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Eduardo Marini, do R7

Taubaté, Vale do Paraíba paulista, tarde fria de um dos primeiros dias de agosto de 2019. Sentado na sala de casa, o jornalista e agente de turismo Ederson Flávio Ribeiro, 46 anos, faz uma projeção: “no próximo Dia dos Pais, talvez algum pai no Brasil se sinta tão feliz, realizado e orgulhoso de seus filhos como eu. Mais, impossível”. A pausa é curta antes da ênfase: “Impossível”.

Ederson vive num pequeno e bem cuidado apartamento no centro da cidade. Mas, no passado recente, manteve lares mais espaçosos para abrigar o principal produto de sua admirável capacidade de oferecer afeto.

Ele é solteiro e jamais viveu com alguém que pudesse ajudá-lo a carregar os tijolos pesados inevitáveis em toda rotina familiar. Mesmo assim, investe, desde 2009, todos os saldos de dinheiro, energia, resiliência e generosidade na construção do sonho maior de sua vida: o de ser pai. E foi logo de oito homens: Anderson, Eduardo, Jean, Rafael, Bruno, Rodrigo, Luis Fernando e Arivaldo, este último rebatizado de Dustin Kelvin. Conheça melhor a história deles no vídeo.

Todos oficialmente adotados com o Ribeiro do paizão na certidão. Sete deles nas raras e quase sempre rejeitadas adoções tardias, de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos e 11 meses. Jean, um dos dois que ainda vivem com o jornalista, tinha quatro anos quando entrou para o time. Eduardo, o outro remanescente, tornou-se pai da pequena Sofia Helena Nunes Ribeiro há três meses. Será, portanto, o primeiro Dia dos Pais do Super pai de Taubaté também como Super Avô.

Pai de coração

No clima de celebração familiar, mesas fartas e presentes que envolverá as famílias brasileiras no final de semana, o R7 Estúdio mergulha no universo recheado de sacrifícios e recompensas da adoção. Um sistema conduzido pela Justiça, poder público, institutos, organizações e voluntários civis para unir duas pontas firmes de forma segura.

De um lado, os pretendentes, candidatos a ter filho adotivo. Do outro, os sobreviventes, crianças e adolescentes que, por falta de outra opção, aprendem precocemente a conviver e tangenciar conflitos enquanto esperam, em abrigos ou famílias acolhedoras, a hora redentora de poder chamar papai ou mamãe de seu.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou, em 2008, o primeiro Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Os números são atualizados periodicamente. Neste momento, há 9.629 crianças entre zero e 17 anos e 11 meses à espera de adoção e 46.321 famílias e indivíduos brasileiros e 233 estrangeiros habilitados pela Justiça a adotar no País. Importante lembrar que criança para adoção não é menor infrator. Está à espera de algo que seus pais não deram em um ambiente familiar, e não de pena ou carreira no crime, como infelizmente ocorre em muitos casos.

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Na última terça-feira (8), o CNJ aprovou, por unanimidade, uma minuta de resolução sobre a implantação e o funcionamento do novo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). O projeto deverá ser lançado oficialmente nesta quinta-feira (15) em alguns estados, e consolidado em todo o País até o final de outubro.

Inspirado no sistema do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), o SNA vai unir os atuais cadastros de adoção (CNA) e de crianças acolhidas em abrigos ou famílias acolhedoras (CNCA). E consolidar informações vindas dos tribunais, aprimorar bancos de dados, cadastros e estruturas ligados ao tema.

Mas ainda que o novo sistema ajude a aumentar intensamente o número de crianças e candidatos em pouco tempo, algumas questões relacionadas ao tema soam como mistérios. Por que apenas pouco mais de nove mil crianças e adolescentes e 46 mil pretendentes cadastrados num País com mais de 210 milhões de habitantes, se quase todo mundo conhece casos de famílias, pais ou mães com filhos que não são deles?

Outra: se o número de pretendentes é quase cinco vezes maior do que o de crianças e adolescentes cadastrados, por que todos eles não estão adotados? E por que o processo judicial de adoção demora tanto?

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Arte R7

A resposta da primeira questão passa pelo esclarecimento de uma confusão feita por quase todos os que não acompanham o tema de perto: adotados são exclusivamente os unidos a um pai, mãe ou casal pretendente a partir de decisão e sentença judiciais, com registro da paternidade e do sobrenome na nova certidão de nascimento do adotado.

“Muitos conhecem crianças e adolescentes abrigados por parentes ou famílias amigas sem decisão judicial e registro. Mesmo tratados com afeto, respeito e estrutura, eles, para além do que exista de positivo nessas relações, não são considerados adotados pela Justiça. Fazem parte do que se costuma chamar de ‘pegar para criar’, o que é bem diferente de adotar. Esse tipo de abrigo não está envolvido no cadastro”, esclarece o desembargador Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, do Tribunal de Justiça de São Paulo, um dos maiores especialistas brasileiros no tema.

Pais famosos que adotaram

Carvalho destaca que, com o registro da adoção judicial na certidão, a criança passa a ter os mesmos direitos de um filho biológico, da responsabilidade civil e material dos pais às cotas de herança. Se o adotado tiver, por exemplo, um irmão que é filho biológico do casal adotante, terá metade dos bens deixados a ele pela morte dos pais.

“Algumas famílias até garantem essas questões, ou parte delas, aos criados sem sentença judicial. Mas é preciso deixar claro que os direitos não estão garantidos nesses casos. O ideal, sempre, é buscar o processo legal”, aconselha o desembargador.

E as mais de 9,6 mil crianças ainda abrigadas apesar da quantidade quase cinco vezes maior de pretendentes no cadastro nacional? “Isso ocorre porque a grande maioria dos pretendentes busca um filho adotivo raramente existente para adoção: branco, muito novo, de preferência bebê de até um ano de idade, com alguma concessão para dois, sem irmãos e absolutamente saudável, livre de qualquer doença ou problema psicológico”, explica a juíza Mônica Gonzaga Arnoni, da Vara Central de Infância e Juventude de São Paulo.

O desejo pelo filho que não existe

Um perfil difícil de encontrar. “As limitações existem até porque praticamente todas as crianças com essas características estão aos cuidados de seus pais biológicos, que compõem historicamente as faixas mais favorecidas. Enquanto isso, perduram nos abrigos aqueles entre seis e 17 anos e 11 meses, uma boa parte de crianças negras e pardas, as que precisam de algum cuidado e os grupos de irmãos”, acrescenta a juíza.

O processo é demorado porque requer avaliações multidisciplinares rigorosas para garantir segurança e integridade para a criança. Afinal de contas, a decisão judicial colocará o adotado numa rotina que ocupará grande parte de sua vida, no período de formação, e não apenas uma tarde ou final de semana. Um erro pode significar um desastre.

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Arte R7

Diante de tantas batalhas a vencer, merecem valorização especial as trajetórias de Ederson e do fonoaudiólogo e maquiador Porfírio dos Passos, 41 anos. Nascido em Cruzeiro, cidade paulista próxima à divisa com o Estado do Rio, no eixo da Via Dutra, Ederson mudou-se para Taubaté deixando para trás a namorada que foi “a grande e única paixão” de sua vida.

“Queríamos nos casar, mas um fato me abalou. Fiquei doente e um médico de lá diagnosticou câncer. Deixei minha cidade e meu amor sem dizer a ela o motivo. Não achava justo virar companheiro dela e morrer logo depois”, conta.

A saúde, diz ele, foi recuperada com tratamentos em Taubaté. Livre do pesadelo, Ederson passou a conviver com um sonho recorrente, mas dessa vez tomado de carga positiva. “Sonhava frequentemente com um garoto chorando”, conta. Tempos depois, o jornalista, disposto a retomar o “projeto pai”, visitou um abrigo local, a Casa Transitória, para conhecer um adolescente indicado por uma amiga.

O primeiro de oito filhos

Era Anderson, que viria a ser o primeiro dos oito. Em um dia de visita, com o processo de adoção em andamento, Ederson foi surpreendido por um menino que parou à sua frente. “Posso ter tomado tudo como sugestão, mas, naquele momento, estava certo de que era o menino do sonho”. Naquele mesmo dia, o moleque levou uma bronca pesada por forçar a porta e tentar invadir, pela janela, o local onde o gestor do abrigo conversava com Anderson e Ederson.

O jornalista voltou com olhar e as tentativas do menino na cabeça. Dias depois, antes mesmo de levar Anderson para casa, entrou com processo para adotar também o moleque da bagunça na janela. Era Eduardo, hoje o pai da netinha Sofia. No embalo, trouxe Jean e, em seguida, os outros cinco.

No auge do grupo reunido, Ederson moeu-se aos poucos em três empregos para sustentar a garotada. Chegava em casa à meia-noite e acordava às cinco da manhã para lavar roupa da tropa e sair uma hora depois. Os mais velhos tratavam de passar e de cuidar dos menores durante o dia.

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Porfírio não colocou uma galera dentro de casa como fez Ederson, mas nem por isso seu mérito é menor. Apaixonado por tudo relacionado à infância, ele trabalhou voluntariamente como fonoaudiólogo em equipes dedicadas a crianças especiais. Em fevereiro de 2013, saiu do apartamento que dividia com um amigo, passou a viver sozinho e concluiu que era a hora de começar o longo percurso até a realização de seu maior desejo: adotar um filho.

Entrou com o processo no mesmo mês da mudança. A partir daí, teve os históricos jurídicos, financeiros, psicológicos, sociais e comportamentais esquadrinhados por todos os lados pelas equipes multidisciplinares de ONGs e profissionais que costumam auxiliar a Justiça nesses mapeamentos.

Porfírio e a pequena "coisa toda linda" Larissa (Arquivo pessoal)

Porfírio e a pequena "coisa toda linda" Larissa

Arquivo pessoal

Ficou muito impressionado com a variedade e profundidade das exigências – e ainda mais orgulhoso por ter saído “ileso” de todas elas e conseguido a aprovação do juiz para se tornar pretendente no cadastro nacional. Na parte do perfil desejado, não fez qualquer restrição sobre etnia ou outra questão específica. “No início, a própria espera pela aprovação da entrada no cadastro pelo juiz acalma um pouco. Afinal de contas, sem ela não há o que fazer. O período de ansiedade vai dessa autorização até o momento em que te dizem: ‘há uma criança com o seu perfil’”.

Minha vez na fila

Em agosto de 2018, cinco anos e meio depois do início do processo, o antídoto para a ansiedade do maquiador enfim chegou. Por telefone, um agente deu conta da liberação de uma “coisa toda linda” de apenas seis meses de vida e informou que, finalmente, chegara a vez dele na fila do cadastro.

Porfírio sentiu as pernas bambearem, retomou o equilíbrio e partiu em disparada para o abrigo. “Foram oito dias seguidos pegando no colo, dando mamadeira, limpando, trocando fraldas e roupas e, acima de tudo, sendo fortemente avaliado em todos os contatos e procedimentos”. Ele tirou tudo de letra e passou com elogios. A “coisa toda linda” do telefonema saiu do abrigo como Larissa dos Passos. Está agora com 18 meses – e um ano de papai novinho em folha.

Família acolhedora: outra dimensão de amor (Edu Garcia)

Família acolhedora: outra dimensão de amor

Edu Garcia

Para manter a integridade física, emocional e psicológica das crianças e adolescentes sob sua guarda, as varas da infância e abrigos fazem parcerias com voluntários e organizações. No Apadrinhamento de Serviços, um grupo ou empresa patrocina a compra de equipamento ou a reforma de espaços. No Financeiro, uma pessoa assume parte ou o total das despesas de uma criança. E no Afetivo, a relação evolui para visitas periódicas e passeios com o abrigado antes da adoção.

Mas em nenhum deles há a beleza, a intensidade e os desafios presentes nas Famílias Acolhedoras, um projeto que requer corações cheios de carinho e, ao mesmo tempo, mentes controladas pela frieza da razão para cumprir a tarefa com êxito.

O amor pelo amor

Na vara da infância da juíza Mônica Arnoni, esses projetos são tocados com estrutura e treinamento fornecidos pela ONG paulistana Instituto Fazendo História (IFH). No caso das acolhedoras, a família é preparada para receber e abrigar em casa um bebê de zero a três anos, na maior parte dos casos carente de algum cuidado especial, por até um ano e meio, como se a belezura fosse sua.

Alimentar, rolar no tapete com o cachorro ou o gato, limpar e passar creminho no bumbum todo dia, passear de manhã na praça, sofrer nas madrugadas junto com as febres, dores de barriga e choradeiras do pequeno e, tempos depois, devolvê-lo para adoção ou, se a Justiça indicar, aos cuidados dos pais biológicos.

Fabiana, o marido Hilsenrath e os filhos são uma Família Acolhedora (Edu Garcia)

Fabiana, o marido Hilsenrath e os filhos são uma Família Acolhedora

Edu Garcia

Haja sangue frio. “Não sabemos se virá um menino ou menina; branco, negro, pardo ou indígena; com meses, um ou dois, anos... Só sabemos de uma coisa: ele vai embora ali na frente”, resume com surpreendente tranquilidade a engenheira química Fabiana Cury, casada com o engenheiro civil Marcos Vianna Hilsenrath e mãe biológica de dois meninos, com 12 e 14 anos.

Fabiana, Hilsenrath e filhos receberam o pequeno Valentim* (nome trocado) há nove meses, com três semanas de vida. É o segundo acolhido temporariamente pela família. Em outubro de 2017, Christian* (nome trocado) chegou com um mês e saiu com sete meses da residência do casal.

Algumas atitudes são proibidas durante o acolhimento familiar. Furar orelha, batizar em qualquer religião, fazer tatuagens e marcas corporais e levar para fora do Brasil estão entre elas. “Qualquer ação capaz de marcar e gerar efeitos de longo prazo ou até pela vida inteira na criança é vetada”, explica Hilsenrath. “E a proibição é corretíssima: não se pode deixar marcas físicas, religiosas ou culturais em crianças que logo serão adotadas por pessoas que poderão ter direcionamentos e crenças completamente diferentes”, completa.

Famosos que foram adotados

Christian, o primeiro, deixou a casa de Fabiana e Hilsenrath adotado por outra família. Os novos papais do bebê fizeram questão de conhecer e se relacionar com o casal, mas nem sempre é assim. E a Justiça garante o distanciamento se essa for a opção dos adotantes. “Muitos ficam inseguros, com medo de o apego do bebê ao casal anterior ser maior. É natural”, comenta Fabiana.

Os dois pequenos passaram o Natal com a família. Hilserath terá seus dois adolescentes e Valentim neste Dia dos Pais. Nada balança? “Não. É lógico que há carinho, iremos envolvê-lo nos momentos de brincadeiras e nos presentes, como toda família, mas fomos muito bem preparados, em todos os aspectos, para entender e desempenhar nosso papel temporário” diz ele.

“Cuidamos da nossa cabeça e também da dele, para não complicar na hora da entrega. Para nós, é como se um parente ou família amiga viajasse para o exterior por um tempo razoável e deixasse um filho aos nossos cuidados nesse período. Ficaríamos com prazer, mas também com a clareza em relação ao fato de que teríamos o dever da devolução”.

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Nem todos os casais acolhedores conseguem tratar a coisa com tamanho equilíbrio. Pelo menos duas famílias aceitas no projeto deram trabalho para o competente time do IFH. Uma delas tentou fugir com a criança acolhida para criá-la fora do País. Descoberto, o casal entrou com uma ação judicial para ficar com o menor, mas perdeu a causa.

A outra sofreu tanto na hora de devolver o pequeno à adoção que pediu o descredenciamento do programa assim que o bebê foi levado. Por essas e outras, o IFH tem sido cada vez mais rigoroso na avaliação dos interessados em acolher. Nos últimos processos seletivos, sobraram entre quatro e cinco famílias a cada grupo de 25 a 30 testados.

Recentemente, o IFH lançou um livro Famílias Acolhedoras – Acolhendo a Primeira Infância, com histórias e resultados do projeto. Em uma das páginas há uma citação do genial Guimarães Rosa de Sagarana e A Terceira Margem do Rio: “uma criança nasceu – o mundo tornou a começar”. Adotar é, antes de tudo, um pacto de troca de afeto entre adotante e adotado para que o mundo torne a começar quando os dois decidirem. Pode entrar que a casa é sua, meu filho. Feliz Dia dos Pais, papais.

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Reportagem: Eduardo Marini
Direção e Edição: Tatiana Chiari
Fotos: Edu Garcia/R7
Arte: Sabrina Cessarovice e Matheus Vigliar
Produção: Julia De Caroli Vizioli
Imagens:  José Ignácio
Edição:  Edimar Sabatine  
Videografismo:  Marisa Kinoshita