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Beatriz Sanz, Carolina Vilela*, Cristina Charão e Fábio Fleury, do R7

Toda tragédia deixa marcas. Uma tragédia familiar afeta um pequeno grupo de pessoas. Uma tragédia comunitária pode envolver uma cidade inteira, até um país. O Massacre de Columbine, em 20 de abril de 1999, foi tudo isto. E ainda foi além. O tiroteio dentro da Columbine High School não foi nem o primeiro, nem o último desses eventos de violência que costumamos chamar de sem sentido. Tampouco foi o mais mortal já registrado. Mas é, sem dúvida, uma tragédia que deixou marcas globais.

Vinte anos depois, os tiros disparados por dois adolescentes brancos na pequena cidade de Littleton, no Colorado (EUA), ainda ecoam.

Quando adolescentes repetem o ato violento dentro de uma escola em Suzano, voltamos novamente às imagens de duas décadas atrás. Quando um atentado de um supremacista branco numa mesquita na Nova Zelândia faz a sociedade repensar a maneira como lidar publicamente com um terrorista, Columbine ressurge nos debates.

Por quê?

O massacre na escola em Littleton deixou 15 mortos, incluindo os dois jovens que planejaram o atentado em detalhes e se suicidaram depois de serem cercados pela polícia e pelas câmeras de televisão por várias horas.

Foi o primeiro da era digital, o primeiro em que os atiradores deixaram registros em vídeo do que pretendiam fazer e o primeiro a ser coberto no auge dos grandes canais de notícias 24 horas dos EUA.

Esses tantos registros e a facilidade com que as redes de comunicação tradicionais e digitais fizeram com que eles circulassem — e continuem circulando — são elementos importantes para explicar como e por que Columbine se transformou numa marca global da violência.

“Columbine foi um divisor de águas na história, principalmente por causa da cobertura da mídia”, diz Jaclyn Schildkraut, professora de Direito Criminal na Universidade Estadual de Nova York e especialista em pesquisa de tiroteios em massa. “Numerosas imagens icônicas foram mostradas naquele dia, desde crianças fugindo do prédio com as mãos sobre as cabeças, multidões de socorristas, até o estudante Patrick Ireland se atirar para fora da janela da biblioteca para os oficiais da Swat.”

Mas a profusão de imagens explica apenas em parte o fenômeno Columbine.
Como os diversos livros, incontáveis textos acadêmicos, um documentário vencedor do Oscar e um filme premiado no Festival de Cannes nos fizeram refletir, para entender como o massacre de Littleton entrou para a história da violência é preciso considerar ainda o peso do discurso sobre armas e violência nos EUA, elementos da cultura pop e o culto a personalidades que toma conta da mídia nas últimas décadas.

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Arte R7

Eric Harris e Dylan Klebold gravam um vídeo com armas para um trabalho da escola. O vídeo mostra a "Trench Coat Mafia" — grupo de amigos que se identificava pelo uso de sobretudos (trench coats) pretos — criando uma simulação da explosão de Columbine.

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Arte R7

Eles vão a uma feira de armas com uma amiga, que compra duas espingardas e um rifle para os adolescentes.

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Arte R7

Eric e Dylan gravam uma fita praticando tiro ao alvo com pinos de boliche.

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Arte R7

Os jovens registram seus planos em diários e vídeos. Eles pedem desculpas às suas famílias pelo atentado.

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Arte R7

Eric e Dylan entram no refeitório da escola às 11h14 carregando bombas caseiras e armas escondidas nos casacos. A polícia é informada rapidamente. Um policial que estava por perto vai até o local e troca tiros com Eric. A imprensa descobre a história e chega mais rápido à escola do que as ambulâncias. Logo em seguida, tem início um show de transmissão ininterrupta do massacre em diferentes canais de notícias. Os corpos dos atiradores são encontrados por volta das 16h dentro da biblioteca, com marcas de suicídio. Pouco depois, a polícia declara que a escola está segura.

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Arte R7

A polícia concede a primeira coletiva de imprensa sobre o caso, levantando a hipótese de que os atiradores não agiram sozinhos. Neste mesmo dia, o funeral de uma das vítimas, Rachel Scott, é transmitido ao vivo pela CNN e se torna o evento mais visto na história da emissora até então.

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Arte R7

Columbine High School, que havia sido reformada, reabre suas portas quatro meses após o tiroteio, com ampla cobertura midiática.

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Três suásticas são pintadas dentro e fora da escola.

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O programa "CBS Evening News" transmite uma parte da câmera de segurança da cafeteria de Columbine.

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Arte R7

A revista TIME divulga uma edição com os vídeos em que os jovens confessavam os crimes. Depois disso, as fitas são declaradas sigilosas.

Em vários aspectos, Columbine foi um evento pioneiro.

Boa parte desse pioneirismo de Columbine tem a ver com a estética do massacre — que inclusive deveria ter sido ainda mais espetacular. Os dois adolescentes planejavam explodir bombas de propano dentro da cafeteria lotada. Os artefatos não explodiram e eles decidiram, então, entrar no prédio da escola para tentar atirar na bomba, que nunca foi detonada.

A estética rudimentar dialogava com elementos da cultura pop

Gabriel Binkowski

Segundo Gabriel Binkowski, psicólogo e professor da USP, o elemento estético é importante em qualquer atentado, seja os que querem chamar atenção para uma causa política, os movidos por crenças religiosas e mesmo naqueles em que não reconhecemos motivos além de chamar a atenção.

“Columbine lançou moda no momento e na hora certa, se utilizando também de uma estética que estava entrando em voga naquela época”, destaca Binkowski.

“A gente pode falar desde o tipo físico dos personagens, das roupas que eles usavam, do tipo de vídeos que eles faziam. Era uma estética rudimentar, como a da internet naquela época, mas que dialogava diretamente com elementos que viriam a fazer muito sucesso na cultura pop – e aí a gente pode citar os filmes Matrix Clube da Luta.”

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Arte R7

“É o primeiro atentado em que as questões ligadas às personalidades dos autores despontam e se tornam icônicas, atravessando uma geração”, destaca Binkowski. Novamente, a atuação da mídia é fundamental para que esta marca de Columbine seja duradoura.

Para a professora de cinema e audiovisual da ECA-USP Esther Hamburger, o crime de Columbine ganhou repercussão, em primeiro lugar, por ter acontecido dentro de um espaço tão cotidiano como a escola. “Nesse tipo de acontecimento, a mídia se torna refém do próprio evento, já que precisa noticiar um fato desolador, por mais que se sinta enojada com o fato em si.”

A possibilidade de narrar os fatos ao vivo — para preencher 24 horas de programação — ajudou a transformar o evento em algo próximo de todos que podiam acompanhar o desenrolar dos fatos no dia 20 de abril e as investigações posteriores como se acontecessem na casa ou escola ao lado. “Então, ao invés de trabalhar para conter o trauma, a mídia ajuda a aumentá-lo”, explica Esther.

Nesse tipo de acontecimento, a mídia se torna refém do próprio evento

Esther Hamburger

Mas o foco específico nos dois personagens centrais do atentado, nas suas histórias de vida e na busca por explicações para seus atos — que levaram a suposições diversas que iam do efeito dos videogames à predisposição psiquiátrica para os crimes —, vem de uma quebra de paradigma dentro da cultura de violência dos EUA.

“Em muitos aspectos, Columbine abalou as suposições sobre o crime — as pessoas, muitas vezes, acreditavam que eventos como esse [homicídios, assassinatos em massa] e até crimes em geral eram em grande parte um problema urbano das cidades que era perpetuado por negros”, afirma Schildkraut.

Mas o massacre ocorreu em uma comunidade suburbana de classe média alta e foi perpetrada por duas crianças brancas do ensino médio.

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Arte/R7
Um massacre, vários massacres

Ao se tornar um ícone visual dentro da cultura de violência e, ao mesmo tempo, alçar os dois atiradores à condição de celebridades, o Massacre de Columbine acabou servindo de estopim para dois tipos de fenômenos entre adolescentes nos EUA e ao redor do mundo.

O primeiro é o dos “copycats”, os imitadores. De acordo com levantamento organizado pelo site Mother Jones, entre 1999 e 2015, pelo menos 74 casos de atentados planejados ou levados a cabo tinham como referência a atuação dos atiradores de Littleton.

Estes casos resultaram em 89 mortes, 126 feridos e o suicídio de 9 dos atiradores. A média de idade dos envolvidos: 17 anos.

Binkowski lembra que pessoas nesta faixa etária estão sempre em busca de um ideal. Quando jovens como os de Columbine se tornam personalidades que conquistam espaço e reconhecimento, acabam se tornando uma personalidade ideal.

“Os atos cometidos por jovens movidos por raiva — pela raiva racial, como tem acontecido, ou religiosa, ou por não se sentirem parte do sistema — são atos cujo ideal parece remontar àquela personalidade típica dos jovens de Columbine”, avalia Binkowski.

“De alguma forma, temos tratado estes jovens como se tivessem sido possuídos por estes discursos. Como se não tivessem responsabilidade ética pelos seus atos. Na verdade, eles tiveram.”

O outro fenômeno é o surgimento da chamada “cultura columbiner”, uma espécie de culto às personalidades dos dois jovens atiradores que se manifesta em fóruns na internet, páginas de Facebook, Instagram e perfis no Twitter.

Especialista em tiroteios em massa, Jaclyn Schildkraut diz que não é possível se espantar com isso, num cenário em que os dois personagens centrais do massacre se tornaram foco da mídia por tanto tempo.

“É sabido que há pessoas que idolatram outros assassinos, que se relacionam com eles, que simpatizam com eles ou professam sua inocência mesmo diante de uma montanha de evidências”, diz Schildkraut.

Columbine afetou os EUA?

A multiplicação de tiroteios semelhantes, no entanto, não forçou mudanças radicais em um dos elementos centrais no episódio de Columbine: a regulação do armamento da população.

“Houve algum movimento na legislação sobre armas após Columbine. O estado do Colorado baniu as compras de armas e munição e reforçou seus sistemas de verificação de antecedentes", diz Schildkraut. "Mas a realidade é que o debate em torno de armas está tão polarizado entre a ideia de controle e a de liberdades individuais que pouco movimento foi feito em qualquer direção nos últimos 20 anos.”

A mudança efetiva no comportamento da população e na própria organização das forças policiais dos EUA após Columbine foi uma só: prever sempre o pior.

O relatório final de uma comissão criada pelo governo do Colorado para analisar os fatos ocorridos em 20 de abril de 1999, verificar os erros e acertos na resposta das forças de segurança e recomendar medidas para as escolas, concluiu, por exemplo, que equipes policiais deveriam agir imediatamente no sentido de parar os confrontos.

Por esses motivos, a comissão recomendou a neutralização imediata de potenciais atiradores, uma coordenação melhor entre as diversas agências de segurança (em Columbine, os esforços foram prejudicados porque polícia, bombeiros e socorristas usavam frequências de rádio diferentes), programas de treinamento nas escolas e delegacias e a elaboração de planos de evacuação para as diferentes unidades escolares.

Forças policiais, distritos escolares, professores e até mesmo alunos em idade pré-escolar passaram a treinar exaustivamente para reagir a situações parecidas.

Em Parkland, na Flórida, em uma escola que foi alvo de um ataque que resultou na morte de 17 pessoas em fevereiro de 2018, este treinamento havia sido feito poucos dias antes.

Histórias que ainda se repetem

“Existem certos discursos que seguem operantes em várias culturas, especialmente nos EUA, e que provocam certas tensões sociais, como o discurso sobre armas, sobre proteção, sobre violência”, comenta Binkowski.

Quando nada muda, as histórias se repetem.

Tanto que sobreviventes de Columbine fundaram uma organização, The Rebels Project, com a intenção de ajudar pessoas que sofreram traumas decorrentes de acontecimentos semelhantes ao da escola em 1999.

O ano de 2018 registrou, inclusive, um pico no número de tiroteios dentro de escolas nos EUA e também o maior número de mortes: 113 no total.

Dois dos mais letais ataques da história do país também ocorreram ano passado. Além de Parkland, o massacre na Santa Fe High School deixou 10 mortos.

Os dois eventos desencadearam protestos em todo o país. Marchas foram lideradas pelos sobreviventes da Flórida e do Texas. Aumentaram também a mobilização e a visibilidade dadas aos casos de outras vítimas, como as famílias de Sandy Hook, um massacre realizado em uma escola primária na cidade de Newtown que resultou na morte de 20 crianças e 8 adultos, incluindo o atirador — que, segundo investigações posteriores, seguia com paixão a história dos seus ídolos de Columbine.

Recentemente, os atuais alunos da Columbine High School lançaram uma campanha pedindo que, caso sejam vítimas de algum tiroteio, as fotos de seus corpos com balas sejam divulgadas, na tentativa de despertar a atenção da sociedade para o fenômeno.

Mas, em 2019, o “massacre como o de Columbine” já ocorreu, já tomou as manchetes, já se tornou foco de cobertura intensiva e a repetição de padrões tanto pelos atiradores, como pela sociedade. E ele aconteceu em Suzano.

Por outro lado, um atentado terrorista do outro lado do mundo, em mesquitas na Nova Zelândia, com 50 vítimas fatais e altamente midiático — com a transmissão ao vivo do ataque pelo próprio atirador —, estabeleceu um outro padrão de comportamento para os que precisam conviver com um evento traumático como este: o esquecimento.

“Columbine começa com esta excrescência da questão do nome e da personalidade dos autores. Este arco se fecha, parece, na Nova Zelândia com o silenciamento do nome do autor”, diz o psicólogo Gabriel Binkowski.

Um silêncio que pode servir para, talvez, abafar os ecos de Columbine.

*Estagiária do R7, sob supervisão de Cristina Charão


Reportagem: Beatriz Sanz, Carolina Vilela, Cristina Charão e Fábio Fleury
Edição: Leonardo Martins
Arte: Lucas Martinez e Matheus Vigliar
Operador de áudio: Eder Delatorre
Iluminador: Luiz Donola
Produção: Reinaldo Montalvão e Fernanda Biazini
Edição de vídeo: Danilo Barboza
Imagens: Bruno Lima