Ver o conteúdo do artigo
Daniel Vaughan, do R7

“Eu gostaria de ver cada vez mais jovens cantando música caipira. Porque, se não houver isso, a tradição pode desaparecer. Hoje, somos sobreviventes da nossa geração.” xx222

Sebastião Franco tem 86 anos. Veste camisa vermelha, calça branca e sapatos imitando couro de cobra. Está à vontade como na roça, saboreando um ovo cozido. A calçada branca de sua casa, em Piracicaba (SP), tem duas violas moldadas em pedras marrons.

É um sobrevivente: está na estrada há 40 anos com o vizinho João Francisco, 79. Eles são Craveiro e Cravinho, a última das duplas caipiras que inspiraram a região cercada pelos rios Tietê e Piracicaba, região de “pés vermelhos” onde floresceu a moderna música caipira brasileira, aquela que antecedeu os atuais heróis pops do sertanejo nacional.

Em dezembro, o Brasil perdeu dois desses ícones, Pedro Bento, que formava dupla com Zé da Estrada, e o moderno Marciano, da parceria com João Mineiro e, depois, com Milionário. Essa música de matuto, esculpida em rodas de violão no interior do país, estaria morrendo com seus ídolos?

Os tempos mudaram, mas isso não quer dizer que algo é obsoleto só porque foi feito no passado. É preciso cuidar das raízes para que elas não morram.

Disfarçando as evidências

Há diferença entre o som sertanejo e a música caipira? O professor e músico Ivan Vilela, autor do livro “Contando a Própria História - Música Caipira e Enraizamento”, afirma que o termo sertanejo foi utilizado desde os anos 50 para se referir à música que não era produzida no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.

“A música caipira passou a se autodenominar também como sertaneja a partir dessa década e elas conviveram no mesmo segmento musical. Por exemplo, Tonico e Tinoco se autointitulavam caipiras e Tião Carreiro e Pardinho, sertanejos”, afirma.

https://img.r7.com/images/pes-vermelhos-05042019170423805

Arte/R7

Segundo o autor, a moda de viola, embora seja tratada como um genérico de música caipira, é, na realidade, uma das muitas modalidades presentes no estilo. Como o cururu, o cateretê, a guarânia, o pagode caipira, o samba rural, a folia, entre outros. “Já a moda é uma narrativa onde o texto tem tanta importância que, quando se canta, não se toca e entre uma estrofe e outra. Faz-se um recortado nas cordas da viola.”

Parte do que seria nossa música caipira veio trazida na bagagem durante o descobrimento do Brasil. O jornalista José Hamilton Ribeiro afirma, no livro “Música Caipira – As 270 Maiores Modas de Todos os Tempos”, que, com músicos na caravana de Cabral e como a viola era moda, é bem provável que havia uma entre eles. Já a gaita (sanfona) ganhou até referência na carta de Pero Vaz de Caminha. E o termo "sertanejo" foi inicialmente criado pelos portugueses no período das navegações para definir o interior da nova terra.

Uma casinha branca lá no pé da serra

O R7 chega à casa de Craveiro, em Piracicaba, numa quinta-feira à tarde. Entra e se acomoda na sala. Apesar de a decoração do lugar dispensar luxos, os retratos da família e troféus da dupla estão exibidos pelos cômodos, que o compositor mostra com orgulho. Duas violas esperam seus chefes no canto.

Cravinho, que mora ao lado, chega em seguida. Tímido, ele se senta no sofá e deixa o irmão mais velho contar as histórias e aventuras de carreira. De lá, Craveiro leva a reportagem para os fundos da casa, onde os artistas ensaiam e gravam novas composições. O mais recente trabalho foi feito ali (“Craveiro e Cravinho Canta Tonico e Tinoco”, de 2018).

Os irmãos Craveiro e Cravinho nasceram em Pederneiras, no interior de São Paulo, região de terras vermelhas que cercam o rio Tietê. Filhos do violeiro Josué Franco, Craveiro, pai da dupla sertaneja Cezar e Paulinho, destaca que a música sempre fez parte da vida da família.

“Acompanhávamos nosso pai, que cantava pelas fazendas e [exaltava as] catiras [dança do folclore brasileiro], nos arredores do nosso sítio em Itatingui, distrito de Pederneiras. E, naquele tempo, a gente sempre ouvia em casa artistas como Tonico e Tinoco e Zé Carreiro.”

https://img.r7.com/images/pes-vermelhos-05042019170528768

Arte/R7

Os troféus exibidos na casa são herança da dupla que surgiu na primeira grande onda de música caipira que invadiu os rádios. Entre as décadas de 40 e 50, surgiram duplas em toda a parte como Raul Torres e Serrinha (depois Florêncio), Zé Carreiro e Carreirinho, Sulino e Marrueiro, Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco e o próprio Craveiro e Cravinho.

"Não tem como falar do estilo sem lembrar de Craveiro e Cravinho"

Chitãozinho

Craveiro e Cravinho lembram bem da década de ouro. Em 1957, eles se mudaram para Piracicaba, onde passaram a se apresentar com grande sucesso na Rádio Difusora. E a dupla, ainda chamada de Irmãos Franco, registrou as primeiras canções.

“Gravamos duas músicas próprias, sem teste nem contrato, a convite do saudoso Teddy Vieira [um dos autores de O Menino da Porteira]. Entramos no estúdio e tocamos, sendo que nem sabíamos o que estava acontecendo. Ele só mandou cantar duas modas e fizemos Ponta de Faca e Mata Deserta. Depois de um mês, o disco foi um sucesso!”

https://img.r7.com/images/pes-vermelhos-05042019170846875

Reprodução

Com o passar dos anos, os cantores assumiram a alcunha de Craveiro e Cravinho e foram contratados pela gravadora Chantecler (que viria a se transformar na gravadora Continental). Tão importantes para a cultura caipira/sertanejas que são cultuados por ícones como Chitãozinho, da dupla com Xororó.

“Eles são muito importantes para a cultura sertaneja. E nós crescemos ouvindo suas músicas e tivemos o grande prazer de conviver com eles. Não tem como falar do estilo sem lembrar de Craveiro e Cravinho”, afirma Chitãozinho.

Longa estrada da vida

Cornélio Pires foi um dos grandes desbravadores da música caipira. Em 1928, o jornalista, humorista e agitador cultural conseguiu que a indústria fonográfica brasileira gravasse o gênero. Ele organizou, em Piracicaba, uma espécie de coletivo chamado Turma Caipira Cornélio Pires, onde lançou diversos trabalhos. Empresário artístico, Cornélio ainda bancou do próprio bolso gravações que eram feitas em outros Estados.

Foi em 1929 que a dupla Mariano e Caçula gravou a primeira moda de viola do país, Jorginho do Sertão. A primeira música caipira gravada foi uma moda de viola.

Filho de Mariano, o músico Caçulinha, que por anos fez parte da orquestra de Fausto Silva, afirma que trabalhava duro com o pai para divulgar a música na época.

“Tive uma infância tão bonita quanto musical. Recém-saído da quarta série, fui acompanhar o circo do meu pai, fazendo dupla com ele.  Chegávamos cedinho na rádio Bandeirantes para nos apresentarmos em programas locais.”

Uma nova fase na história da música caipira foi desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial (1945), com a incorporação de letras mais românticas, além de outros ritmos e instrumentos como o acordeão e harpa. Com o tempo, o gênero se tornou fenômeno de vendas. Um dos destaques da época foi a canção “Índia”, de Cascatinha e Inhana.

“Na década de 50, Inezita Barroso dirigiu um jipe Brasil adentro, atrás da memória caipira. Inezita descobriu canções que não teriam sobrevivido sem essa pesquisa feita na raça, com recursos, muitas vezes, do próprio bolso”, afirma Helio Goldsztejn, diretor do recém-lançado filme Inezita (2019).

Na mesma época, para rodar em circos pelo Brasil, Craveiro e Craveiro mantinham carro próprio ou pegavam ônibus comum de viagem. “Viajávamos com a mala, viola e a coragem. Foi a maior escola da nossa vida artística. Era, ao mesmo tempo, um sofrimento e divertimento.”

Nos anos 1960, houve a transição que acrescentou a Jovem Guarda aos ritmos do interior. A dupla Léo Canhoto e Robertinho adicionou histórias de faroeste e guitarras à música. Milionário e José Rico trouxeram elementos mexicanos como floreios de violino e trompete.

"Na década de 50, Inezita Barroso dirigiu um jipe Brasil adentro, atrás da memória caipira"

Helio Goldsztejn

Do outro lado, surgiu um galã da Jovem Guarda que deixou o rock em busca do repertório sertanejo: Sérgio Reis. “Eu já gostava de Tonico e Tinoco quando tinha 10 anos. Ouvia eles na rádio Bandeirantes, no programa Na Beira da Tuia. Sempre vivi no ambiente sertanejo, apesar de não ter ninguém da minha família no interior. Foi uma entrada natural no estilo.”

Obrigado, boiadeiro

Nos anos 70, apesar da pressão popular, ainda havia certa resistência da grande mídia aos violões e chapéus de caubói. Sérgio Reis confessa que usou sua influência para romper a discriminação vigente. “Fui pioneiro em vários momentos da música sertaneja. Com a minha interpretação de Menino da Porteira, foi a primeira vez que o gênero tocou na FM. Na época, o diretor da rádio Botucatu (interior de SP) me ligou para dizer que teve que trocar a programação da manhã para caipira, devido ao sucesso gigantesco do meu hit.”

Xororó confirma: “Ele levou a música sertaneja para outro universo, com cordas, um ritmo mais orquestrado”. Um mercado que o sertanejo explorou com o irmão nos anos 80, a partir de “Fio de Cabelo”, um hino dessa virada. Com influências da cidade grande e jeitão norte-americano, os artistas viraram o jogo sobre o que era definido como brega ou chique.

Sérgio Reis foi um dos pioneiros da música sertaneja (Arte/R7)

Sérgio Reis foi um dos pioneiros da música sertaneja

Arte/R7

Para o cantor Matogrosso, o gênero chegou a um patamar tão alto que extrapolou o nível cultural. “Nossa música tem importância grande até no agronegócio. E quando somos taxados de caipira, eu acho bom, pois somos homens do campo. Assim é o povo brasileiro.”

Com o sucesso além da roça, foi natural que grande parte da música sertaneja deixasse de ser exclusivamente feita pelo homem do campo. Mesmo assim, em meio à "atualização", duplas como Pena Branca e Xavantinho e os cantores Almir Sater e Renato Teixeira seguiram a antiga tradição. “Acredito que, no geral, acabou o preconceito com a música caipira. O estilo cresceu demais, então tem uma molecada nova que é nosso fã e curte os shows. Esse amor passou por gerações”, afirma Matogrosso, da dupla com Mathias.

Sérgio Reis levou a música sertaneja para outro universo, com cordas, um ritmo mais orquestrado

Xororó

Ricardo Vignini começou a gostar de música através do rock e, com o tempo, descobriu seu lado caipira. Há anos, o guitarrista e violeiro une as duas paixões sonoras nas bandas Matuto Moderno e Moda de Rock, além do recém lançado CD solo, Viola de Lata.

“Tonico e Tinoco sempre tocou na minha casa por influência da minha avó. E, enquanto tocava guitarra, descobri a viola e notei que era a mesma afinação utilizada no blues americano.”

Calango vem, calango vai

O sertanejo universitário surgiu na década de 2000, trazendo ouvintes ou duplas formadas por jovens estudantes. “Não vejo nenhuma ligação do universitário com o sertanejo, a não ser o nome. Note que a temática que era da narrativa, do romance, da história acontecida ou imaginada mudou. Agora as letras são outras”, afirma o pesquisador Ivan Vilela.

Carlos, da dupla com Jader, defende que, por mais mudanças que houveram na estrutura das composições, a nova geração sempre terá sangue caipira. “A música incorporou outros elementos e isso a popularizou tanto que, de certa forma, parece que deixou de ser sertaneja. Mas é inevitável falar desse estilo sem pensar no velho caipira.”

Como na velha moda “calango vem, calango vai”, Xororó confia que o gênero continuará existindo nos mais diversos formatos. “Tem espaço para todo mundo. E os jovens que estão chegando são muito talentosos, então acreditamos que o estilo está em boas mãos.”

Chitãozinho complementa: o estilo da roça é imortal porque mexe com qualquer classe social. “O sertanejo tem uma beleza única e muito especial, com letras e sonoridades que tocam o coração do povo. É algo que traz muitas sensações boas.”

“Queremos ver a continuação da história”, diz Craveiro. “E, se regar esse pé de roseira, ele vai dar mais flores.”

https://img.r7.com/images/pes-vermelhos-05042019182525896

Arte/R7

Reportagem: Daniel Vaughan
Edição: Leonardo Martins e Marcos Sergio Silva
Arte: Matheus Vigliar
Vídeo: Márcio Neves e Danilo Barboza