Ver o conteúdo do artigo
Pablo Nascimento, do R7

Há sete anos o pescador e garimpeiro Geraldo Felipe, de 57 anos, mais conhecido como Tuzinho, passou a ter certeza de que é falso o mito de que um raio não cai duas vezes no mesmo local.

No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, a 110 km de Belo Horizonte, levou milhões de toneladas de rejeito de minério ao rio Doce, de onde ele tirava a maior parte da renda da família.

Na época, ele ainda sentia o choque cultural e emocional de ter sido remanejado, em 2004, da comunidade onde vivia: São Sebastião do Soberbo, distrito de Santa Cruz do Escalvado, a 208 km de Belo Horizonte.

O povoado foi realocado em outro canto da cidade, no agora chamado Novo Soberbo. O antigo foi inundado para a construção da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, também conhecida como usina de Candonga.

"Eu fui atingido duas vezes", comenta sobre o fato de ter visto a vida virar de ponta-cabeça em duas ocasiões em função de uma grande empresa e contra a vontade própria.

https://img.r7.com/images/7-anos-de-mariana-geraldo-felipe-04112022213219868

Pablo Nascimento / R7

O comentário foi feito enquanto Tuzinho seguia com a equipe do R7 para o rio Doce. "Esta é a primeira vez que eu entro no rio desde o rompimento", disse ao entrar no barco a motor com capacidade para sete pessoas. Acompanhe parte da viagem em um vídeo em 360°/VR. Para melhorar experiência assista pelo celular e com óculos de realidade virtual.

A ocasião exigiu uma vestimenta a caráter. A camisa branca já com sinais do tempo e a pochete marrom de couro pendurada em um dos ombros ganharam a companhia de um colete salva-vidas em tom de camuflagem militar e um facão guardado em uma capa também de couro. Ambos com aparência de novos e bem cuidados. De fato, eram.

"Comprei esse colete a mais ou menos um ano para usar quando eu fosse para a beira do rio. Hoje foi a primeira vez que eu usei", conta.

Durante o passeio, que durou aproximadamente 30 minutos, até os grandes paredões da usina, o pescador explicou o motivo de não se aproximar do rio desde a tragédia.

"Às vezes algumas pessoas que não são daqui vêm e pescam, mas nós nascidos e criados aqui na região ainda não sentimos segurança na qualidade do pescado e nem da água", diz enquanto estica o braço apontando para todos os lados do rio.

"Quando a gente fala que o peixe é daqui, ninguém quer comprar"

Tuzinho

Apesar da preocupação dos moradores, a Fundação Renova, criada para receber o dinheiro das mineradoras e aplicar na correção de danos da tragédia, afirma que a água do rio Doce "apresenta condições similares às de antes do rompimento" e pode ser consumida por humanos se passar por "tratamento convencional nos sistemas públicos de saúde".

A entidade também garante que o manancial pode ser usado para irrigação e dado a animais.

Ao todo, 45 milhões de metros cúbicos de rejeito saíram da barragem de Fundão. O volume é suficiente para construir 18 pirâmides de Quéops, a maior do Egito. O montante é quatro vezes maior do que o despejado na tragédia de Brumadinho, em 2019.

A lama de restos de minério de Mariana varreu comunidades, áreas de matas, nascentes e atingiu 670 km de cursos d'água. O material atingiu os rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce até chegar ao Oceano Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.

https://img.r7.com/images/7-anos-mariana-arte-04112022203809112

Arte R7
Povos tradicionais

"Sou pescador e faiscador." É bem comum ouvir essa resposta ao perguntar a algum morador de São Sebastião do Soberbo sobre o que ele faz para ganhar a vida.

Faiscador é o nome que eles usam para a atividade de garimpo, feita de forma manual, sem maquinário sofisticado. Tuzinho é um deles. "Desde os sete anos", comenta.

Ele lembra que extraía o metal nobre do fundo e da calha do rio enquanto a rede ficava armada para pegar os peixes. Em meses de mais sorte, chegava a faturar R$ 1.000 com a venda do ouro.

O cenário começou a mudar quando o rejeito chegou ao trecho do rio que passa pela comunidade, na manhã seguinte ao rompimento ocorrido por volta das 15h30 do dia 5 de novembro de 2015. "A lama cobriu o ouro. A gente não consegue tirar mais nada de lá", lamenta.

O mesmo problema aconteceu na cidade de Barra Longa, que fica entre a então barragem de Fundão e a cidade de Santa Cruz do Escalvado. Lá, o material que vazou do reservatório chegou na madrugada do dia 6.

"O prefeito me ligou dizendo que a lama estava chegando. Eu não acreditei", recorda o pescador, garimpeiro e comerciante Sérgio do Carmo, de 53 anos, também conhecido como Sérgio Papagaio.

Barra Longa fica em um ponto anterior ao rio Doce. É na cidade que acontece o encontro dos rios Gualaxo do Norte e do Carmo.

O rio Doce nasce mais à frente, com a união do Carmo e Piranga, entre as cidades de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado.

Sérgio Papagaio é um dos coordenadores do Grupo de Garimpeiros Tradicionais do Alto do Rio Doce. "Os garimpeiros tradicionais aqui da região são os remanescentes dos garimpeiros que fundaram o estado de Minas Gerais", comenta Sérgio Papagaio sobre a prática secular.

Morador de Barra Longa (MG) fez poema sobre rios atingidos por lama (Pablo Nascimento / R7)

Morador de Barra Longa (MG) fez poema sobre rios atingidos por lama

Pablo Nascimento / R7

Após o rompimento, o grupo se juntou para se autodeclarar uma comunidade de povos tradicionais e, assim, facilitar o acesso dos trabalhadores informais às reparações dos danos financeiros causados pelo rompimento.

Agora, o grupo aguarda um reconhecimento formal por parte da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais, ligada ao Governo Estadual. A reportagem procurou o estado para comentar a situação dos moradores da região e aguarda retorno.

O advogado Guilherme Jaria, especialista em povos e comunidades tradicionais, acompanha a situação dos moradores de Santa Cruz do Escalvado, Rio Doce e Chopotó, distrito de Ponte Nova, pelo Instituto Rosa Fortini. A entidade é uma assessoria técnica contratada para prestar apoio aos atingidos depois de um acordo entre a Renova e o poder público.

Jaria avalia que os garimpeiros da região não podem ser comparados àqueles que atuam ilegalmente em outras partes do país, como no Amazonas e no Pará.

"Os povos e comunidades tradicionais têm uma relação de sujeito-sujeito com o ambiente no qual estão inseridos. Em um caso como dos garimpeiros tradicionais do alto rio Doce, se o rio morre, eles morrem", explica.

Ouça no podcast abaixo a história de outros moradores que dependiam economicamente do rio Doce. Dentre eles, está a empresária Rosane Gomides Sena Cupertino, de 58 anos. Rose, como é conhecida, é dona de um camping no Soberbo Novo.

Ao perder a renda com a fuga dos turistas, a empreendedora viu o filho abandonar o curso de direito em uma faculdade federal por falta de recursos para se manter. Hoje, o camping ainda é bem cuidado por ela, mas está às moscas.

https://img.r7.com/images/7-anos-mariana-arte-04112022204239627

Arte / R7

Enquanto isso, os garimpeiros do Alto do Rio Doce ainda lutam por reparação. A Renova declara que empenhou, até novembro deste ano, R$ 11,46 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 403,8 mil famílias impactadas.

O Instituto Rosa Fortini afirma que boa parte dos moradores da região onde a assessoria atua ainda aguarda a liberação da indenização. Há casos como o de Tuzinho, que chegou a ser indenizado, mas questionou os valores, e há relatos como o de Sérgio Papagaio que está recebendo apenas o auxílio financeiro.

Sérgio Papagaio também é conhecido pelos trabalhos artísticos que faz na comunidade de Barra Longa. No poema Grande Encontro, ele relata o impacto da lama que atingiu os rios Gualaxo do Norte e do Carmo. Veja abaixo:

Relação com o rio

A produtora rural e técnica de segurança do trabalho Ana Maria de Oliveira, de 41 anos, lembra das dificuldades que enfrentou para manter a família após o rompimento.

Na época, a moradora de Santa Cruz do Escalvado trabalhava na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves. Como boa parte da lama ficou presa no reservatório, a usina precisou ser desligada. Com isso, Ana Maria perdeu o emprego.

Desta vez, ela não pode recorrer ao rio, como já havia feito em outras ocasiões, para pescar e garimpar com o objetivo de conseguir uma renda. O que restou para ela foram as 40 cabeças de gado que tinha na época.

Moradora de Santa Cruz do Escalvado (MG) se afundou em dívidas após rompimento (Pablo Nascimento / R7)

Moradora de Santa Cruz do Escalvado (MG) se afundou em dívidas após rompimento

Pablo Nascimento / R7

"Eu tive que fazer um empréstimo, aí eu fui desfazendo das vacas para pagar. Hoje só tenho 12", relata sobre a fase em que viu sua produção de leite ficar quatro vezes menor.

A família voltou a ter um pouco mais de segurança quando começou a receber o auxílio emergencial mensal da Renova. Ana Maria ainda aguarda avaliação do perito sobre o pedido de indenização feito por ela.

Nosso café da manhã era peixe. Minha mãe fritava o peixe e dizia que o café da manhã estava pronto.

Ana Maria Oliveira

Ana lembra que o rio foi fonte de alimentação da família e de onde ela conseguiu fazer dinheiro para se formar. Veja como a Ana Maria vive atualmente:

A relação de Ana com o rio passou de geração em geração. A mãe dela, Maria do Carmo Oliveira, de 68 anos, também foi pescadora, produtora rural e garimpeira. Além de conseguir o sustento no rio, era lá que ela tinha momentos de lazer com a família.

"A gente acampava no rio e fazia piqueniques", conta ao falar sobre a diversão dos filhos. Agora, Maria do Carmo vê os netos e o bisneto crescerem sem ter o curso d'água como referência cultural e de vida.

A neta Rhaquelly Oliveira, de 9 anos, só tinha dois anos quando foi ao rio Doce pela última vez. Pelo que escuta da família, ela não deve nadar no local novamente tão cedo. Conheça a história:

Reconstrução das casas

A onda de rejeitos destruiu as casas de 378 famílias em três distritos mineiros. O mais afetado foi Bento Rodrigues, que está em fase de reconstrução em novo local.

Passados sete anos da tragédia, a Renova anunciou que parte dos moradores já poderão ocupar as casas a partir de 2023. Até o momento, 78 ficaram prontas e 76 estão em processo de construção. A expectativa é que o ano termine com 120 imóveis concluídos no novo Bento, que vai receber 196 famílias.

Novo distrito de Bento Rodrigues deve ser ocupado a partir de 2023 (Divulgação / Fundação Renova)

Novo distrito de Bento Rodrigues deve ser ocupado a partir de 2023

Divulgação / Fundação Renova

Em Paracatu de Baixo, 79 famílias terão suas casas reconstruídas. Destas, a Renova começou as obras de 56. Nenhuma foi concluída. Já em Gesteira serão oito imóveis. O projeto da comunidade ainda aguarda homologação da Justiça para ser executado.

Outras 104 famílias optaram por receber suas casas fora dos reassentamentos. Dezenove imóveis já foram entregues. Segundo a Renova, 2,74 bilhões foram destinados aos reassentamentos até agosto de 2022.

No podcast a seguir, você vai acompanhar o momento em que uma moradora de Bento Rodrigues entrou na casa reconstruída pela primeira vez:


Reportagem: Pablo Nascimento
Podcast: Pablo Nascimento e Pollyana Sales
Edição de podcast: Kiko Viveiros
Reportagem em 360º/VR: Pablo Nascimento
Edição de 360º/VR: Gustavo Lucas
Arte: Sabrina Cessarovice
Chefia de redação: Adriana Viggiano e Flávia Martins y Miguel
Direção de jornalismo: Marco Nascimento