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Lucas Bueno e André Tal, da Record TV

A pandemia fez o mundo virar de cabeça pra baixo. Um vírus que isolou os povos e deixou ainda mais à margem da sociedade quem já vivia esquecido. Nas regiões mais pobres do Brasil, a fome voltou a assombrar. Um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional revelou que 19 milhões de brasileiros passaram fome no fim de 2020. Isso corresponde a 9% da população.

"Para que o Brasil volte a constar no mapa da fome das Nações Unidas, ele tem que ter um contingente de população acima de 5% [sem ter o que comer]. Ou seja, basicamente, nós já estaríamos de novo nesse mapa", disse Daniel Balaban, diretor do centro de excelência contra fome da ONU no Brasil.

Equipe do Jornal da Record percorreu 16 cidades do sudeste e do nordeste (Record TV)

Equipe do Jornal da Record percorreu 16 cidades do sudeste e do nordeste

Record TV

Para retratar essa parte invisível do país, a equipe do Jornal da Record partiu para uma expedição. Saiu de carro de São Paulo e foi até o Piauí. Foram mais de 5 mil quilômetros percorridos por quatro estados. Foram 16 municípios visitados em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Piauí.

Dezenove anos e dois filhos para alimentar, quando consegue. Marciele Alves Moreira é uma mãe com fome no Brasil pandêmico. A jovem mora em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), lugar que já foi conhecido como o Vale da Fome. A casa de Marciele não tem móveis. Ela, o namorado e as duas crianças dormem em um colchão velho. A geladeira está sempre vazia.

Para o filho caçula, de 1 ano, a mãe dá o peito. "Quando eu amamento de manhã cedo, também me dá fome. Só que quando não tem nada, eu só tomo o café puro, quando tem ainda."

Ela se emociona ao falar sobre a falta de comida. Chora sonhando em poder dar  café com biscoito para os filhos pela manhã. À tarde, almoço e, à noite, janta. Parece pouco para muitos, mas uma fartura para quem não tem o que comer.

Na casa de Marciele, o colchão no chão faz as vezes de móvel (Record TV)

Na casa de Marciele, o colchão no chão faz as vezes de móvel

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Volta ao passado

Quem conhece de perto a região diz que os moradores vivem, em 2021, cenas parecidas com as dos anos de 1990. Um retrocesso de 30 anos. Caroline Assis Oliveira é uma das responsáveis pela ONG Doando Amor e faz entregas mensais de comida para as famílias mineiras. "Teve um aumento de 900% na demanda de pessoas passando fome, que ficaram desempregadas, não podem trabalhar porque ficou tudo fechado, principalmente, os ambulantes. A gente teve um aumento inaceitável, porque a comida é o básico do básico que todo ser humano tem que ter. Infelizmente, aqui no Vale do Jequitinhonha, isso [comida] está sendo para poucos", afirmou Caroline.

A dona de casa Ivaneuza Francisco do Nascimento abre a porteira para o carro da doação entrar. Ela já estava esperando ansiosa. A ajuda chegou na hora certa. Ali falta de tudo. Feijão, óleo... arroz só tinha um pouquinho. Na casa de taipa moram nove crianças, ela e o marido. Muitas bocas para alimentar.

Perguntada se a cesta básica que acabou de receber renderia para o mês todo, ela é direta: "Para o mês todo não dá, não. Mas eu creio que deu uma força muito boa. Tem muito valor a comida, porque eu tenho filho pequeno que precisa. Eu mesma, meu esposo... tem muito valor pra nós."

A família de dona Ivaneuza é o retrato do sofrimento social no país. Uma das filhas, de 15 anos, está grávida de gêmeos. "Fiquei muito abalada com isso. Ela não tem nem couro direito de uma mulher assim para ter dois filhos. Ela é bem magrinha, novinha, mas fazer o quê, né? Deus mandou, eu tenho que estar preparada para receber e para alimentar", desabafou.

Ivaneuza mora com o marido e nove crianças (Record TV)

Ivaneuza mora com o marido e nove crianças

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De acordo com o Ministério da Cidadania, 40 milhões de brasileiros vivem hoje na extrema pobreza. É o pior cenário desde 2012.

Ouro líquido

Em Monte Santo, sertão da Bahia, a terra é seca. A lavoura é improvável na cidade que foi base do Exército durante a Guerra de Canudos, no fim do século XIX. Falta comida e trabalho. Ricardo de Jesus é agricultor. Além da fome, muitas vezes não tem água para beber e plantar. Ele precisa andar 12 quilômetros com um galão e um carrinho de mão para chegar no poço. A água barrenta é a última esperança de Ricardo. Com ela, se hidrata e lava roupa. "Muita gente, às vezes vê [a água] assim, acontece até de derramar. Mas pra gente aqui é ouro", confessou, após tomar um copo da água amarelada.

A insegurança hídrica atingiu 40,2% dos domicílios nordestinos no primeiro ano da pandemia, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. A fome exige escolhas difíceis. Ricardo deixa de comer feijão para plantar e tentar conseguir pelo menos um pouquinho de fartura. Mas, se em quinze dias não chover, perde tudo. Dizem que a lavoura em Monte Santo é uma loteria. "O feijão que a gente tem é esse daqui. É toda a reserva que a gente tem. Dá mais ou menos pra gente comer. Fazendo economia, a gente come 10 dias. Bota mais farinha e mais água. Aí rende e dá pra todo mundo", contou.

Ricardo de Jesus anda 12 km para chegar em um poço (Record TV)

Ricardo de Jesus anda 12 km para chegar em um poço

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Ricardo e a mulher vivem em uma casa simples, sem energia, sem qualquer condição de preparar uma comida com higiene. O agricultor não vai almoçar hoje pra sobrar para amanhã. Mas confessa: está com muita fome.

Às vezes, a gente vê muitas pessoas desperdiçando comida, mas não pensa nos outros, né? Tem gente que passa necessidade

Ricardo de Jesus, agricultor

Pernambuco

Na imensidão da caatinga, povoados esquecidos, longe do desenvolvimento, sem acesso aos direitos básicos do ser humano. Em Iguaracy, no interior do Pernambuco, há relatos de fome em praticamente todas as casas . Valdecir Francisco Nunes é aposentado. Tem 81 anos e sofre com problemas de saúde. Encontramos ele sentado numa cadeira esperando o tempo e a fome passar.

"Uma hora que tiver o feijãozinho come, uma hora que não tiver o arroz, come misturado com um punhadinho de farinha", disse o senhor. 

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento, na pandemia, o consumo de carne bovina caiu para o menor nível em 25 anos no Brasil. Seu Valdecir tem dificuldade para andar.

Ninguém pode comprar carne. A situação não dá

Valdecir Francisco Nunes, aposentado

O nutrólogo Eduardo Rauen explica que o corpo das pessoas que não têm acesso à proteína consome a reserva de massa muscular. "Quanto mais tempo elas passarem na fome, mais tempo elas ficarem sem proteína. Isso vai causar diversos problemas, desde imunidade, fragilidade do idoso, osteoporose e todas as doenças relacionadas à falta de massa muscular", afirmou.

Aos 80 anos, Valdecir sente no corpo os efeitos da falta de proteína (Record TV)

Aos 80 anos, Valdecir sente no corpo os efeitos da falta de proteína

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O extremo sul do Piauí, uma das regiões mais pobres do Brasil, foi atingido com força pela pandemia. É lá que a equipe do Jornal da Record encontra a família de Vanderléia Pereira Souza. São 13 pessoas: 9 crianças e 4 adultos. Para o almoço, as panelas têm um quilo de feijão e um quilo de arroz. Não dá para esbanjar: cada um come só um pouquinho para tentar enganar o estômago e não faltar pra ninguém.

"Eu estou com bastante fome, com fome mesmo. Porque eu já não tomei café, aí a fome aumenta, né? Fome de comida. Me dá agonia saber que os meus filhos não tomaram café da manhã. Porque eu pelo menos sou maior, né? Sou maior, eu aguento mais um pouco. Os meus filhos são todos pequenininhos", disse a dona de casa Vanderléia.

A irmã dela, Maria dos Remédios, lava a louça enquanto espera a comida ficar pronta. "A gente tem que ter vontade de comer o que a gente sabe que tem nas panelas", disse, sem esperança de um futuro melhor.

Sonhar se a pessoa não tem a condição de ir lá no final do sonho?

Maria dos Remédios

Mais conteúdo

Para falar sobre o agravamento da fome no Brasil, o apresentador Celso Freitas e o repórter André Tal, que participou da produção da série Fome dos Invisíveis, conversaram com Daniel Balaban, representante do Programa de Alimentos da ONU, e com o médico nutrólogo Eduardo Raue. Veja a íntegra abaixo.

André Tal e a produtora Mariana Soares, durante participação no podcast JR 15 min, contaram os bastidores da série de reportagens especiais. Os relatos de quem viu a fome invadir casas no interior do país. Confira o episódio.

A série Fome dos Invisíveis tem cinco reportagens especiais, exibidas no Jornal da Record, além de um episódio exclusivo para os assinantes do PlayPlus.


Reportagem: André Tal
Produção: Mariana Soares
Imagens: Antonio Carlos Barbosa
Motorista auxiliar: Antonio Clodoaldo
Edição: Lucas Bueno
Coordenadora de série: Rosana Teixeira