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Pablo Nascimento, do R7

Sentado em uma cadeira , o produtor musical Wilson Lopes, de 51 anos, dedilha em um violão alguns acordes. Quase sussurrando, ele canta os versos iniciais da música Ponta de Areia, antes de fazer a revelação: "Elis Regina errou a melodia. Ele brigou com ela e ela brigou com ele".

Ao dizer 'ele', Lopes se refere ao cantor Milton Nascimento, compositor da canção ao lado de Fernando Brant. "Milton já era famoso naquela época, mas não muito. Ela, porém, já era a Elis Regina. Ele me contou que precisou ter coragem para falar: Elis, muito lindo, mas você errou", relata sobre o dia em que o artista ainda em ascensão fez a Pimentinha do Brasil perder a paciência.

A história sobre o desentendimento, que acabou sendo resolvido, é tema fixo da disciplina A Música de Milton Nascimento, oferecida no curso de música da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). A matéria de graduação foi desenvolvida pelo próprio Wilson Lopes, que também é professor, além de guitarrista e violonista da banda de Milton há 29 anos.

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Arte R7

Em 2022, o aclamado disco Clube da Esquina 1, composto por Milton, Lô Borges e um grupo de amigos mineiros, completa 50 anos. Esse não é o único marco do ano. Milton celebrou 80 anos de vida na quarta-feira (26), enquanto se preparava para o último show de sua carreira, marcado para 13 de novembro, em Belo Horizonte.

Apesar da despedida dos palcos, para Wilson Lopes este não é o fim da força da obra de Milton e dos outros artistas do Clube da Esquina. "Ele é um gênero [musical]", diz sobre o colega carinhosamente chamado de Bituca.

"Em uma das músicas do Clube, Bituca preparou um acorde com o próprio acorde. Foi a primeira vez que vi isso na vida", tenta explicar Lopes sobre o arranjo "à la Milton Nascimento" feito com métricas já tradicionais da música.

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Ana Gomes/R7

Para entender um pouco da produção do artista carioca que se fez mineiro de coração, é preciso fazer uma viagem ao passado e conhecer os bastidores das composições e da formação do Clube da Esquina.

Nesta edição do R7 Estúdio, os próprios artistas que assinam o álbum ao lado de Milton nos ajudam a voltar ao passado e nos contam um pouco do que havia na cabeça de cada um deles. A reportagem é composta de textos, fotos, vídeo em 360º e podcast para trazer mais riqueza de detalhes e aproximar o internauta da história.

Milton, compositor
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Arte R7

Por um bom tempo, Milton Nascimento não acreditou em sua capacidade de escrever canções. Em meados do século passado, o jovem recém-chegado à capital mineira tinha como certo que sua relação com a música se limitava aos instrumentos.

O cenário, no entanto, mudou graças a uma forcinha de Márcio Borges, um dos 11 irmãos da família Borges, que havia conhecido ao se mudar para Belo Horizonte.

"Bituca não queria ser compositor porque ele achava que para isso teria que estudar em conservatório, ter aulas de piano, de harmonia e orquestração. Para o Bituca, compor era isso. Eu que o convenci que compor bastava pegar o violão e sair cantando coisas",

recorda-se o letrista, aos 76 anos

O episódio aconteceu muito antes de o Clube da Esquina ser sonhado. Márcio lembra que a virada de chave na cabeça de Milton ocorreu durante uma tarde que os dois passaram no cinema, um dos hobbies prediletos dos dois amigos.

"Jules et Jim", dispara o nome do longa-metragem do diretor francês François Truffaut, que estava em cartaz naquele dia. "Bituca saiu de lá inspiradíssimo e disse: Baixinho, vamos para sua casa porque vamos começar a compor agora".

O quarto dos homens

De lá seguiram para o apartamento no último andar do Edifício Levy, um prédio de fachada pequena que esconde os 17 pavimentos de suas duas torres. Ele fica localizado na avenida Amazonas, no coração de Belo Horizonte.

No imóvel morava a família Borges provisoriamente. A mãe, o pai e os 11 filhos se mudaram para lá enquanto a casa deles localizada no bairro Santa Tereza, na região leste da cidade, passava por uma reforma.

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Pablo Nascimento / R7

Por coincidência ou ironia do destino, no curto período em que a família morou no condomínio, Milton Nascimento trocou a cidade de Três Pontas, no sul de Minas, pela capital mineira para cursar economia e trabalhar no escritório de uma empresa produtora de energia elétrica.

O endereço escolhido por Bituca também foi o Edifício Levy. Mais especificamente o apartamento 506, que era usado como uma pensão pela proprietária do imóvel.

"Um gambá cheira o outro. Bituca chegou no edifício Levy e viu que tínhamos uma família musical e assim começou", comenta Márcio Borges. "Ele se introduziu lá em casa e começou a ensaiar um conjunto vocal com o Marilton, meu irmão mais velho. Eu cheguei em casa e eles estavam ensaiando. Fizemos uma brincadeira porque eles estavam no meu quarto. Dali já saímos amigos", recorda sobre o primeiro encontro com Milton Nascimento.

O quarto que Márcio dividia com outros três irmãos passou a ser o local de ensaio do grupo formado por Bituca, Marilton, Wagner Tiso e Marcelo Ferrari. Tiso que, por sinal, já havia tocado com Milton em outro grupo no sul de Minas.

Marilton, porém, não era o único artista da família Borges. Dos 11 sete tinham habilidades com instrumentos e canto. Assim, o espaço que foi apelidado de "O Quarto dos Homens" foi o palco onde nasceram canções que consagrariam Bituca e o futuro Clube da Esquina.

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Reprodução / Record TV Minas

Até hoje, o Edifício Levy segue se destacando entre os prédios do centro de Belo Horizonte. O apartamento onde a famíla Borges morou foi dividido em dois e passou por grandes reformas. 

Já a unidade onde Milton morou ainda tem boa parte dos cômodos preservada exatamente como era na época. A reportagem visitou o local e leva você para conhecer o espaço em um vídeo em 360° de realidade virtual. Atualmente, uma fã de Milton mora lá.

Para uma melhor experiência, é aconselhável clicar no vídeo para assistir pelo celular no aplicativo do YouTube, usando óculos de realidade virtual. A produção de jornalismo imersivo também mostra outros pontos de BH que marcaram a história dos "garotos" do Clube da Esquina, entre eles a esquina que deu nome ao álbum e o Edifício Arcângelo Maletta, palco da boemia daquela época. Assista a seguir:

A arte do encontro

Como já foi possível entender no vídeo em 360º, o disco Clube da Esquina ganhou esse nome em referência aos encontros das ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro Santa Tereza. A poucos metros da casa oficial da família Borges.

O local passou a ser ponto de encontro dos jovens artistas após a mãe, o pai e os filhos retornarem para o imóvel depois de concluída a obra. Os irmãos Borges voltaram para o antigo endereço, mas levaram as amizades construídas no Edifício Levy.

A essa altura o grupo já era grande. Juntaram-se a eles nomes como Toninho Horta, Beto Guedes, Fernando Brant, Tavito, entre outros.

Alguns deles, como Bituca, já alcançavam certo destaque no cenário musical. Em 1967, Milton e Fernando Brant foram medalha de prata no Festival Internacional da Canção com a música Travessia.

Mesmo já sendo um nome conhecido, Milton, ao idealizar o disco duplo que viria a ser lançado em março de 1972, fez questão de ter os amigos mineiros com ele na obra. Para dividir a coautoria principal, ele convidou o jovem Lô Borges, um dos filhos mais novos da família.

"Milton via em mim um jovem desconhecido, mas com talento. Ele viu que eu tinha condição de compor muita coisa legal. A gente já tinha duas parcerias. Ele tinha gravado Para Lennon e McCartney, que já tinha feito muito sucesso no Brasil e era música minha", avalia Lô sobre a escolha. A segunda outra composição que a dupla já tinha era Clube da Esquina Nº 1.

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Reprodução / Record TV Minas

A ideia era que os músicos se mudassem para uma casa em Niterói, litoral fluminense, onde iriam dedicar o tempo às composições.

"Ele me convidou para morar no Rio de Janeiro. Eu tive que pedir autorização aos meus pais, já que eu tinha só 18 anos. A gente vivia debaixo de uma ditadura militar, que desaparecia com as pessoas. Então minha mãe não quis deixar em um primeiro momento", recorda-se Lô sobre as dificuldades enfrentadas na época.

Contra a vontade de dona Maricota, matriarca dos Borges, a viagem acabou acontecendo. Alguns dos músicos não conseguiram se mudar, mas fizeram parte do projeto por meio de cartas, fitas enviadas via Correios e encontros esporádicos.

Assim nasceu o álbum Clube da Esquina 1, com 21 canções, em formato de disco duplo — algo raro para a época. "Para mim, o disco é a arte do encontro. Encontramos músicos maravilhosos no estúdio", avalia Lô, 50 anos depois.

Cada um deles levou para o disco referências de seus estilos próprios, passando pelas batidas africanas, rock inglês, jazz, estilo crooner e música brasileira. Eles não formavam uma banda, mas se uniram para dar vida ao álbum. A força das músicas foi relatada por novas gerações de artistas que mantêm vivo o legado do Clube da Esquina no terceiro episódio da série da Record TV Minas em celebração ao cinquentenário. Assista abaixo:

"A gente não pensava em vender 1 milhão de cópias. A gente não pensava que fosse durar tanto tempo. A gente fez uma coisa libertária simplesmente produzindo por amor à arte. A gente queria só fazer algo bonito. Eu acho que o grande segredo de o Clube da Esquina perdurar até hoje é que ele foi feito com muita verdade e liberdade. Não tinha ninguém querendo se dar bem e aparecer na mídia. Eu acho que nós conseguimos fazer uma obra de arte", conclui Lô.

Márcio Borges parafraseia a letra da música Clube da Esquina 2 para definir o futuro dos artistas: "Os sonhos não envelhecem".

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Arte R7
A história continua

A Record TV Minas produziu uma série de cinco episódios para marcar os 50 anos do álbum Clube da Esquina. Nela, os artistas que fizeram parte do movimento e novas gerações falam sobre a relevância das canções. Assista a seguir:

O poder da obra desses artistas e de Milton Nascimento não está registrado apenas nas memórias, letras, livros e na disciplina de Wilson Lopes na UFMG. Em Barbacena, cidade localizada a 170 km de Belso Horizonte, a Bituca — Universidade de Música Popular, tem como base ensinar música por meio do trabalho do cantor.

No podcast 1000Tons, você vai ouvir a história dessa escola livre de música brasileira e entender mais sobre a contribuição de Bituca para a arte nacional.

Ouça também o podcast Não Eram Só Rimas. Nele, artistas que fizeram parte do Clube da Esquina e artistas que foram testemunha das histórias narram os bastidores da criação de músicas consagradas como Janela Lateral, Travessia e Maria Maria.


Reportagem: Pablo Nascimento
Entrevistas: Pablo Nascimento, Priscila de Paula, Romir Rocha e Rayllan Oliveira
Artes:  Sabrina Cessarovice
VR/ vídeo 360º: Pablo Nascimento
Produção de podcasts: Ana Gomes e Nalu Saad
Edição de podcasts: Kiko Viveiros
Chefia de redação: Adriana Viggiano e Flávia Martins y Miguel
Direção de jornalismo: Marco Nascimento