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Karla Dunder, do R7

Garotas superam desafios diariamente. As que você vai conhecer nessa reportagem especial fazem isso em áreas historicamente ocupadas por garotos. Elas vão para os laboratórios e ganham prêmios. Lançam foguetes. Colecionam medalhas no Brasil e no exterior e a cada dia derrubam as barreiras que separam as mulheres das áreas de exatas e da tecnologia. 

As meninas das exatas desafiam as estatísticas. Em todo o mundo há poucas mulheres atuando nas áreas de ciências, matemática, engenharia e tecnologia. De acordo com informações da ONU (Organização das Nações Unidas), as mulheres representam 35% dos alunos matriculados nesses cursos nas universidades e o percentual é ainda menor nas engenharias (de produção, civil e industrial) e em tecnologia, não chegando a 28% do total.

A Fundação Carlos Chagas resolveu estudar essa realidade. A pesquisa Elas nas Ciências: Um Estudo para a Equidade de Gênero no Ensino Médio surgiu com a proposta de entender e ampliar o acesso de meninas nas áreas de ciências e tecnologia. A parceria entre a ONG Fundo Elas, o Instituto Unibanco e a ONU Mulheres aponta, entre outros aspectos, que os estereótipos de gênero ainda estão presentes entre os jovens e influenciam as escolhas de carreira profissional.

De acordo com a pesquisa, 45,7% dos entrevistados concordam com a afirmação: “Há certos trabalhos que devem ser realizados somente pelos homens”, enquanto 36,9% discordam. E 60,8% concordam com a frase “As mulheres precisam prestar atenção ao tipo de roupa que usam para ir a determinados lugares” e apenas 19% discordam.

Felizmente instituições e universidades dão passos para mudar esse quadro. A exemplo do projeto Meninas SuperCientistas, que abre as portas dos laboratórios da Unicamp para as estudantes do ensino fundamental.

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Arte/R7

A falta de referências femininas é um ponto observado pelos pesquisadores para distanciar as garotas do universo dos números e tubos de ensaio. Na história, a primeira mulher a se destacar nas ciências e a receber o Prêmio Nobel nas áreas de Física (1903) e Química (1911) e também a receber a dupla premiação foi Marie Curie (1867 – 1934). Só outras três mulheres conquistaram a façanha na área de física e outras cinco na área de química ao longo de 120 anos de premiação.

Em 2019, pela primeira vez o Prêmio Abel, considerado o "Nobel" da Matemática, teve uma vencedora: Karen Keskulla Uhlenbeck. A americana de 76 anos recebeu a premiação das mãos do Rei Harald V da Noruega pelas "conquistas pioneiras sobre equações diferenciais parciais geométricas". Ou seja, pelas pesquisas de destaque na área de geometria.  

Karen Keskulla Uhlenbeck primeira mulher a levar o prêmio Abel (Institute for Advanced Study/Divulgação)

Karen Keskulla Uhlenbeck primeira mulher a levar o prêmio Abel

Institute for Advanced Study/Divulgação

Professora da Universidade do Texas em Austin (EUA), Karen é uma das fundadoras da análise geométrica moderna e conduziu alguns dos avanços "mais espetaculares" nesse campo nos últimos 40 anos, revolucionando a forma de entender esse estudo.

Vem também da Universidade do Texas, mas com gostinho de Brasil, outra boa notícia para a ciência feita por mulheres. A paulista Livia Schiavinato Eberlin tem se destacado no cenário científico internacional depois que desenvolveu uma espécie de caneta capaz de detectar o câncer em células durante cirurgias oncológicas.

Livia Eberlin utiliza sua caneta MacSpec Pen desenvolvida por ela (Fundação MacArthur/Divulgação)

Livia Eberlin utiliza sua caneta MacSpec Pen desenvolvida por ela

Fundação MacArthur/Divulgação

Filha de químico, Livia só descobriu sua paixão quando uma professora do ensino médio despertou seu gosto pelas pesquisas em laboratório. “A professora Miriam me ensinou a gostar de química e a pesquisar”, conta. A campinense ingressou no curso de Química na Unicamp (Universidade de Campinas), “por ter mais opções para escolher a área de atuação no futuro."

Livia e a "bolsa dos gênios"

Logo nos primeiros semestres da graduação, Livia conseguiu uma bolsa de iniciação científica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para pesquisar massas, a sementinha do que seria aprimorado no futuro. “Sempre fui muito curiosa e consegui fazer um estágio no exterior, nos Estados Unidos, também em pesquisa. ”

A área de medicina surgiu durante os estudos para o doutorado. “Pensei em como adaptar a tecnologia que eu já usava com as massas no cenário clínico. Passei a desenvolver toda a minha pesquisa focada na área clínica, utilizando análise de amostras para detectar células com câncer”.

Para isso, Livia desenvolveu uma espécie de caneta batizada de MasSpec Pen que ao tocar no tecido retira uma pequena amostra, uma molécula, durante uma cirurgia oncológica. A caneta é importante porque nem sempre é possível saber o limite entre o tumor e o tecido saudável. “Muitas vezes o tecido é retirado e analisado por um patologista ainda durante a cirurgia para confirmar se todo o tumor está sendo retirado, mas esse processo leva de 30 a 40 minutos e, enquanto isso, o paciente fica lá, exposto à anestesia e a outros riscos cirúrgicos”, explica Livia.

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Arte/R7

Com a caneta, basta colocar o tecido em contato com água e ela faz a análise em tempo real. Além dos equipamentos de análise clínica, também são utilizadas técnicas de inteligência artificial para que a máquina “responda” se as células são tumorais.

O dispositivo ainda está em fase de estudos e precisa passar por uma série de pesquisas para chegar à fase comercial.

Além da pesquisa, que pode auxiliar no tratamento do câncer, até porque a remoção total da doença é fundamental para a cura, Livia chamou a atenção da comunidade científica internacional ao receber a bolsa da Fundação MacArthur em 2018, conhecida como a “bolsa dos gênios” e destinada aos profissionais que se destacam por uma atuação criativa em sua área. “Quando o telefone tocou e soube da premiação, eu quase caí dura”, lembra. “Eu me senti muito honrada”.

E como para boa parte das mulheres que optam pela área de exatas, algumas pedras surgiram no caminho. “Eu enfrentei um certo preconceito por ser mulher de origem latina em um doutorado de uma universidade americana, era como se eu não estivesse no mesmo nível deles”, diz. “Praticamente todos os meus mentores e orientadores eram homens, tive poucas referências femininas, eu era a única mulher em muitos projetos de pesquisa e hoje procuro inspirar as meninas, dar conselhos e mostrar que temos capacidade, talento e podemos, sim, conquistar posições de liderança”.

Juliana pode mudar o mundo
Juliana Estradioto ao receber a premiação nos Estados Unidos (Arquivo Pessoal)

Juliana Estradioto ao receber a premiação nos Estados Unidos

Arquivo Pessoal

Juliana Estradioto, 18 anos, nasceu em Osório, uma pequena cidade no litoral do Rio Grande do Sul. Sempre estudou em escolas públicas e sem saber qual curso seguir optou pelo técnico em administração de empresas no ensino médio. “Comecei a estudar no Instituto Federal pensando que seria uma CEO, mas descobri que não gostava daquilo”. Sem deixar as aulas de lado, Juliana resolveu participar de um programa de pesquisa e extensão.

“A pesquisa surgiu em um projeto voltado para a comunidade rural, com agricultura familiar, nesse período tive a oportunidade de conhecer agroindústrias para entender como funciona todo o processo”, conta. O resultado foi uma inquietação profunda com a quantidade de lixo produzido e que fim dar a ele.

No dilema entre estudar para o vestibular e mergulhar na pesquisa, Juliana optou pelo laboratório. “Minha orientadora teve um papel muito importante na minha formação, sou grata a ela pelo incentivo e pela motivação para seguir e pesquisar, mesmo sem um laboratório adequado. ”

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Arte/R7

E foi pesquisando sobre couro ecológico que Juliana se deparou com as biomembranas. “Sou vegetariana e queria comprar uma jaqueta que não tivesse como matéria-prima um animal, nem petróleo e me deparei com esses microrganismos que produzem fios, um material multifuncional que tem sido usado como alternativa ao plástico."

Por que não pesquisar esses organismos para dar um fim ao lixo? Juliana passou a usar a casca de noz macadâmia, que eram jogadas fora, para alimentar microrganismos responsáveis por produzir membranas que podem ser utilizadas em várias situações, como para fabricar embalagens biodegradáveis. Ela também está investigando como aplicar essa pesquisa na área de saúde, utilizando a membrana como curativo após a realização de cirurgias.

“Eu fui bolsista estudando administração, o laboratório do colégio não era o ideal, então, minha professora conseguiu uma parceria com a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Essa experiência foi muito ‘doida’ e o laboratório é o meu lugar preferido, mas só descobri isso depois que tive acesso a um."

Sua pesquisa foi apresentada na Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia), promovida pela USP (Universidade de São Paulo), no último mês de março e selecionada para ser apresentada na Intel ISEF, uma das maiores feiras internacionais de ciências e engenharia realizada nos Estados Unidos para estudantes do ensino médio. Juliana levou o 1º lugar, um prêmio de US$ 3 mil e poderá batizar um asteroide com seu sobrenome.

“Na hora que ouvi o meu nome congelei”, lembra. “Isso me motiva ainda mais a divulgar a ciência, a pesquisa, a estimular em outras meninas o pensamento crítico e que podemos sim mudar o mundo."

Luisa e os satélites
Luisa Soares se destacou em olimpíadas nacionais e competições nos EUA (Pablo Nascimento/R7)

Luisa Soares se destacou em olimpíadas nacionais e competições nos EUA

Pablo Nascimento/R7

Luisa Soares sempre gostou de matemática e coleciona medalhas desde o 6º ano do ensino fundamental, quando começou a participar de competições e olimpíadas pelo Brasil. A mais recente é uma de prata na OBA (Olimpíada Brasileira de Astronomia).

A jovem de 18 anos sempre estudou em escola pública, no ensino médio optou pelo curso técnico de química, mas foi com a equipe de robótica que descobriu sua vocação. “Quando pude montar robôs pensei: ‘que coisa mais legal! É isso que eu quero fazer”. Luisa então refez o Vestibulinho e ingressou no curso de mecatrônica. No fim de 2018, na competição Robo Games, na Califórnia, nos Estados Unidos, sua equipe conquistou o terceiro lugar.

Atualmente, a jovem decidiu variar um pouco e trabalha na montagem de satélites. “Sempre gostei de astronomia, decidi aprender mais sobre a estrutura de satélites, em maio participamos da Global Space Balloon Challenge e conseguimos uma menção honrosa”.

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Mesmo com todo o apoio da família, Luisa supera desafios diariamente. “Nós meninas sofremos muito com o preconceito, muitas vezes não sou ouvida dentro da minha própria equipe”, desabafa. “Uma vez terminamos um projeto e ficou a ideia de que só um menino participou."

Na sala de aula faltam referências e apoio. “No curso de mecatrônica, tenho apenas duas professoras e, dos 30 colegas, apenas quatro são garotas”, conta. “Acho que não temos muitas referências, mas sei onde quero chegar e também sei que nós mulheres, juntas, conseguimos superar barreiras e vencer preconceitos."

O que dizem os especialistas
Para especialistas, poucas matrículas femininas em cursos de exatas é um fenômeno mundial (Pixabay)

Para especialistas, poucas matrículas femininas em cursos de exatas é um fenômeno mundial

Pixabay

Por que as meninas, mesmo sendo maioria das matriculadas nas universidades brasileiras, continuam distantes das áreas de exatas e tecnologia? Para especialistas, esse é um fenômeno mundial.

“Percebemos que em todo o mundo as mulheres têm um peso menor na área da engenharia”, avalia Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco.

Para Amélia Artes, pesquisadora da fundação Carlos Chagas “as mulheres estão concentradas em cursos de menor prestígio, mais focadas na área de saúde e educação, menos nas áreas duras de exatas e engenharia”.

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Arte/R7

E o que leva as meninas a desistirem das exatas? “No processo formal de escolarização das meninas, percebemos que ao longo dos ciclos elas se desinteressam pela matemática, o que mostra que a rotina em sala de aula deve ser investigada”, diz Henriques.

“As escolas devem incentivar as meninas da mesma forma que fazem com os meninos, é preciso haver um trabalho de sensibilização dos professores e também das famílias”, avalia Amélia. “Muitas vezes as práticas não são conscientes, mas é preciso que haja estímulo desde a educação infantil, nas brincadeiras, por exemplo."

Quebrar estereótipos na escola é um passo importante para o equilíbrio entre meninas e meninos nas áreas de exatas. “A sala de aula deve ser um espaço de estímulo às meninas, é importante que haja a valorização e também um ambiente mais acolhedor”, observa Henriques. “Quando temos uma sociedade menos desigual e com maior diversidade, aumentamos a potência de inovação, todos interagem mais e por tabela aprendem mais”.

Meninas são incentivadas a participar das aulas e atuar nos laboratórios (Divulgação)

Meninas são incentivadas a participar das aulas e atuar nos laboratórios

Divulgação

De acordo com um estudo da Ypulse, quando as garotas chegam na fase da adolescência, seus níveis de autoconfiança e autoestima sofrem uma queda de 30%, o que contribui, além dos fatores culturais, para perderem a vontade de expor seus desejos, de opinar e se posicionar.

Para Deborah de Mari, fundadora do projeto Força Meninas, “as meninas perdem a voz por diversos motivos, principalmente por fatores culturais e pela enorme pressão da sociedade para aderirem a um papel feminino. É uma tendência alarmante e esse comportamento tem efeitos negativos até a fase adulta”.

Deborah criou o "Minha Voz Tem Força", eventos que estimulam as meninas a exporem suas ideias e inspiram as meninas com histórias de vida.

Incentivo às meninas
Meninas do ensino fundamental visitam laboratórios da Unicamp (Divulgação)

Meninas do ensino fundamental visitam laboratórios da Unicamp

Divulgação

A partir de uma iniciativa do Museu Nacional e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o programa Meninas com Ciência abre as portas da universidade e dos laboratórios para aproximar as garotas da área de pesquisa.

Como muitas nunca tiveram oportunidade de entrar em um laboratório, as meninas do ensino fundamental são convidadas a mergulhar nesse universo. Além de atividades lúdicas, elas assistem palestras com professoras e pesquisadoras, mulheres que se tornam referência.

A ideia pegou e grandes universidades de todo o Brasil replicaram a iniciativa. No mês de junho, a Unicamp abriu suas portas para o evento Meninas SuperCientistas. Neste mês de julho, a USP (Universidade de São Paulo) oferece o Mergulho na Ciência, no Instituto de Oceanografia. Ao longo do ano, a Fatec (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo) promove o Fatec Girls que estimula as meninas a conhecerem mais as áreas de tecnologia.

Ações que buscam aproximar as meninas das ciências e acabar de vez com os preconceitos. Porque lugar de menina é onde ela quiser.

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Arte/R7