos interessantes. Marluce Ribeiro é locutora na Rádio Senado, no ar na internet, no dial de Brasília e no de outras 14 capitais brasileiras. Diabética, foi para o home office no início da pandemia. Em casa, gravou vinhetas e alertas regimentais para as sessões. Em um deles, diz apenas “15 segundos”, um recado ao senador com a palavra nas sessões de que o tempo determinado pelo regimento está para terminar.

Na CPI da Covid, a voz densa e imponente da locutora, normalmente em volume superior ao do microfone dos senadores, invadiu diariamente TVs e lares brasileiros por várias vezes. O que a audiência e mesmo alguns senadores não sabiam é que Marluce em nenhum momento esteve na sala da comissão: o recado era disparado automaticamente pelos computadores quando a contagem do sistema chegava aos tais 15 segundos do fim.

Apresento quatro programas na rádio, mas tornei-me conhecida aos 54 anos com uma gravação que consumiu três segundos.

Marluce Ribeiro, locutora

Como as pausas e interrupções que geravam tempos adicionais aos senadores raramente eram programadas nos equipamentos da sessão, a marcação automatizada acabava por virar um samba dos 15 segundos doidos, com a voz de Marluce interrompendo parlamentares até mesmo segundos depois da retomada da fala.

“Apresento quatro programas na rádio, mas tornei-me conhecida — e meme — aos 54 anos, com uma gravação que consumiu três segundos”, diverte-se ela. “Teve senador que, interrompido, dirigiu-se à 'locutora’ como se eu estivesse lá.” A bem da verdade, deve-se registrar que o recado de Marluce, mesmo quando lançado no momento certo, raramente era obedecido pelos senadores na CPI da Covid. Foram os 15 segundos mais desrespeitados da história da humanidade.

Lugar farto de bons salários, o Congresso abriga também profissionais que jogam o fino em várias posições e mantêm o padrão enquanto os outros lados sofrem abalos. A jornalista Aline Machado trabalha há 24 anos na comunicação da Câmara. Mas é também atriz, escritora e profissional de canto e dança. Seu livro mais conhecido é Alianças Eleitorais — Casamento com Prazo de Validade, sobre coligações políticas. O último trabalho nos palcos foi um musical sobre a cantora francesa Edith Piaf. De quebra, ela toca um abrigo para cem cães e gatos. “Máscaras estão na ordem do dia. Coloco uma para cada coisa que faço”, filosofa.

Silva e Mota (com barba) cobram R$ 12 a graxa no Senado (Eduardo Marini/R7)

Silva e Mota (com barba) cobram R$ 12 a graxa no Senado

Eduardo Marini/R7

No corredor de acesso à CPI da Covid, uma jornalista destaca a sensibilidade de Dona Monise, a quem coube a tarefa de servir água e café aos senadores na comissão. “Ela sabe a hora de chegar em meio às discussões”, elogiou. Tímida, Dona Monise saiu de fininho ao ouvir o pedido de entrevista.

Na gráfica do Senado, o encarregado de limpeza Clodoaldo Santos, 51 anos, descansa entre uma e outra jornada. É terceirizado, mas, com 23 anos de vínculo, já é literalmente da casa. Marcos Vinicius, seu primeiro filho, nasceu em julho de 1988.

O então auxiliar quis marcar a data. Com a ponta do aspirador, desenhou em relevo uma bandeira do Brasil, de um metro por dois, no carpete azul que fica em frente à mesa do plenário. Os senadores gostaram, e ele passou a estampar também a imagem do Congresso à direita da bandeira.

Clodoaldo virou figura popular na casa – é requisitado até por visitantes. “Os ex-senadores Cássio Cunha Lima e Eduardo Suplicy elogiavam os desenhos”, lembra ele. Em 2007, Santos flagrou o ex-senador Antônio Carlos Magalhães, presidente do Senado de 1997 a 2001, admirando seus traços solitária e atenciosamente no plenário vazio. “Foi emocionante. Saí e deixei o senador quieto.”

Os desenhos de Santos no plenário do Senado atraem turistas (Arquivo pessoal)

Os desenhos de Santos no plenário do Senado atraem turistas

Arquivo pessoal

Antônio Sabino, 58 anos, o Gorbachev, é um dedicado assessor de comissões em uma das lideranças da Câmara. Veio menino para Brasília de Tianguá, noroeste do Ceará, com os pais e dois irmãos, numa viagem de 14 dias em pau de arara. Lavou carro, foi engraxate na casa e assinou seu primeiro contrato como ajudante de serviços gerais.

Gorbachev tornou-se popular na Câmara por sua luta pela melhoria das condições de trabalho dos servidores. Numa delas, ajudou terceirizados a ter acesso a restaurantes e outros serviços antes reservados aos concursados. Em 1993, numa das sessões da CPI mista dos Anões do Orçamento (os sete deputados acusados de desvio tinham baixa estatura; daí o nome), por pouco não perdeu o emprego ao entrar com outros colegas e tentar distribuir mais de 20 pizzas. “Voou pedaço para tudo quanto é lado, e a polícia legislativa nos expulsou.”

A calva vistosa de Sabino, com uma mancha vermelha na curva da testa, semelhante à do líder Mikhail Gorbachev, condutor da glasnost (transparência) e da perestroika (reestruturação) na ex-União Soviética, explica o apelido (veja a galeria de fotos).

Alinhamento visual

Gorbachev dava trato aos sapatos dos deputados nos gabinetes. Até hoje, a Câmara não conta com salão de cabeleireiro nem com bancada de engraxate. Mas, no Senado, esses dois serviços são poderosos, para usar um adjetivo próprio ao meio, prestigiado também por deputados. Doze profissionais da tesoura e quatro das graxas dividem o custo da concessão dos espaços.

Os preços não fazem o tipo curto Chanel, tampouco o longo Rapunzel. Graxa a R$ 12, “corte unissex” e “barba modelada” a R$ 40, “barba simples” a R$ 35, pés e mãos femininos e masculinos a R$ 60. Jornalistas e visitantes podem usufruir dos serviços, mas o recado na tabela de preços é claro: atendimento preferencial aos senhores senadores e servidores do Senado Federal. “Quando chega um parlamentar apressado, a gente passa na frente”, admite Fábio Júlio Mota, 41 anos, craque das escovas de sapato ao lado de Luiz Henrique Silva, 17. Esperidião Amim (Progressistas-SC) é o senador mais descontraído da bancada da graxa.

O atendimento no posto de saúde do Senado também é exclusivo para senadores. “Mas na emergência, por dever de ofício, a gente socorre quem for”, destaca o cirurgião-geral Gustavo Korst, que havia acabado de atender uma visitante que desmaiara por queda de pressão. Em dia de sessão lotada, a equipe atende em média dois parlamentares. Apesar de abrigar um número 6,3 vezes maior de parlamentares do que o Senado, a Câmara conta com um ambulatório menor.

No salão de cabeleireiro, Fernando Matias, 64 anos, os últimos 35 no Senado, é o veterano da turma. Lembra-se de ter aparado várias vezes o que restava de fio na cabeça dos ex-senadores ACM e Marco Maciel. Hoje os mais assíduos são Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Kátia Abreu (DEM-TO). Matias tem saudade da ex-senadora Ana Amélia (PP-RS), famosa entre a rapaziada pelas gorjetas generosas. “O resto é tudo mão de vaca. Quer é troco”, rebate de voleio.

A língua solta de Matias contrasta com a postura majoritária dos servidores do Congresso de tentar manter distância cautelosa de jornalistas. Seja pela verticalização excessiva no comando, seja pela proibição, em muitos casos, de dar declarações sem autorização, o fato é que entrevistar funcionários do Congresso, e também de outros templos brasilienses do poder, não é definitivamente uma tarefa das mais fáceis.

A maioria é terceirizada e ganha salário de batalha.

Ascensorista do Congresso

Na chapelaria, entrada principal de credenciados para as duas casas, chamada assim em homenagem aos tempos em que havia onde pendurar chapéus nos parlamentos, recepcionistas, seguranças e operadores de raio-x descartam conversa com um “não posso” ou “não estou autorizado” devidamente ensaiado.

“Vocês divulgam que a gente ganha uma fortuna e isso traz uma dor de cabeça danada. Hoje os concursados são poucos. A maioria é terceirizada e ganha salário de batalha”, reclama um ascensorista, sem se identificar. O Congresso conta com 74 ascensoristas, para não deixar senadores, deputados, funcionários e visitantes fazerem o singelo movimento de apertar os botõezinhos dos andares dos elevadores.

Às vezes, por questões mais amenas, um ou outro agente das polícias legislativas da Câmara (Depol) ou do Senado (Spol) quebra a regra. Caso de Leonela Santos, 35 anos, formada em direito, agente da Depol desde 2014. Leonela é abordada com frequência na chapelaria e nos corredores da Câmara por visitantes, funcionários e parlamentares dispostos a acariciar Margaux, treinada por ela desde o fim de junho de 2021.

Explica-se: Margaux, um ano e meio de vida, é uma graça de cadela golden retriever de postura elegante, pelagem macia e distintivo pendurado no pescoço. Está sendo preparada para ser a pioneira de um programa da Depol que, concluído, terá quatro cães treinados para farejar armas e explosivos.

A cadela Margaux, treinada pela agente Leonela, tem vários deputados entre seus fãs (Eduardo Marini/R7)

A cadela Margaux, treinada pela agente Leonela, tem vários deputados entre seus fãs

Eduardo Marini/R7

Margaux tem página no Instagram e filmes no YouTube. Na Câmara, “lidera” uma bancada suprapartidária e forte. Os deputados Eduardo da Fonte (PP-PE), Isnaldo Bulhões (MDB-AL), Jaqueline Cassol (Progressistas-RO), Ricardo Izar (PP-SP), Celio Studart (PV-CE) e Marcelo Ramos (PL-AM), que tem um golden, são fãs dela, conta Leonela. O presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), postou fotos da cadelinha em suas redes sociais.

No último dia 30 de setembro, Margaux foi levada a uma sessão na Câmara para, digamos assim, acompanhar a aprovação de um projeto de lei, de autoria de Izar e Studart, que proíbe o abate e a eutanásia de cães e gatos saudáveis em centros de zoonose. 

Tecnicamente, o Senado está um pouco mais adiantado nesse processo. Sob a orientação do veterinário Floriano Pinheiro, agente da Spol, os pastores-belgas-malinois Barth e Jethro, o pastor-alemão Axel e o pointer-inglês Hummer já dão suas farejadas nas sessões. “Barth e Hummer atuaram muito na CPI da Covid”, destaca o orgulhoso Pinheiro.

Novos perfis e tecnologia

O avanço furioso da tecnologia transformou em lembrança uma das atividades históricas no Congresso. Centenas de visitantes sem vínculo contratual costumavam defender uma grana na Câmara coletando assinatura de deputados para emendas e projetos de lei a serem apresentados por seus colegas.

Deputados pagavam entre R$ 3 e R$ 5 a voluntários por cada jamegão de parlamentar. “Com vários processos, dava para tirar uns R$ 2 mil mensais, às vezes um pouco mais. Mas na pandemia, com os deputados em casa, passaram a colher as assinaturas por meio eletrônico, e aí acabou. E não acho que voltará”, conta Joana, que não revelou o sobrenome. Ela ao menos teve alguma sorte: foi empregada como terceirizada na limpeza da Câmara.

Oficialmente, o grosso do apoio logístico do Congresso funciona de segunda a sexta. Na prática, a segunda parece uma manhã de sábado animado. A coisa bomba na terça, na quarta e na manhã de quinta. Na tarde da mesma quinta, ao início do "Bye, Bye, Brasília" por parlamentares e assessores rumo a suas regiões, a turma das facilities, do trampo, começa a dar linha na pipa e a escassear nas salas, setores e corredores.

A batida em retirada atinge o auge na sexta cedo, dessa vez com cara de sabadão de folga. Sem os 513 deputados, os 81 senadores e chefias do pedaço, o caminho fica livre para aquele "perdido" providencial.

Fim da manhã de sexta-feira (22), dois dias após a leitura do relatório final da CPI da Covid. A reportagem fotografa dois ícones da arquitetura do Congresso, delineados pela genialidade do arquiteto Oscar Niemeyer: o corredor conhecido como Túnel do Tempo, no Senado, e o Salão Verde, na Câmara, batizado assim pela cor do carpete que cobre seu chão.

Ambos estão às moscas – ou, a rigor, até sem elas, barradas pelo isolamento eficiente das duas casas. No histórico Café da Câmara, com a célebre parede de azulejos do artista Athos Bulcão ao fundo, o garçom William aproveita a ausência absoluta de público para conversar com duas colegas. “Nas terças e quartas de sessão quente no plenário é impossível contar a quantidade de café que a gente serve”, diz.

A reportagem se despede da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A “cidade” chamada Congresso Nacional vai mergulhar no folgão da paz.

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Leonardo Sá/Agência Senado - 20.10.2017