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Marcos Rogério Lopes, do R7

As brigas entre torcidas de futebol voltaram a ser notícia com a divulgação de violentos e fatais encontros pelo país. A forma de estragar a graça do esporte mudou com o tempo — de socos entre torcedores a facas, pedaços de pau ou revólveres. O que não teve alteração, dizem os especialistas no assunto, foi o fato de que os jogos e as disputas de campeonato sempre foram um pretexto para que homens criem campos de batalha para provarem sua masculinidade e para exercitarem a intolerância.

Pesquisadores que estudam há anos a violência nas torcidas defendem políticas públicas eficazes e o serviço de inteligência policial para evitar confrontos, punição aos agressores e uma ampla campanha de educação às organizadas e à população em geral.

Todos destacam também o importante papel da imprensa, que em muitos casos estimula humilhações aos derrotados, menosprezo às conquistas, intransigência na discussão e desrespeito a jogadores, técnicos, juízes e dirigentes, o que fomenta a raiva dos espectadores. 

Palmeirenses X cruzeirenses: briga em rodovia (Reprodução/Twitter)

Palmeirenses X cruzeirenses: briga em rodovia

Reprodução/Twitter

Um dos casos mais noticiados recentemente ocorreu no fim de setembro, quando as torcidas do Cruzeiro, que jogaria em Campinas (SP), e a do Palmeiras, que estava a caminho de Minas, se encontraram na rodovia Fernão Dias, perto do município de Carmópolis (MG).

A Máfia Azul, do Cruzeiro, disse ter sido vítima de uma emboscada da palmeirense Mancha Verde. Doze pessoas ficaram feridas, quatro baleadas.

Um palmeirense acabou internado em estado grave, mas já recebeu alta. Foram localizados nos veículos das duas torcidas, segundo a Polícia Rodoviária Federal, barras de ferro, bastões de madeira e rojões.

Pelo episódio, a Máfia Azul foi proibida de entrar nos estádios por um ano. 

O professor do curso de pós-graduação de história sociocultural do futebol na USP (Universidade de São Paulo) Flávio de Campos diz que esse encontro era uma tragédia anunciada, assim como vários outros que vêm ocorrendo no Brasil. O problema, afirma, é que não há políticas de segurança para coibi-los.

"O Cruzeiro vai jogar em São Paulo; o Palmeiras, em Minas; e a estrada que liga os estados é a Fernão Dias. Óbvio que isso aconteceria. A segurança pública deveria ter coordenado o horário de viagem de cada torcida, e a polícia precisaria acompanhar os ônibus, procedimentos que eram feitos no país e foram abandonados", diz o professor,  mestre e doutor em história social pela USP. 

"Esses grupos buscam visibilidade social e usam confrontos como esse para mostrar força. Isso, infelizmente, vai continuar acontecendo", analisa. "Ainda mais em uma sociedade que estimula a violência, como a nossa." 

"Não estou tirando a culpa dessas agremiações. Nem estou dizendo para passar pano ou aceitar o que fazem os torcedores agressivos. O que precisa é repensar o papel das organizadas e trazê-las de volta à discussão do futebol nacional", defende Campos.

O professor da USP analisa que, nos últimos 10, 12 anos, ocorreu no Brasil um processo de criminalização das torcidas. "Olhá-las apenas como culpadas pela violência e marginalizá-las ajudou a afastá-las dos espaços do futebol."

Brigas se afastaram dos estádios

Flávio de Campos lembra que, além de o torcedor das organizadas ser identificado como um perigo no espetáculo, ingressos caros e horários inviáveis de partidas — no fim da noite de um dia de semana, por exemplo  — excluíram muita gente que queria, mas não tem mais acesso ao campo. "Esse processo de frustração alimenta ainda mais a raiva e os atos violentos, que migraram para outros espaços", explica.

A doutora em educação física pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Heloísa Baldy dos Reis, uma das maiores autoridades do país no assunto, acrescenta que o monitoramento dos torcedores foi essencial para garantir a segurança em estádios e arenas, mas, por outro lado, foi responsável por deslocar os confrontos para regiões distantes do local do jogo.

"Os enfrentamentos acabam ocorrendo em pontos com pouco ou nenhum policiamento e que não estão preparados para esses conflitos", comenta Heloísa Baldy, e cita bares que transmitem os jogos na TV ou rodovias, como ocorreu na guerra entre palmeirenses e cruzeirenses, na Fernão Dias.  

"A rivalidade faz parte do esporte, e essa catarse do ser humano em vibrar com um time é natural. Mesmo a provocação é saudável. O que não pode é deixar chegar à violência", afirma. "Para evitar isso, é preciso segurança e planejamento."

Heloísa Baldy, que integrou um comitê federal que nos anos 2000 debateu e desenvolveu estratégias para coibir pancadaria nos estádios, também vê retrocesso nacional nessa discussão. "Todas as políticas públicas foram paralisadas. Desde 2014, mais ou menos, nada é feito."

"O número de casos de violência aumentou e, infelizmente, a tendência é piorar", disse a pesquisadora, autora de livros sobre torcidas organizadas e formas de conter as agressões. Em sua opinião, a polarização atual vista na sociedade brasileira e o grande número de armas vendidas tendem a piorar o resultado dessas disputas.

O presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil), Luiz Cláudio do Carmo do Espírito Santo, afirma que até 2015 a categoria contava com a ajuda do Ministério dos Esportes no trabalho de aproximação das torcidas rivais, mas isso acabou.

"Desde o fim do ministério, a gente foi abandonada. As autoridades não se preocupam e foram deixando o assunto de lado. Muitas pessoas e governos fizeram pior e bateram na tecla única de extinção das torcidas, o que é um enorme erro", argumenta o dirigente. 

Para ele, as punições precisam ser individuais — "no CPF" —, não ao grupo de torcedores. "Torcida é espetáculo, música, diversão na arquibancada. Não tem nada a ver com porrada, bomba e tiro."

"Vários locais do Brasil hoje em dia têm agremiações punidas, impedidas de ir aos jogos, e mesmo assim a violência continua. Qual é a explicação?", questiona. 

Na defesa das uniformizadas, Luiz Cláudio observa que, além de deixarem o espetáculo mais bonito, elas facilitam as ações das forças de segurança; afinal, seus integrantes podem ser facilmente identificados caso ocorra algum imprevisto.

Futebol romântico, mas nem tanto

Já havia violência nas partidas de futebol bem antes da primeira morte em um jogo oficial, em 1992. A tragédia ocorreu no estádio do Nacional, na zona oeste de São Paulo, quando o corintiano Rodrigo de Gásperi, com apenas 13 anos, foi morto após a explosão de uma bomba caseira na partida entre Corinthians e São Paulo. 

"Desde o início do seculo 20 você tem relatos dos jornalistas de brigas entre torcedores. A violência sempre existiu, só que eram desentendimentos pequenos, isolados", observa o professor Silvio Ricardo da Silva, coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Com o tempo, depois da organização dos grupos uniformizados, as pancadarias se tornaram coletivas, e armas como facas e pedaços de pau entraram nos estádios. 

"Precisamos definir se vamos continuar humanos ou se vamos virar monstros, integrantes de uma sociedade violenta, estúpida, burra, que desqualifica profissionais e exalta sentimentos primitivos e brutais."

Flávio de Campos, pesquisador da USP

Uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo de 7 de junho de 1953 alertava para o risco de "um incontrolável aumento da violência se medidas urgentes" não fossem tomadas. A reportagem contava que, após um Santos X Vasco dias antes, alguns torcedores do time paulista quebraram os carros dos cariocas. Ninguém se feriu.

"No tempo do saudoso amadorismo, (...) registravam-se, de quando em quando, conflitos de certo vulto. (...) Mas não nos lembramos de cenas de vandalismo como essas a que nos referimos. O policiamento, naquele tempo, era mais eficiente. Nos 'sururus', intervinham prontamente os cavalarianos da Força Pública, empunhando seus sabres, mas somente procuravam assustar, ainda que algumas vezes alguém se ferisse nas correrias", recordou, saudosista, o repórter de 1953.

De acordo com a matéria, "nos nossos dias" (69 anos atrás) os governos gastam "10, 20 ou mais vezes" do que na época do amadorismo, sem o menor êxito. "Com efeito, a segurança pública é cada vez mais precária entre nós." 

O mesmo jornal noticiava que, no dia 22 de agosto de 1985, um encontro entre torcidas organizadas de São Paulo e a Federação Paulista de Futebol "tentaria aplacar a violência nos estádios". 

O então presidente da federação, José Maria Marin, convocou a reunião após ter ficado "preocupado com as bombas caseiras que foram apreendidas pela polícia antes do clássico Corinthians X Palmeiras".

O dirigente defendia, na época, a punição individual dos torcedores, não das organizadas. "Foi um ato isolado, praticado por irresponsáveis. As torcidas uniformizadas sempre foram uma festa para o futebol. Acredito que, com o diálogo, encontraremos a solução", disse Marin ao Estadão.

Não deu certo. Um levantamento do sociólogo Maurício Murad, coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado de Oliveira, de Niterói (RJ), aponta 2013 como o ano com mais assassinatos associados aos torcedores de futebol: 30. Entre 2009 e 2019, foram 157 mortos no total.

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Arte/R7
Conversando, tudo se resolve

Flávio de Campos, da USP, diz que a pacificação das torcidas passa inicialmente pela conversa das autoridades com os líderes das agremiações, em reuniões que estabeleçam compromissos claros para serem cumpridos pelas duas partes. 

Ele lembra que essa prática ocorreu até o início da década passada em vários jogos de futebol nacionais. 

"Havia momentos antes dos clássicos em que a Secretaria de Segurança Pública local organizava, ao lado das lideranças das torcidas, como seria a escolta, que instrumentos poderiam ser levados, e criava-se um acordo entre elas, que permitia que os torcedores fizessem parte do processo."

O professor é contra a adoção das torcidas únicas em clássicos, regra adotada em São Paulo e em outros estados. "Essa solução mágica tira a violência do estádio e a transfere para os bairros, mas não ataca o problema."

"Torcida única só incentiva mais a violência, deixa o cara [torcedor] irritado, chateado", reclama Luiz Cláudio, da Anatorg. "O certo é ter políticas públicas alinhadas ao esporte e que defendam essa opção de diversão à população", sugere.

"A gente quer festa na arquibancada, com bateria, faixa, música e bandeira. Na Europa, o futebol é um espetáculo bonito, só que aqui a gente não pode mais fazer isso", completa o presidente da associação. 

Flávio de Campos destaca uma experiência bem-sucedida no futebol do Rio de Janeiro, com a Gepe (Grupamento Especial de Policiamento no Estádio), nos anos 2000, que ajudou a reduzir o número de confusões e mortes no estado. "Era uma polícia especifíca para o futebol, especializada, coordenada pelo coronel Fiorentini, um militar que tinha como prática o diálogo com as organizadas."

Hoje em dia, diz Campos, a Gepe deixou de focar a conversa e a preparação dos eventos para se dedicar ao policiamento ostensivo, como costumam fazer as forças de segurança em todo o Brasil.

O doutor em história social detalha inúmeros erros do trabalho das polícias nos estádios. "Cavalo, por exemplo, é um absurdo ser usado num local como esse. O animal vai se assustar com os rojões e com o excesso de pessoas a sua volta."

Outra falha, diz o especialista, é o uso dos batalhões de choque para esses eventos.

"Esses agentes só servem para o enfrentamento. Não é o caso da segurança das torcidas."

Ingressos mais baratos

Heloísa Baldy sugere também que seja revista a "glamourização que tomou conta dos estádios brasileiros", principalmente após a construção das arenas da Copa do Mundo de 2014, sediada pelo Brasil.

"Antes de tudo, é preciso ressaltar que a violência não está ligada à pobreza. O erro de transformar estádios em arenas foi deixar esse entretenimento apenas para o público com dinheiro, e excluir boa parte dos verdadeiros amantes do futebol, que perderam lugar nas arquibancadas."

Essa marginalização foi um combustível fatal para a violência, observa a doutora da Unicamp.

Na visão da pesquisadora, foi um grande equívoco o fechamento dos espaços para os torcedores mais humildes. "Espanha e Alemanha, por exemplo, têm conforto e setores mais baratos."

Heloísa acredita ter sido intencional esse processo de encarecimento dos locais dos jogos, mas vê também nessa medida um tiro no pé dos dirigentes e empresários brasileiros ligados ao futebol. "O objetivo das arenas é criar um consumo que vai muito além da partida, com estações gourmet, comércio de produtos, licenciamentos, uniformes caríssimos etc."

O problema é que isso terá um impacto negativo no futuro do esporte, avalia a especialista no tema. "O futebol vai perder força por causa da falta de estímulo para que os torcedores fiéis frequentem os estádios. E o público, que já é muito baixo no Brasil comparado ao que era em décadas anteriores, vai cair ainda mais."

Para Flávio de Campos, qualquer ação que favoreça os clubes de futebol (isenção de impostos, subsídios, concessão de terrenos públicos) deveria ter como contrapartida o ingresso social. "Uma reserva de 10% a 15% dos espaços dos estádios para a população de baixa renda. Não em um setor isolado, mas espalhados por toda a arquibancada."

Ele ressalta que a renda que sustenta os times hoje em dia vem muito mais dos direitos de transmissão dos jogos, negociados com as redes de TV, e dos contratos de patrocínio. "Sem contar que raramente as arquibancadas ficam cheias. Essa ação só teria benefícios." 

Medidas contra as brigas das torcidas  (Arte/R7)

Medidas contra as brigas das torcidas

Arte/R7
O papel da imprensa

O professor Sílvio Ricardo, da UFMG, diz que é essencial que se ouçam as aspirações das agremiações. "Precisa conversar sem impor regras nem ameaças. É necessário escutar. As organizadas reinvindicam o estádio dividido, para que voltem as grandes festas dos torcedores e para que a mídia possa destacar também esse lado positivo do futebol."

Sílvio Ricardo analisa a importância de os jornalistas destacarem não só atos violentos ou preconceituosos de integrantes das torcidas, mas também ações sociais e os shows nas arquibancadas que elas promovem. 

"Se pensarmos em como são formados esses grupos, vamos entender que eles precisam de valorização social. É importante que sejam ouvidos, porque fazem ações sociais legais que não são divulgadas. Por que os programas não dão visibilidade também ao sacrifício que vários torcedores enfrentam para acompanhar seu time?", pergunta o professor da UFMG.

Sílvio Ricardo destaca ainda que há torcidas organizadas de vários tipos no Brasil — algumas familiares, pequenas e temáticas. "Os grupos responsáveis por esses conflitos são uma minoria, mas uma minoria com muita gente e que faz barulho." 

De acordo com a Anatorg, o país conta com 600 organizadas aproximadamente, com cerca de 3 milhões de integrantes.  

Heloísa Baldy dos Reis tem a sensação de que os programas esportivos melhoraram desde a década de 1990. "Eu fui uma grande crítica da imprensa, mas acho que valeu a pena nós, pesquisadores, mostramos nossos trabalhos, porque os jornalistas se conscientizaram do problema e estudaram o assunto." 

Para a professora, que disse que era comum repórteres olharem torto para ela quando começou a falar sobre o tema, há quase 30 anos, o preconceito em relação aos torcedores diminuiu, e é mais fácil hoje em dia buscar soluções ao lado da imprensa.

Algumas dicas, no entanto, valem a pena ser reforçadas, segundo ela. Sugere que comentaristas e repórteres não usem termos bélicos, evitem qualquer estímulo a confrontos e abram mão de análises que ponham vitórias como obrigações ou determinem que esse ou aquele atleta não tem condições de jogar em determinada equipe. 

Flávio de campos, da USP, dá outros conselhos. 

"A lacração dos jornalistas esportivos, de maneira desrespeitosa e agressiva, inflama e contribui para um ambiente de tensão."

Na receita de estímulo à violência, ele adiciona as redes sociais e a facilidade hoje de agredir ou marcar encontros via Twitter, Facebook ou outros serviços do gênero.

"As redes sociais trouxeram, além da desinformação, a exacerbação das rivalidades. Nesses locais, torcedores se sentem fortalecidos e amparados. E podem se unir rapidamente contra outro grupo." 

Campos diz que um de seus trabalhos tem sido acompanhar coletivos de torcedores. "Nessas conversas, a gente cultiva o respeito acima de tudo."

"Quando um meio de comunicação desrespeita os profissionais do futebol, sejam jogadores, técnicos ou juízes, isso ecoa nas torcidas, nos torcedores. Eles reproduzem comportamentos persecutórios", explica o professor.

Flávio de Campos sugere mais educação também de dirigentes e jogadores, que em campo ou nas redes sociais costumam menosprezar ou atacar adversários, e um reposicionamento nacional e internacional em relação à violência.

"Nós temos uma questão para resolver relacionada à educação não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Com o desrespeito, a agressividade e o ódio ao outro se tornando corriqueiros, precisamos definir se vamos continuar humanos ou se vamos virar monstros, integrantes de uma sociedade violenta, estúpida, burra, que desqualifica profissionais e exalta sentimentos primitivos e brutais", finaliza o professor da USP.


Reportagem e edição: Marcos Rogério Lopes.
Arte: Matheus Mercadente Vigliar.